A dor vivifica e engrandece a alma.
"...não tinha presença nem beleza
para atrair nossos olhares,
nem aspecto que nos cativasse.
Desprezado e evitado pela gente,
homem acostumado a sofrer,
curtido na dor;
ao vê-Lo cobriam o rosto;
desprezado, nós O tivemos por nada..."
(Isaías 53, 2b-3)
Disse um poeta:
Tu fais l'homme, ó douleur!
Fazes o homem, ó dor!
E outro poeta, seu irmão pelo gênio, acrescentou:
Rien ne nous fait si grands qu'une grande douleur.
Como uma grande dor, nada nos faz tão grandes.
Entrevejo, uma terceira e mais alta razão da dor. Ela não é somente uma luz no meio das obscuridades e das ilusões da vida, nem um remédio para as suas corrupções; ela vivifica e engrandece as almas; eu quase não hesitaria em dizer que ela as cria de novo. Pelo menos, incute nelas uma beleza, uma grandeza comovedora que a própria virtude não lhes poderia dizer.
A verdade é que, nesta triste terra, nunca houve uma grande obra nem uma grande alma sem a dor. Para ser grande, o gênio, a glória e a virtude jamais bastaram. A dor foi sempre necessária.
Em vão um homem reuniu sobre a sua cabeça todas as coisas; a humanidade fitou nele o olhar, mas para saudar a sua grandeza esperou que ele tivesse recebido o batismo da dor. A própria virtude, a virtude feliz, não tem sido o maior espetáculo contemplado pela terra. Foi sempre imprescindível que a dor viesse comtemplá-la, dando-lhe um indizível e incomparável aspecto, como se, nessa augusta oficina em que se formam as almas, o gênio, a glória, a virtude só pudessem fazer o esboço; os ultimos traços, aqueles que o Mestre reserva para Si, são dados pela dor.
Porque? É um mistério, diz-se. Sim; mas o mistério não é, talvez, impenetrável.
Nós somos pequenos, porque somos limitados. E quanto mais voluntariamente aceitamos esses limites, quanto mais nos encerramos neles, tanto menores somos. Para sermos grandes, devemos sair dessas estreitas raias; cumpre que, com um supremo esforço, nos libertemos desse miserável círculo.
As crianças indianas traçam em torno de um inseto que elas julgam perigoso, um círculo de carvões cardentes. Recuando, diante da dor, depois de ter em vão tentado transpôr o obstáculo, o inseto se contrai e morre. É a isto que as almas vulgares se resignam: mas as grandes almas saltam fora do círculo, passando através do fogo.
Vêde o escritor. Quando escreve ele sublimes pensamentos? É, por acaso, num período de ociosidade ou quando permanece nos limites aparentes da sua natureza? Não é antes quando os transpõe, por um esforço doloroso?
"Termino esta obra austera no silêncio de um trabalho de dezessete noites. E agora que ela se acha finda, eu, trêmulo ainda dos sofrimentos que me causou, em um recolhimento tão santo como a prece, pergunto a mim mesmo se a minha voz será ouvida." Eis como nascem dolorosamente as grandes obras.
E o poeta? Onde acha ele os seus versos imortais? Quem ignora que a alma canta melhor amargurada pela dor do que repleta de jubilo?
Et chacune de ses blessures
Lui donne un plus sublime accord
E cada ferida sua.
Lhe ajunta um sublime acorde.
Diz um poeta. E quanto mais amarga é a dor, tanto mais penetrante é o grito.
Les chants désespérés sont les chants les plus beaux,
Etj'en sais d'immortels qui sont de purs sanglots.
Com a voz do desespero os cantos são mais belos,
há cantos imortais que são puros soluços.
O mesmo se dá com os grandes caracteres, com as almas profundas e com os corações bons. A dor lhes é necessária. Para aqueles que não sofreram, o arado da vida não sulcou mais do que a superfície da alma. Os seus sentimentos não têm intensidade, como ao seu coração falta a ternura e ao seu espírito faltam horizontes.
Tudo neles é artificial, como é vulgar o espírito e é banal a bondade.
Em suma, sob todos os pontos de vista, só a dor penetra assaz profundamente na alma para a engrandecer. Há em nós pontos muito elevados em que dorme a vida, profundidades ocultas em que jazem tesouros e que a energia da alma não poderia atingir. É necessário o golpe fulminante da dor. E eu ouso dizer que há lugares do coração que são totalmente obscuros, e onde a dor precisa de penetrar para que eles se iluminem.
... Do mesmo modo que só batida a pedra produz a centelha, assim também cumpre ferir a alma para que dela se desprenda a luz, a grandeza, o heroísmo, a dedicação e mil tesouros ocultos. A estátua está no mármore; dali é preciso destacá-la. A esmeralda está no fundo desse bloco de quartzo; para que cintile, cumpre tirar o manto de pedra que a esconde.
E para isso empregamos o martelo e o cinzel. O homem procura extrair da sua alma as belezas que ela encerra; mas como raramente tem a coragem de empregar os meios exigidos por esse trabalho, Deus o auxilia nessa tarefa, enviando-lhe a dor.
E é por isso que todos os santos, os gênios, todas as grandes almas têm sido os filhos previlegiados da dor. A coroa de louros jamais se ostentou em frontes que não estivessem sulcadas pela amargura...
Que diremos dos soldados, dos heróis?
É a dor que faz o soldado.
A alma nunca se revela melhor, em uma beleza mais comovedora e verdadeira, do que perante a morte, nessas horas solemes em que o perigo lhe apresenta uma tão completa abdicação de si mesma. Esquecer-se de si e dedicar-se até a morte, eis o papel do soldado. É a beleza suprema, e outra não há semelhante a essa. Vêdes bem que o homem só pode ser verdadeiramente sublime diante da dor e da morte.
Por isso, nada existe de mais sublime do que os santos. Não é somente uma vez, por acaso, no campo de batalha que a dor os eletriza e os impele aos atos de heroísmo; por sua própria vontade e pela de Deus, eles vivem na dor. E ela os arranca incessantemente dos limites do mundo e da personalidade.
Essa vida de sacrifícios que eles voluntariamente procuram, brilha nas profundezas das suas almas como um holocausto. É o mais belo espetáculo que a terra pode oferecer aos céus.
"Não sabeis, escrevia São Francisco de Sales, em que despertamos a inveja dos anjos: é no que podemos sofrer por Deus, por amor do qual eles jamais sofreram." Que podem eles oferecer a Deus e áqueles a quem amam? Votos? Homenagem? Nós também; e, ainda mais, as nossas dores livremente aceitas e amorosamente oferecidas.
E não são apenas os anjos que invejam essa grandeza e essa beleza da nossa alma. No seio da glória, Deus permanece em admiração perante o que o homem faz no seio da dor. Deus lhe invejou essa faculdade sublime de sofrer e morrer por amor. E parece que se Deus não houvesse achado o meio de morrer pelo homem, que por ele sofria e morria, a criatura teria tido um gênero de grandiosa beleza que faltaria ao Criador.
Eis porque um dia os céus se abriram, e o Filho de Deus morreu na Cruz, em uma dor infinita, a fim de que, fossem quaisquer os sacrifícios do homem, ele visse sempre o seu Deus na glória de uma imolação superior á sua.
Assim, a grandeza e a beleza das almas são graduadas de conformidade com a dor. Imaginai uma pirâmide, no alto da qual estão aqueles que têm na fronte a centelha do gênio, da virtude e da dor, e á frente deles Aquele que, sob esse triplice aspecto, se chama o primogenito dos filhos dos homens. Mas embaixo, as dores menos intensas e também os sentimentos menos profundos, as vidas mais vulgares.
Á medida que se desce, aumenta o riso; á medida que se sobe, vê-se reinar a seriedade, sentimento inseparável dos grandes atos da vida; e com a seriedade a verdadeira beleza, essa beleza comovedora e grave da virtude, do amor e da dor, cujo encanto é inefável.
A dor é uma coisa tão insigne que dá realce á própria beleza.
O rosto, do mesmo modo que o coração, se embelece com o sofrimento.
(Excertos do livro: A Dor - Monsenhor Bougaud)
PS: Grifos meus