III- A
HUMILDADE
1.
Humildade de Cristo ao fazer-Se homem. — O que seja humildade. — 3. O amor
próprio e a humildade. — 4. Três graus de humildade. — 5. A vanglória. — 6.
Prática da humildade: a) Conhecimento próprio; b) Desejos de humilhação; c)
Prática da humilhação; d) O terceiro grau de humildade. — 7. Vários conselhos.
1.
— De propósito toquei só de passagem na questão da humildade de Cristo, como
fruto da anterior consideração do Seu Nascimento. Esta virtude tão necessária
reclamava explicação à parte.
Já
vos disse como ela brilha de modo especial na encarnação e nascimento de
Cristo. Deus não podia tê-la, pois Deus humilhar-Se como Deus seria impossível:
Deus é Deus, é infinito, é o que é; querer ser menos como Deus, seria não ser
Deus, seria abdicar da Sua realeza: isto não pode ser. Mas, como Ele viu que o
homem caíra por soberba, por querer ser mais do que era, era preciso
ensinar-lhe com o exemplo a querer ser menos. Que faz então Deus para isso? Já
que não pode humilhar-se como Deus, toma carne humana e nasce de Maria Virgem.
Então, vestido da nossa carne, foi tão humilde, e a tais extremos chegou nesta
virtude, que, além de se encarnar e nascer como nasceu, mais tarde sofreu
desprezos e humilhações sem conta e foi feito o ludíbrio e escárnio da plebe.
Grande deve ser esta virtude, e necessária em demasia, para que o Filho de Deus
a pratique com tais extremos. Amai-a como Jesus a amou.
Mas,
para amá-la e para se resolver a praticá-la, é necessário conhecê-la. Vejamos
em que consiste ela.
2.
— “A humildade é a verdade”, disse Santa Teresa, e certamente assim é, porque quem
se sente pobre e miserável não sente mais do que o que é verdade.
Poderíamos
defini-la dizendo ser ela uma virtude que inclina o homem a ter-se e estimar-se
só pelo que é e vale, e não em mais. Porém, como é muito difícil julgar-se o
homem a si mesmo, acrescentaremos esta outra definição ou explicação, dizendo
que a humildade é uma virtude que ensina a “reprimir-se a si mesmo para não se
ser arrastado pela soberba a um grau ou estado que lhe não pertence” (Santo
Tomás, Summa Theologica, 2. 2. q. CLXI).
3.
— Já vos vejo menear a cabeça e encolher os ombros, como se vos falasse grego.
Todavia, não é tão difícil assim entender esta virtude. Eu vo-la esclarecerei:
Sabeis
o que é um sistema planetário? É um agrupamento de corpos celestes ou estrelas
que giram em torno de um grande astro central. Os corpos que giram em torno
desse astro chamam-se planetas. A terra que habitamos é um planeta que gira ao
redor do sol. Isto vós o sabeis. O que nem todos vós sabeis é que cada um de vós
quereria ser como um sol e converter-se em centro de um vasto sistema
planetário. Quereríeis que todos vos amassem, que todos vos distinguissem, que
todos se mancomunassem para vos amar. Porque — está claro! — cada um de vós é o
menino mais inteligente, mais desembaraçado; e cada menina é a mais querida, a
mais simpática, a mais bondosa. Não é verdade que dos vossos coraçõezinhos
brotam estes sentimentos? E não é isto querer ser o centro de um sistema
planetário em tomo do qual girem e dancem as criaturas que se atravessam no
vosso caminho? De onde promana isto? Provém de um exagerado amor próprio. Cada
um de vós ama a si mesmo de modo desmedido. Nas vossas disputas, nas vossas
preferências, nas vossas alegrias, nos vossos desgostos, sempre transparece o amor
próprio. Cavai um pouco nisso, e chegareis a descobrir esta raiz apodrecida. É
tão terrível esta lepra, e tão arraigada está na nossa natureza, que custa
terrivelmente arrancá-la, e ela inclina o homem e a criança aos maiores
desafinos em obséquio da sua adorada e nunca assaz ponderada pessoazinha.
Que
remédio haverá contra esta peste, causa de quase todos os desmandos humanos? O
remédio é a humildade. Se o homem se conhecesse tal qual é, a humildade seria
fácil; mas, cheio de amor próprio, ele sempre exagera as suas boas qualidades e
dissimula os seus defeitos. Que faz a humildade? “Inclina-o a reprimir-se a si
mesmo”, e para isso o faz crer-se muito miserável, e desprezar-se, e
aniquilar-se, e ter muito baixo sentir de si mesmo. Direis: “Isto é demasiado!”.
Seria demasiado se o egoísmo e a soberba não inclinassem o homem no sentido da
estima própria; mas, para contrabalançá-la, há que puxar a rédea pelo lado
oposto e persuadir-nos de que somos vis e miseráveis pecadores, piores do que a
pior alimária, e que faríamos das nossas se Deus nos largasse de sua piedosa
mão.
Isto
o vereis mais claramente mediante uma comparação. Olhai um cavalo de puro
sangue, arisco, selvagem, que jamais aguentou sela no lombo. Leva em cima e em
pêlo um bom ginete que o sujeita com a brida. O cavalo lança-se com ímpeto
cego, empina-se, irrita-se, dá corcovos; mas o ginete refreia-o com mão de
ferro, puxa de modo cruel, quiçá exagerado. O bruto mastiga o freio, espuma,
freme de cólera; porém, mesmo a contragosto, obedece ao freio. Se fosse manso,
não haveria necessidade de brida nem de braço vigoroso que lhe acalmasse o
ímpeto; um simples cabresto manejado por um menino bastaria. Assim é o homem.
Cheio de si mesmo, quer voar sobre as nuvens; mas a consideração da sua miséria
refreia-lhe os ímpetos, e a freada tem de ser vigorosa para que surta efeito.
Nas
balanças, quando um dos pratos baixa de mais, é preciso pôr muito peso no outro
para que ambos fiquem no fiel. Assim também, é preciso nos carregarmos com
muitos pensamentos humildes e humilhações para que abatam os fumos da nossa
soberba.
4.
— Como vedes, a humildade abrange muita coisa, e podemos dizer que ela é o
caminho para todas as virtudes. Não é em vão que Cristo se esforça por nos
ensinar a humildade de lá da cátedra do presépio.
Santo
Inácio, no seu livro de Exercícios, propõe à nossa consideração três degraus de
humildade para que nos resolvamos a subir por eles.
O
primeiro é de necessidade para se salvar, e consiste em humilhar-se de tal
maneira que, “ainda quando nos fizessem senhores do mundo todo, não deliberemos
infringir um mandamento que obrigue a pecado mortal”. Por este grau de
humildade deveis preferir a morte a cometer um só pecado mortal. Isto já o
deixamos apontado como consequência da consideração do Inferno. Estais
lembrados? Aqui vereis a bela concatenação dos Exercícios espirituais, e como
formam um conjunto lógico que convence o entendimento e move a vontade a mudar
de vida.
O
segundo grau de humildade, mais perfeito que o anterior, consiste em achar-se o
ânimo em tal disposição, que não prefira a saúde à doença, as riquezas e as
honras à pobreza e aos desprezos; enfim, que se esteja em disposição de abraçar
o que Deus quer para salvar a própria alma. Também tratamos disto ao falarmos
da indiferença, na primeira meditação do fim do homem. Quem melhor do que nosso
Senhor sabe o que nos convém para a nossa salvação? Bem seguros podeis estar de
que, se Deus quer que passeis a vida em pobreza e em desprezo, é isso o que vos
convém... De que vos serviriam riquezas e grandezas humanas, se, no fim da
vida, tivésseis de deixá-las com pena e, por causa delas, condenar-vos
eternamente?
Alfredo
é um menino de muito mau contentar. Sua mamãe, que é ótima enfermeira, põe-lhe
em cima da mesinha de cabeceira uma mistura eficaz contra o mal que o menino
padece. A mistura realmente é amarga ao gosto, muito amarga. O menino, que
gosta de caramelos e de doces, quando sua mãe se descuida levanta-se da cama,
tira do armário uma lata e empanturra-se de doces. A febre sobe, o doente
piora, fica em perigo de morte... A mamãe trata-o, cuida dele, administra-lhe a
mistura amarga, que o me nino toma à força e, graças a ela, sai desses apuros.
Este
é o caso de quem se obstina em escolher aquilo que lhe agrada, e não os goles
amargos que Deus quer que ele beba.
Há
meninos que prefeririam não ir à escola, mas vagabundar pelas ruas como uns
perdidos, porque o estudo lhes é duro, e ainda mais duras as repreensões do
mestre. Os que isso fazem não praticam este segundo grau da humildade, que consiste
em ficar indiferente entre o agradável e o desagradável, e escolher o que é
vontade de Deus que se escolha.
O
terceiro grau de humildade consiste em escolher, entre duas coisas ambas
lícitas, a que mais nos desagrada; entre pobreza e riqueza, a pobreza; entre
humilhação e honra, a humilhação; entre espinhos e rosas, os espinhos; entre
dor e alegria, a dor, para imitar Cristo, que escolheu pobreza, humilhações,
espinhos e dores. Este, meus filhos, é o verdadeiro grau de humildade a que
deveis subir. Oh! que grau elevado e difícil! Contudo, se quiserdes tirar fruto
destes Exercícios, é preciso vos conformardes com ele.
Neste
generoso intento servir-vos-á a consideração que fizestes do Nascimento de um
Deus num presépio. Se não fosse tão dificultoso este grau de humildade, Cristo
não se haveria humilhado pelo modo como o fez. Já agora não poderemos dizer-Lhe:
“Senhor, não posso ser tão humilde assim”; porque Ele nos tapará a boca com
estas palavras do Seu Evangelho: “Dei-vos o exemplo, para que, assim como eu
fiz, vós também o façais” (Mt, XII, 15).
Havia
uma vez um grande rei à frente do seu exército, exército que era um bando de
indignos na sua maioria. Dos soldados, uns eram traidores, e os que não
alimentavam pensamentos de traição eram pelo menos traidores arrependidos. O
rei sabia de tudo isso e, sem embargo, amava os seus soldados.
Havia
que atravessar um lodaçal para subir depois pela encosta abrupta, que, serpeando
por uma grande montanha, se perdia nas nuvens. Duro era o caso, e o que mais
doía àquelas hostes turbulentas era o ter que atravessar o lodaçal com barro
até os joelhos.
O
rei expôs o seu desejo, que não admitia réplica.
Oh!
— disse um soldado mais cheio de nicas do que uma menina dengosa. — Mancharei
minhas calças de flanela.
Os
salpicos de barro me chegarão à cara — acrescentou outro — e eu me barbeei há
pouco e pus cosmético.
O
barro cheira mal — opinou um terceiro.
Isso
é rebaixar-se — murmurou um oficialzinho torcendo o bigodinho.
Que
passem as rãs e os sapos — afirmou um brutamontes.
Não
se passa... não se passa... — proclamou uma voz geral, e aquela má gente
negou-se a obedecer ao monarca.
Então
o filho do rei desceu do seu trono e disse: — Eu passarei.
Despojou-se
das suas vestes reais, tomou o capote de um soldado e meteu-se pelo lodaçal.
Alguns nem o viram, porém muitos que, apesar de serem algo animais, ainda
teriam uns restos de homem, seguiram o Príncipe com entusiasmo. Quem não o
seguiria, vendo como ele ia, abrindo caminho e tirando lodo para que seu
exército passasse, e salpicando-se com ele, e parecendo, mais do que filho do
rei, um ente desprezível, com barro até os cotovelos?
Uma
vez que o Príncipe passou, os que quiseram segui-lo subiram com ele pela
ladeira acima, e perderam-se no mais alto, até tocarem o céu com as mãos e se
lhes abrir caminho por entre as nuvens. Os covardes e traidores que ficaram do
outro lado do lodaçal blasfemavam e rugiam de despeito.
Por
esta parábola quero significar-vos o caminho real da humildade. O exército são
os homens, com os restos dos maus vezos que pelo pecado original contraíram,
maus na maioria, pelos pecados próprios. O Rei, que é Deus, exige-lhes que se
humilhem, que vadeiem o abismo da sua própria miséria e a experimentem; mas os
homens soberbos resistem. A uns, como o soldadinho da calça de flanela, não lho
permite a sua tola vaidade; outros temem a humilhação, como aquele outro os
salpicos de barro; uns fogem dela por sensualidade; outros, como o oficialzinho,
abominam o rebaixar-se seja lá pelo que for e por quem for... E esta oposição é
tão universal no mundo, e tanto mais o era antes de Cristo, que o Filho do Rei,
o próprio Filho de Deus, para dar exemplo, toma o capote de um soldado,
vestindo-Se da nossa carne, desce ao nosso barro, enlameia-se e faz-se
desprezível ante a multidão das gentes. Os bons seguem-no e se humilham a seu
exemplo, mas ai! muito menos do que Ele, porque Ele já suportou as maiores
humilhações fazendo-Se menino, nascendo num presépio, sofrendo desprezos,
morrendo na cruz. Em vista de tais extremos, os Seus fiéis soldados seguem-nO,
atravessando pela humildade, escolhendo serem desprezados n’Ele e por Ele.
Imediatamente começa a ladeira penosa da santidade que se sobe em companhia de
Cristo e se perde nas nuvens... Chega o último dia: os humildes sobem com
Cristo aos Céus; os soberbos ficam com a sua soberba, blasfemando e raivando,
lenha segura com que se alimentarão as chamas do inferno.
Quando
se vos oferecer ocasião de vencerdes a vossa soberba, de sofrerdes em silêncio
uma repreensão injusta, de serdes pospostos aos outros, de ninguém se lembrar
de vós... recordai a parábola; então é ocasião de seguirdes a Cristo e de, como
Ele, aparecerdes miseráveis e envoltos no nosso barro. Quando as culpas e
traições passadas entenebrecerem a vossa alma e resistirdes a ter de vos
humilhar ante o confessor para lhe explicar as vossas misérias, lembrai-vos da
parábola, descei ao vale do vosso lodo e, embora com rubor e repugnância,
dizei: Sou pecador. São estes os meus pecados, Padre. Absolvei-me, se sou
digno. E depois desta humilhação necessária para vos salvardes, começará a
ascensão pelo monte da santidade, até vossa alma remontar-se e perder-se por
entre as nuvens.
Amai
a humildade preferindo serdes desprezados por amor a Cristo a procurardes honra
e dignidades em companhia do exército turbulento dos soberbos.
5.
— Parece-me estardes convencidos de que precisais ser humildes, à imitação de
Cristo. Mas como o sereis?
Isto
é longo de explicar. Pode-se dizer que o exercício desta virtude abrange todas
as circunstâncias da vida, porque em todas elas mete a cabeça a maldita vaidade
e soberba, mesmo nas ocasiões em que menos deveria metê-la.
Já
vistes esses campos incultos, cheios de cardos espinhosos que agitam orgulhosos
a sua cabeça encarnada ao menor vento? Assim é a multidão inúmera dos vaidosos,
cheios de si mesmos. Ao menor vento de louvor, eles balançam as ocas cabecinhas
como os cardos. Deixai que passe por aquele terreno inculto o arado: os cardos
caem e soterram-se. Estarão mortos? Qual! Aguardai: quando me- nos pensardes,
eles farão sair ufanos a cabeça de entre os torrões. Assim os vaidosos, mesmo
no meio do labor das próprias virtudes, erguem a cabeça ao ventinho da estima
própria. Um menino está rezando mui devoto, e esse ventinho sopra-lhe ao
ouvido: “Dirão que és um santo”. E o grande tolo sorri de satisfação. Adeus! Um
pensamento de vaidade deitou a perder aquela boa obra. Oh, maldita vaidade, que
destróis a essência da obra mais virtuosa!
A
venerável serva de Deus sóror Joana de la Concepción, religiosa mercedária,
referindo-se à vanglória, dizia ser esta “uma doce despojadora das nossas obras
espirituais; um alegre inimigo, ladrão dos nossos bens”. Num dos nossos
colégios tínhamos um cão tão maroto como manso, e era mesmo muito manso o
animalzinho. Fazia festa a todos os colegiais que merendavam; lambia-lhes o
rosto, e com muita suavidade tirava-lhes a merenda. Isto faz a suave inimiga
nossa, a vanglória: com muita suavidade e fazendo- nos quatro carinhos,
tira-nos o mérito das boas obras. Oh! quanta necessidade temos da humildade
para contrabalançá-la!
6.
— Como a humildade perfeita está no terceiro grau, trataremos de chegar a ele;
porém está muito alto, e não o podem galgar de um pulo senão os grandes
saltadores, que são os grandes santos. Apoiemos-lhe uma escada de diversos
degraus e vamos explicando estes. O primeiro degrau para chegar ao terceiro
grau de humildade é conhecer-se a si mesmo.
Quereis
saber o que sois? Sois saquinhos de lixo, e não digo sacos, porque chegareis a
isto com o tempo. Não quero deter-me a considerar o que é o vosso pobre
corpinho. Olhai-o fervilhante de vermes na cova do sepulcro, e com isto já
tendes bastante. Oh, meus filhos, a vaidosa que caia o próprio rosto com pós,
rosto que Deus criou sem aditamentos nem porcarias, sabeis o que ela é? Pus e
vermes. A Escritura di-lo: “Eu disse ao pus: És meu pai; e minha mãe e minha
irmã são os vermes”. E esses trapinhos que a envaidecem são... já o disse:
trapinhos. E as argolas, anéis, correntinhas? Metais que a terra cria. Mais
linda é uma flor, e murcha num dia.
E
os dons do espírito que exornam vossa alma?... Orgulho, vaidade, raivas, ânsias
desmedidas de brincar, ciúmes, tagarelice... Oh! que ladainha comprida! Pois
esses são os adornos de vossa alma. Há de que vos envaidecerdes? Não há, antes,
muito de que vos humilhardes, com um corpo miserável e uma alma ainda mais
miserável? Quem sabe se, entre os que me escutam, não há algum santinho ou
alguma santinha? Mas quem se crê santo ou santa, pelo simples fato de o crer,
já o não é, pois os santos sempre se julgam grandes pecadores. Deixemos, pois,
intacta a ladainha das vossas misérias.
Agora
entre cada um dentro de si mesmo e diga: Meu Deus, o meu corpo é uma miséria, e
misérias muito maiores afeiam a minha alma. Quando examino as coisas boas que
tenho feito, vejo que elas andam misturadas com uma liga de vaidade. Não tenho
nada de bom, porém, antes, muito de mau, porque tenho pecado, tenho ofendido a Vós,
meu Deus, o que é a coisa mais feia que se pode fazer neste mundo. Então, de
que é que me envaideço? Por que te ensoberbeces, pó e cinza? Mereço, Senhor,
que todos me desprezem.
Não
me desagradam as Vossas disposições a respeito da prática da humildade, se
começais vos afundando no vosso próprio conhecimento; mas pode muito bem
acontecer que, apesar de estardes persuadidos de que sois barro e mau barro,
pois sois barro pecador, não queirais ser tidos como tal. Todavia, o querermos
ser tidos por miseráveis é o segundo degrau que leva ao cimo desta virtude. Não
me parece coisa muito difícil estarmos persuadidos de que somos maus e
miseráveis; porém o é, e muito, o desejarmos que outros nos tenham neste
conceito.
Leonardo
é um menino que estuda geografia e dela não sabe coisa alguma. Diz que o Ebro é
uma montanha de neves perpétuas, e assegura que os Pirineus são uns habitantes
da Rússia, sendo a Rússia uma cidade dos Estados Unidos. Além disto, define
porto dizendo que é o masculino de porta, uma porta muito grande. O mestre
corrige-o; o pequeno convence-se de haver dito uma série de disparates; mas
recomenda ao mestre não dizer a ninguém que ele é um ignorante.
Como
vedes, Leonardo é um ignorante vaidoso. Ele sabe disto, mas não quer parecê-lo.
Este pequeno não é humilde, como tão pouco o seria o menino que, conhecendo os
seus defeitos e misérias, os ocultasse com muitíssimo cuidado e, assim,
forjasse a ilusão de que não os tem. Porém muitas vezes acontece que Deus
Nosso Senhor se serve dos homens para revelá-los, e então é dupla a humilhação.
Uma
vez um burro mirou-se numa fonte, e, ao ver-se com aquele par de orelhas
colossais que o faziam parecer tão estúpido, compreendeu por que era que o
chamavam burro. Para que não mais o motejassem com esse nome, que se lhe afigurava
ignominioso, meteu as orelhas entre as correias do cabresto, de modo que
parecia lhas houvessem cortado. Excessivamente ufano e satisfeito, começou a
pavonear-se entre o povo, dizendo:
Não
vêem como já não sou burro?
Mas
a turba maldizente zombava dele e dizia:
Burro
desorelhado!
Amofinado
e triste, o burro voltou à sua estrebaria, repetindo: Antes me diziam somente
burro; agora dizem-me burro e desorelhado.
Assim
acontece aos que procuram ocultar os seus defeitos para não passarem pela
vergonha de que lho digam. Descobre-se-lhes a artimanha na primeira ocasião, e,
além de serem tidos pelo que são, põem-lhes as pessoas o aditivo de vaidosos e
orgulhosos, o que é uma nota desabonadora dobrada.
Quer
isto dizer que àquele que, em vez de desejar a humilhação, foge dela, a humilhação
virá em breve buscá-lo, quando ele menos pensar.
Vamos
galgando o terceiro degrau na prática da humildade.
Inútil
seria estardes persuadidos de serdes maus e miseráveis, e mesmo de serdes
tidos como tais, se, em chegando a ocasião da humilhação, não a aproveitásseis.
Isto quereria dizer que a convicção da vossa miséria e o desejo de humilhação
eram de mentira. Quereríeis ser humildes, e, quando alguém vos humilha,
levantais a cabeça como aqueles cardos de que vos falei. Ai, que do dito ao
feito há muita distância! E, todavia, é de necessidade a humilhação para se alcançar
a humildade.
Paulina
é uma pequena que gosta muito de piano, e pensa em ser pianista. Tem piano e
professora e seu livro de exercícios; mas é muito pesado tocar escalas e
arpejos, e se lhe fatigam as munhecas. Adota, pois, um método novo para chegar
a ser pianista. Consiste esse método em contemplar o seu piano de alto a baixo
muito bem, todos os dias, considerando, como é bonito ser pianista; mas
tocá-lo?... nem por pensamento. Passam-se dois ou três anos, e ela sabe tanto
como no primeiro dia. A mestra deixa-a, mas não sem antes lhe dizer,
desiludida: É impossível ser pianista sem tocar piano nem pouco nem muito.
O
mesmo acontece com esta bela virtude da humildade. É impossível ser humilde sem
tocar a humildade, isto é, sem ser humilhado e sem receber de bom grado a
humilhação. O caminho para a humildade é humilhar-se. De que servem os desejos
desta virtude, se se aborrece a humilhação? Resolvei-vos a ser humilhados, e,
quando chega a ocasião, aproveitai-a.
Vedes
aquele menino caladinho, de joelhos a um canto? Pois está praticando um belo
ato de humildade. Ele acaba de ser repreendido pelo mestre. O mestre chamou-o de
vadio e vagabundo, mas em verdade ele não é nem uma coisa nem outra. Um pequeno
que lhe quer mal acusou-o de ter estado borrando o papel com bonecos durante a
hora do estudo, mas é mentira. O pequeno envergonha-se, mas pensa em Jesus
humilde e desprezado, e se cala e não se defende. O mestre castiga-o pondo-o de
joelhos no canto. O menino cumpre o seu castigo e, enquanto o cumpre com
lágrimas nos olhos — isto sim, coitadinho, pois afinal ele é de carne fraca, —
com pranto e com mágoa diz baixinho: “Jesus bom, recebe esta humilhação, pois
bem a merecem os meus pecados. Para minha próxima comunhão, ofereço-te este
pequeno sacrifício”. E, de lábios trêmulos, envia um beijo silencioso ao
sacrário. O seu anjo ouve a prece, e escreve esse ato de humildade e de amor
com letras de ouro no livro de contas que traz debaixo do braço, para
apresentá-lo ao Juiz Supremo no último dia.
Estais
vendo que belo ato de humildade pratica esse bom menino? Estais vendo como vos
haveis de comportar em casos semelhantes?
Estais
convencidos de que esta virtude se começa com a prática voluntária da
humilhação, mas convencidos também de que esta humilhação custa muito, como
acontecia ao menino bom que vos expliquei. Mas os que sobem um degrau alto,
muito alto, o mais alto da ladeira por onde caminhamos rumo ao cimo da
humildade, oh! os que galgam este degrau, estes, sim, já são humildes! estes já
estão no terceiro grau da humildade de que antes vos falei! Consiste ele em
escolher com alegria os desprezos, as humilhações, a pobreza, por amor a Cristo
pobre, desprezado e humilhado.
Agora,
depois de vos haver explicado e esmiuçado a humildade, acomodando-me ao vosso
tenro juízo, vislumbrareis sequer como é grande e sublime o terceiro grau da
humildade? Estais resolvidos a ser desprezados? Quereis ser os últimos? Se vos
encontrásseis nestes casos, vos alegraríeis? Por que não? Por que não imitardes
a Cristo, que se humilhou por vós?
Certa
vez S. Filipe Néri pôs-se a beber vinho, empinando o odre com muita graça no
meio da rua. As pessoas se riam; ele não procurava outra coisa: queria ser
desprezado por amor de Cristo.
Outra
vez um santo pôs-se a balançar-se no balanço em companhia dos pequeninos, para
que o tivessem por falta de sizo.
Ia
um cavalheiro importante para conhecer um religioso de grande fama de santo. O
frade soube a que vinha o fidalgo, e pegou um pedaço de pão com queijo e
começou a comer como maluco pelo claustro.
É
esse o frade santo que me diziam? perguntou o cavalheiro, estranhando. — Esse
não é santo, é mentecapto. — O cavalheiro retirou-se indignadíssimo, e o frade
ficou contentíssimo com a humilhação.
Assim
obram os santos, assim procuram os desprezos os seguidores de Cristo, assim
galgam este terceiro grau de humildade.
7.
— Agora, para terminar, ouvi-me uns conselhos práticos para alcançardes esta
virtude.
Seja
o primeiro o de nunca falardes de vós mesmos, nem em bem nem em mal. Claro está
que louvar-vos direta ou indiretamente é tolice, e os próprios mundanos
procuram não se louvar para não parecerem vaidosos. Mas chamar-se pecador,
ignorante e miserável será mau? Não é mau, pois muitos santos o praticaram de
coração; mas é perigoso. Sabeis por que é que muitos fazem e dizem tolices
deste jaez chamando-se pecadores? Para serem tidos como santos. Pedem que lhes
digam os seus defeitos, que os recomendem a Deus, pois são maus, e com isso
procuram que os outros os tenham por humildes. E o curioso do caso é que muitas
vezes eles fazem estas coisas sem compreender a tolice que fazem. Tão astuta é
a vaidade espiritual!
A
esta um místico chamava humildade de gancho, por ser uma espécie de gancho para
sacar do peito de outrem o que ele opina sobre a vossa virtude.
Havia
uma vez uma menina que andava sempre de cabeça baixa, de olhos baixos, de mãos
cruzadas sobre o peito. Chamava a si pecadora e má. — Que santa! — diziam
todas.
Um
dia, uma de suas companheiras chamou-lhe hipócrita. A santinha saltou feito um
basilisco, e respondeu com frases escolhidas do repertório de quitandeiras e de
mulheres de rua. A outra espantou-se da saída, mas não se teria espantado se
houvesse sabido que aquela era uma humildade de gancho, embuste e fingimento,
para criar ambiente de humildade, portanto a mais refinada soberba e,
juntamente, hipocrisia.
Não
sejais assim vós, meus filhos. Deveis ser humildes de verdade, sem vos
chamardes pecadores, o que não é preciso, pois nisto há os seus perigos, como
vistes. Muito menos vos deveis chamar virtuosos, ou dizer que tendes esta ou
aquela qualidade, ou que sabeis tal coisa ou tal outra. Oh! esta virtude se perde
com suma facilidade entrando em confronto a própria pessoínha!
O
segundo conselho é fugirdes dos que vos adulam, e mesmo dos que vos elogiam com
frequência. É perigoso ouvir elogios. Então aparece o que aquela santa dizia: a
“doce ladra” que furta o mérito da obra boa. Quando uma pessoa se envaidece de
algo de bom que fez, perde o mérito, e Jesus lhe diz: “Já percebeste a tua
paga”. Que pena! Por ouvir com gosto um elogio, perder tudo!
Semelhante
a este conselho é outro que vos dou de que procureis aquele que vos censura e
repreende: este é bom amigo. Um confessor que vos crava a lanceta simultaneamente
com um carinhoso “meu filho”, esse vos convém; um mestre que nunca vos diz uma
palavra de louvor, antes vos faz muitas advertências e repreensões, bom mestre
é esse, procurai-o.
Seja
o outro conselho nunca responderdes quando forem vários os perguntados, nem
quererdes sobressair como perspicaz. Se vos julgásseis o último de todos, não
daríeis a conhecer a vossa sábia opinião.
Outro
conselho será não falardes das vossas coisas nem da vossa família. Vereis às
vezes um pequeno que, em tudo quanto fala, vai parar em si mesmo, o que é
soberba intolerável. Se se fala de dinheiro, na casa dele há mais dinheiro! Se
se fala de cães ou de gatos, ele tem um cão cor de canela que faz maravilhas, e
um gato Angorá que é uma preciosidade. Se se fala de nações e povos, a sua
nação é melhor, o seu povo o mais bonito, a sua casa a mais cômoda. Se se fala
de pesca, ele nunca pescou, mas tem um tio que pesca... o mar todo. O vaidoso
destila vaidade e satisfação própria por todos os poros; é ridículo, e o
coitado não o conhece. Como cega este vício! Nunca faleis, pois, das coisas que
vos dizem respeito, ou que, mesmo de longe, têm a ver com a vossa honra ou
dignidade.
Outro
conselho é não pensar muito voluntariamente em si mesmo, exceto quando se faz o
exame de consciência. Nem mesmo para se corrigir convém fixar muito a
consideração em si mesmo, mesmo com escusa de santidade, porque costuma criar
uma espécie de egolatria que perturba o juízo. Basta-me que, deste substancial
conselho, entendais o não pensardes voluntariamente em vós. O esvaziar-se de si
mesmo para se encher de Cristo, que é o alcance do conselho, entendê-lo-eis
quando fordes maiores.
Outro
conselho será não responderdes quando vos repreenderem, ainda quando não fosse
verdade o de que vos acusam. Lembrai- vos do exemplo que vos dei daquele menino
que num canto sofria com humildade um castigo injusto.
Também
é muito importante o conselho de não ambicionardes altos postos e dignidades.
Vós ainda não podeis pensar em grandes dignidades, porque sois crianças, mas de
pequenos se conhece a vossa afeição aos altos postos. Perguntai a um
meninozinho que mal sabe o a se quer ser soldado ou general, e ele vos
responderá que quer ser general. É preciso reprimir estas inclinações naturais,
e não as animar com pensamentos orgulhosos.
Havia
uma vez uma rã num charco, ao pé de um monte muito elevado. As vezes ela punha
a verdosa cabeça fora do limo e dizia:
Oh!
se eu estivesse no cimo do monte!
Pôde
tanto nela este pensamento, que um dia ela se resolveu a subir. A pequenos
saltos ou andando preguiçosamente, cada dia ela avançava alguns metros. Ao cabo
de um ano pôde chegar ao cume. Mas, ao dar o último salto de contentamento,
tropeçou numa pedra, e, dando voltas, rolou pelo monte abaixo, até chegar outra
vez ao pântano. Então compreendeu o seu equívoco e disse cheia de amargura:
Errei!
Errei!
Desde
esse fato, as rãs não cantam de outra maneira.
Assim
poderiam cantar também muitos meninos ambiciosos quando se vêem ludibriados:
Errei!
Errei!
Determinai-vos,
pois, a alcançar esta virtude tão necessária como bela. Por ser ela tão
simpática e atraente, até a vaidade se encobre com ela.
Uma
vez Nosso Senhor quis coroar de flores a humildade, e imediatamente acorreram
todas as flores. O Senhor viu-Se um pouco embaraçado para escolher entre tantas
e tão lindas. A maioria delas, ao olhar para a humildade tão soberanamente
bela, queriam cingir-lhe a fronte, e aproximavam-se do Senhor oferecendo-Lhe as
suas corolas e dizendo:
A
mim! A mim!
O
Senhor pôs de lado umas dálias por espalhafatosas; umas camélias, desprezou-as
por inodoras, e até afastou uns cravos, que se retiraram um pouco ressentidos.
Ofereceu-se-Lhe então a rosa, certa do seu triunfo: era a rainha das flores, a
mais bela e fragrante. O Senhor inclinou-Se para colhê-la, mas espetou-o um
espinho:
Tão
linda e com espinhos? — disse Ele, e não a quis.
Mas
percebia-se um aroma que saía de entre a erva. Por entre uns raminhos o Senhor
viu uma violeta que se inclinava envergonhada, ocultando a gentil corola por
entre as fibras.
Eras
tu, florinha boa, que despedias essa fragrância? Tu te pareces com a humildade,
ocultas-te como ela, e tua fragrância rescende no mais fundo da alma. Serás tu
que lhe formarás a coroa.
Disse,
e cingiu a fronte da humildade com essas fragrantes florinhas. E desde então a
violeta é símbolo da humildade.
Meus
filhos, enamorai-vos da humildade, vede-lhe a representação na violeta sem
cores brilhantes, roxinha e oculta, mas fragrante. Amai-a como Cristo a amou, e
praticai-a como Ele a praticou vestindo-se da nossa carne e nascendo, num
presépio, de uma humilde donzelinha.
A
essa Virgem pura que tanto exceliu nesta virtude necessária, pedi que vo-la
conceda para humilhardes o vosso coração soberbo. Com isso começareis a
praticar todas as virtudes, pois a humildade tira o maior tropeço para
consegui-las, que é o amor próprio.
Para
conseguirmos esta virtude, rezemos-lhe três Ave-Marias.