terça-feira, 8 de junho de 2010

XIV - OS CRAVOS

XIV - OS CRAVOS


 

Avizinhamo-nos do desfecho. Sustentado e quase carregado pelos soldados, Jesus galgou a montanha; antes de chegar ao cimo, um pouco à esquerda, fazem-no parar.

Enquanto os algozes vão fazer os últimos preparos, estender a Cruz, preparar as cunhas para fixá-la no buraco cavado no próprio rochedo, aguçar os cravos e dispor tudo o mais, cumpre assegurar-se da Pessoa de Jesus. Descem-nO a uma espécie de fossa, no fundo da qual há uma grande pedra, que se mostra ainda hoje, munida de dois orifícios por onde se passam as pernas do condenado. Amarram-nas por debaixo, a fim de tornar impossível toda fuga.

No estado em que se acha a Vítima, a precaução é inútil, mas persiste cruel. Do fundo dessa prisão improvisada, pode Jesus ouvir em cima, por sobre Sua cabeça, os preparativos, os gritos dos soldados, as blasfêmias dos dois salteadores que devem ser crucificados com Ele, e todo aquele vai-e-vem de gente que quer ver terminado aquilo o mais depressa possível. Em baixo é o redemoinho tumultuoso da multidão. Como o cimo do Calvário é pouco largo, o povo ficou no sopé.

Todo o vale regurgita, pois, de gente. O Calvário está rodeado daquela plebe que espera, que acha que espera demais, que chacoteia e se diverte. Circulam por entre ela os sacerdotes, fazendo de atarefados e de importantes. Vários dos principais vão até ao cimo, como que para inspecionar de mais perto o trabalho dos criados: outros espiam Jesus no fundo da fossa, e, se levanta a cabeça pesada, pode o Mestre ver por cima dEle aquelas caras escarninhas e rancorosas.

A meio caminho pouco mais ou menos do Calvário e do túmulo novo de José de Arimatéia, num recanto mais solitário do valado e frente para o Gólgota, há um grupo doloroso de mulheres de véu e que choram. No meio há uma mais nobre, mais aflita, que parece cercada das afeições e das simpatias respeitosas de todas: é Maria, a Mãe do Condenado. Stabant autem omnes noti ejus a longe. Erant autem ibi mulieres multae a longe (Lc 23, 40; Mat 23, 49).

Essas mulheres não podem aproximar-se ainda nem de Jesus nem do alto do Calvário; a multidão é demasiado compacta. Uma parte dessa multidão, a mais ávida e mais rancorosa, queda imóvel como num espetáculo vivamente esperado. Et stabat populus spectans (Lc 23, 35). A outra parte é móvel: praetereuntes, transeuntes, curiosos, passeantes; como o Calvário fica perto da cidade, aflui-se de todos os lados: dá-se volta ao outeiro, quer-se ver principalmente o momento em que será crucificado o Condenado, para Lhe ouvir os gemidos, para surpreender-Lhe a dor; e, quando Ele surgir sangrento e lívido, volvendo as costas a Jerusalém, com os dois braços estendidos no cimo do Calvário, será uma exclamação, um grito de alegria satisfeita e de paixão saciada.

Esse momento veio. De baixo a multidão viu os soldados se dirigirem para a fossa onde está acorrentado Jesus.

Aparece Ele, cambaleante: a silhueta branca, pois Ele tem ainda a Sua veste comprida, desenha-se-Lhe trêmula no cimo do Calvário: faz-se subitâneo silêncio em toda a multidão. Tiram-Lhe a veste branca, arrancam-Lhe a túnica vermelha: e então o corpo tiritante, estriado de Sangue, cavado de golpes, aparece nu aos olhos de todos.

Ó Jesus, nenhuma humilhação Vos foi poupada: operuit confusio faciem meam (Sl 48, 8), o rubor da vergonha cobriu-me o Rosto, dizeis antecipadamente pelo Vosso Profeta, e é o único véu que se permite irrisoriamente à Vossa Santa Humanidade.

Está tudo pronto: a Cruz jaz estendida à direita da cova; empurram para ela a Jesus, deitam-nO nela brutalmente, em cima do Calvário há unicamente os algozes; de baixo seguem-se portanto com cruel atenção todos os movimentos dos soldados e dos criados. Porque já não se vê Jesus, mas advinha-se facilmente, naquele grupo de verdugos agachados, que a cruel empreitada vai começar. De feito, um braço se eleva e a primeira martelada reboa no silêncio.

O primeiro cravo se enterra numa das mãos do Salvador; as marteladas vão se sucedendo bruscas e aceleradas. O ruído surdo ouvir-se-ia das fortificações, tal o silêncio que faz a multidão para as escutar e contar. Aproximemo-nos, vejamos também nós, contemos.

Tudo se faz sem consideração, brutalmente, e o próprio martelo parece tomado de ódio e de furor, tanto bate a golpes redobrados; um soldado segura a extremidade das mãos estiradas, para que o cravo se lhes enterre melhor, sem ser estorvado pelos dedos forçosamente contraídos. O que bate os cravos quase se senta no ombro do paciente; os outros firmam o corpo que a dor faz estremecer.

E a Face Divina perdida nos cabelos, banhada toda em suor e em Sangue, pende para trás espantosa, de uma lividez marmórea. Quando a primeira mão é assim cravada, passa-se à segunda. Depois vem a vez dos pés. Aqui a operação é mais longa e mais cruel.

Os cravos pontiagudos, quadrangulares, rasgam a Chaga com as quatro arestas. Quando já penetraram totalmente, há que recurvar-lhes a ponta por detrás, e isto não se faz sem novos abalos e cruéis pressões.

O Corpo é assim fixado, esticado em excesso; porque se houve de prever o alargamento das feridas; os ombros se desconjuntaram, os ossos apartados podem-se contar todos: dinumeraverunt omnia ossa mea (Sl 21, 18); o peito está cruelmente saliente, tudo o que fica abaixo está tão retirado para trás que parece colado ao madeiro da Cruz; o Sangue escorre em rios e um frêmito doloroso faz palpitar da cabeça aos pés aquela Carne lívida.

A Cruz é então arrastada até à cova do rochedo. Erguem-na por detrás amparando-a com escadas, depois ela cai pesadamente no fundo, em meio aos gritos da multidão, aos gemidos angustiados da Vítima e debaixo de uma chuva de Sangue que essa última e brutal sacudida faz cair abundante em toda a volta. Jesus, assim violentamente esticado, está doravante imóvel no horrível sofrimento.

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(“A subida do Calvário”, do Pe. Louis Perroy, SJ)

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