A formação do coração
Parte III
2º - O amor dos pobres e dos criados
A criança será assaz amante, quando tenha sido criada no amor da família?
Não.
O seu coração deve alargar-se; a sua bondade nativa deve atingir outros objetos e exercer-se, muito especialmente, em relação às pessoas que facilmente consideraria como seres inferiores, se não estivesse bem formado: quero referir-se aos pobres e aos criados.
Como se deve despertar, na criança, a bondade para com os pobres?
Dando-lhe, muito cedo, aquilo que a Sagrada Escritura chama o cuidado do pobre: Beatus qui intelligit super egenum et pauperem (Ps. XLI)
Chegaria facilmente a criança, entregue a si mesma, a este cuidado afetuoso?
Não.
Apenas veria, no pobre, os farrapos mais ou menos sórdidos que o cobrem, e as feições descompostas; e facilmente a assaltaria a repugnância ou a tentação de escarnecer.
Que fará a mãe para dar à criança a inteligência cristã do pobre?
Bousset fala da sublime dignidade do pobre: é que, sob os farrapos da miséria, pode existir uma grandeza oculta. (Kieffer, ob. cit., 345)
Sim, há uma grandeza oculta: é a inteligência humana primeiramente; é a dos sofrimentos que suporta com coragem; é a do dever cumprido, talvez sem consolação; é a da vida sem seduções, porque não têm alegria nem esperança; é, sobretudo, a semelhança do pobre com Jesus Cristo.
A mãe revelará a seu filho esta grandeza e esta bondade, abrir-lhe-á a alma ao respeito de que esse pobre merece ser rodeado.
Os pais contentar-se-ão com estas considerações gerais?
Estabelecerão, à maneira de lições de coisas, uma comparação entre a situação da criança e a situação do pobre, e mais especialmente a situação duma certa criança pobre.
1º - Os pais esforçam-se por proporcionar a seu filho todo o conforto possível.
É natural e, geralmente, legítimo.
Mas, se eles querem criar o amor pelos pobres, não devem esquecer-se de fazer notar que estas vantagens nem a todos estão asseguradas; que muitos são privados delas e sê-lo-ão sempre, sem que, no entanto, tenham nisso alguma culpa; que era possível que ao próprio filho essas vantagens faltassem por completo, como é ainda possível que nem sempre as goze.
2º - Dir-lhe-ão que há crianças, como ele, que não tem vestuário, nem lar, nem carne, nem gulodices, nem mesmo pão; que esse pequenino pobre, a quem ele dá muitas vezes uma moeda, sem afeição, como se ele fora duma natureza totalmente diferente da sua, é, no entanto, um ser semelhante a ele; e estimaria, tanto ou mais do que ele, as doçuras e os prazeres que dão o bem-estar e a riqueza.
Estas revelações interessam-no.
Tornar-se-á grave.
Fará mais perguntas.
E no seu coração germinará um caule de flor tríplice: a alegria do benefício, a gratidão para com os benfeitores, e a bondade para com aqueles que têm necessidade.
Como se poderá despertar a bondade do coração para com os criados?
Avivando-lhe que "legal, moral e cristãmente, esses servidores, tendo deveres, não podem deixar de ter também direitos; que alienam a sua liberdade por necessidade; que se deve ser bom para com eles, porque são menos felizes"
(Nicolay, ob. cit., p. 5-6)
3º - O amor ao trabalho
A criança tem necessidade de ser educada no amor pelo trabalho?
Sim.
Porque a criança é mais ou menos preguiçosa. O trabalho, com efeito, tem estado sempre, depois da queda, ligado a qualquer relutância ou esforço, e o homem procura instintivamente subtrair-se a ele. Por isso ninguém se deve admirar de encontrar nas crianças repugnância pela aplicação e pelo trabalho. Mas é de toda a necessidade triunfar dessa repugnância.
Como se educará a criança no amor pelo trabalho?
1º - Pela persuasão;
2º - Pelo atrativo;
3º - Pelo horror de perder o tempo.
Que considerações se podem aduzir para persuadir a criança da importância do trabalho?
Far-se-á compreender que o trabalho é uma obrigação, uma glória, um preservativo e uma fonte de bens.
Como se fará compreender à criança que o trabalho é uma obrigação?
Recordando-lhe e comentando estas palavras de São Paulo: "Se alguém não quer trabalhar, que também não coma." (II Tes., III, 10)
Como se fará compreender à criança que o trabalho é uma glória?
1º - Mostrando-lhe que, pelo trabalho, o homem se encontra, de algum modo, associado ao próprio poder do Criador.
2º - Dizendo-lhe como Mgr. Gibier: "É preciso que o trabalho seja uma coisa muito bela, para que Deus tivesse paixão por ele. É preciso que o suor que escorre da fronte do operário seja muito nobre, para que Jesus Cristo o tenha querido sentir na sua fronte"!
(Os nossos flagelos sociais, p.14)
3º - "É pelo trabalho que se reina"! dizia Luís XIV.
Quais são os males de que o trabalho nos preserva?
1º - A necessidade. Os homens, na grande maioria, são obrigados a trabalhar para ganhar a vida; e todos, sem exceção, devem submeter-se à lei do trabalho, se querem conservar a saúde: "A ociosidade é como a ferrugem, diz Franklim; estraga mais do que o trabalho; a chave que se usa está sempre limpa".
2º - O tédio, "o inexorável tédio, como lhe chama Bossuet, que existe no íntimo de toda a alma humana, depois que o homem perdeu o gosto divino" (Máximas e reflexões sobre a comédia) e ao qual ninguém pode escapar senão entregando-se ao trabalho, a um trabalho consciente e perseverante. Porque o "tédio entrou no mundo pela preguiça" (La Bruyére)
3º - O vício
"Imoralidade, incredulidade, preguiça, fazem um círculo, escreveu Joubert; o princípio está onde se quiser." (Pensamentos)
Ocupando a alma, o trabalho preserva-a dos "ensinamentos do mal que a ociosidade multiplica" (Eccli., XXXIII, 27). Deus confiou ao trabalho a missão que deu ao vento norte, a de purificar o coração, como o vento purifica a atmosfera.
Quais são os bens de que o trabalho é a fonte?
1º - A ciência. O trabalho dá ao operário, como ao homem de estudo, uma ciência útil e honrosa.
2º - A virtude. Santo Antônio, o patriarca do deserto, beijando as mãos de S.Macário, num ímpeto de admiração pelo trabalho que lhe haviam dado, dizia: "Eis umas mãos que têm muita virtude".
3º - A piedade. "O trabalho exerce uma influência salutar na observância da religião e reconduz os homens melhor do que os prazeres e a riqueza." (Le Play, reforma social, t.III)
Não é preciso também descansar?
Sim, evidentemente.
Mas o repouso é o estado acidental, que uma alma generosa considera humilhante por ele mesmo.
"Tendes necessidade duma casa, diz Bossuet, como duma defesa necessária contra as injúrias do tempo; isto é uma fraqueza. Tendes necessidade de alimento para reparar as vossas forças que se perdem; outra fraqueza. Tendes necessidade dum leito, quando estais fatigado e nele vos entregais ao sono, que prende e sepulta a vossa razão; mais uma fraqueza deplorável. E vós fazeis de todas estas provas, de todos estes testemunhos da vossa fraqueza, uma ostentação de vossa vaidade! Parece que quereis fazer alarde da miséria que vos cerca de todas as partes."
(Tratado da concupiscência)
Não se deve, portanto, repousar na medida estritamente necessária do descanso e da recuperação da energia vital.
Estas considerações serão sempre eficazes?
Facilmente, o serão, por uma parte, os pais tiverem bastante fé para transmitirem a convicção às palavras; e se, por outra parte, pais e filhos, acossados pela necessidade, forem compelidos para o caminho do trabalho pela obrigação cotidiana de ganhar a vida.
Não há uma dificuldade especial em conduzir pelo caminho do trabalho as crianças que sabem ser herdeiros duma grande fortuna?
Sim, e com muita freqüência. Mas também, que necessidade há de lhes fazer conhecer a situação de seus pais? Pai e mães: se vós sois ricos, que vossos filhos o não saibam senão o mais tarde possível.
Quais são as razões que os filhos dos pais ricos estão em perigo de abraçar?
1º - Eles dizem a si mesmos que, com a situação de seus pais, estão seguros de poder viver sem trabalhar.
2º - Alguns mesmo dizem isto em voz alta: "Soube, desde a idade de doze anos, que me estava destinada uma fortuna imensa e a mais bela posição do reino, sem ser obrigado a preocupar-me com ser um bom homem", dizia o duque de Lauzun, uma das tristes figuras da nobreza francesa, por fins de antigo regime.
Não haverá um estudante de liceu ou de colégio que não tenha conhecido alguns destes desgraçados, que a situação paterna e a fortuna materna dispensam de qualquer trabalho sério.
3º - Não chegam, contudo, ao ponto de considerar a ignorância como um privilégio. Mas os diplomas e, por conseguinte, a aplicação, o trabalho sério, as boas colocações, etc., os jovens de fortuna deixam tudo isso, com uma espécie de desdém, aos outros, àqueles que têm necessidade, os filhos dos diretores, engenheiros e mesmo contramestres da fábrica de seu pai...
Devemos contentar-nos com os bons conselhos, quando se trata de inspirar às crianças o amor pelo trabalho?
É preciso animá-las, excitá-las, mostrar-lhes como se trabalha, dar com elas alguns passos no caminho que elas hão de percorrer.
(Excertos do livro: Catecismo da Educação, do Abade René de Bethléem, continua com o post: O amor ao dever)
PS: Grifos meus.
Ver também: