Santa Cecília
Ao som dos instrumentos
Cecília cantava em seu coração
Ó Santa bem-amada, contemplo extasiada
essa sulco de luz que deixas atrás de ti.
Creio ainda escutar tua doce melodia;
sim, teu canto celeste ainda chega a mim!
De minha alma exilada escuta a oração:
Deixa-me reclinar em teu coração virgem
o lírio imaculado que brilhou nesta terra,
envolto em bela luz de fulgor sem igual.
Ó castíssima Pomba, atravessando a vida
só buscaste um esposo e não outro: Jesus!
Tendo escolhido tu'alma, a ela Se uniu,
pois a viu perfumada e com todas as virtudes.
Entretanto, um mortal cheio de juventude
sentiu o teu perfume, ó branca e celeste flor!
E a fim de te colher, de ganhar tua ternura,
Valeriano quis dar-te o seu coração.
Logo ele preparou núpcias magníficas,
com o palácio reboando ao som das melodias...
Mas teu coração virginal repetia cânticos
cujo eco divinal se elevava até o céu.
Que podias cantar longe de tua Pátria,
vendo a teu lado somente um coração mortal?
Querias, certamente, abandonar a vida
e te unir a Jesus para sempre no céu...
Mas não... ouço vibrar a tua lira angélica
lira do teu amor, de som que foi tão doce,
cantando a teu Senhor este canto sublime:
"Conservai puro meu coração, ó Jesus,
meu terno Esposo!..."
Que abandono inefável! Divina melodia!
Desvelas teu amor por teu celeste canto.
O amor que nada teme, adormece e se entrega
ao coração de Deus, como uma criancinha.
No céu apareceu, toda branca, uma estrela
que se pôs a alumiar com seus tímidos brilhos
a noite de esplendor que nos mostrou, sem véus,
o virginal amor do Esposo lá dos Céus...
Valeriano, em sonho, antevia a alegria
no desejo de ter, Cecília, o teu amor...
Felicidade e paz ele achou junto a ti
e tu lhe revelaste uma vida sem fim.
E lhe disseste: "Amigo, a meu lado, de pé,
um anjo do Senhor guarda puro o meu corpo;
jamais ele me deixa e, até quando adormeço,
com suas asas azuis alegre me protege.
Vejo brilhar, à noite, a sua face amável
com mais suave luz que o resplendor da aurora.
Seu rosto me parece a transparente imagem,
a pura irradiação do semblante divino".
E Valeriano: "Então me deixe ver esse anjo
senão podes temer que o meu amor se mude
em terrível furor, em ódio contra ti..."
Ó Pomba que num vão de rochedo se esconde!
Não temias a rede do teu caçador.
A Face de Jesus te mostrava sua luz,
repousava em teu peito o Evangelho sagrado...
Com teu doce sorriso assim recomeçaste:
"Meu celeste Guardião, escuta teu pedido
e tu logo o verás; ele te vai dizer
que para voar ao céu deves tornar-te mártir.
Mas antes de enxergá-lo é mister que o batismo
derrame em tua alma uma brancura santa
e que o Deus verdadeiro habite nela vivo
e que em teu coração viva o Espírito Santo.
O Verbo, Filho de Deus e Filho de Maria,
em Seu imenso amor Se imole sobre o altar.
Tu deves te assentar no Banquete da Vida
a fim de receber Jesus, o Pão do céu.
Então o Serafim te chamará de irmão
e vendo, dentro de ti, o trono do seu Deus,
far-te-á abandonar as pragas deste mundo
e verás onde mora o Espírito de fogo".
"Sinto dentro do peito ardor de chama nova"
Disse com alegria o fogoso patrício.
"Que esse Deus verdadeiro habite em minha alma,
Cecília, e o meu amor será digno do teu..."
Revestido da veste, emblema de inocência,
Valeriano pôde ver o belo anjo do céu;
absolto contemplou seu sublime poder
e viu em sua fronte irradiante fulgor.
Brilhante Serafim trazia frescas rosas
entremeadas de lírios de nívea brancura,
rosas que no jardim do céu desabrocharam
sob os raios do Amor de Deus, Astro Criador.
"Esposos que o céu ama, as rosas do martírio
cingirão vossas frontes", diz o anjo de Deus,
"Não há no mundo voz, tampouco lira existe,
capazes de cantar tão inefável graça!
Eu me abismo em meu Deus, Seus encantos contemplo,
mas não posso imolar-me nem sofrer por Ele.
Não lhe posso ofertar nem lágrimas nem sangue;
malgrado meu amor, não posso morrer...
A pureza de um anjo é a luminosa herança
de uma felicidade imensa que não passa,
mas neste ponto, sim, venceis os Serafins:
sois puros e além disso ainda podeis sofrer!...
Da virgindade vedes o símbolo
nos lírios perfumados que o Cordeiro envia,
com os quais vos cingirão a fronte em branca auréola.
E, então, entoareis um canto sempre novo;
da vossa casta união só almas vão nascer,
almas que só Jesus hão de ter como esposo.
Vós as vereis brilhar como chamas puras
junto ao trono de Deus, morada dos eleitos."
Ah, Cecília, empresta-me tua doce melodia:
Desejo converter todos os corações a Jesus!
Gostaria também de imolar minha vida,
ofertando a Jesus meus prantos e meu sangue...
Dá-me saborear, nesta terra estrangeira,
o perfeito abandono, doce fruto do amor.
Dá-me, santa querida, a graça de voar
para longe desta terra em revoada sem volta!
28 de abril de 1894
(Obras completas de Santa Teresa do Menino Jesus )