Da perplexidade do coração
que ama sem saber que agrada ao bem-amado
(São Francisco de Sales)
Tendo ficado surdo, um cantor nenhum contentamento tinha em cantar, a não ser o que ver algumas vezes seu príncipe atento a ouví-lo e achar prazer nisto. Oh! que ditoso é o coração que ama a Deus sem nenhum outro prazer senão aquele que acha em agradar a Deus! porquanto, que prazer se pode jamais ter mais puro e mais perfeito do que o que se haure no prazer da Divindade?
Sem embargo, propriamente falando, esse prazer de agradar a Deus não é o amor divino, mas apenas um fruto dele, que dele pode ser separado, como um limão do seu limoeiro. Pois, como eu disse, o nosso músico cantava sempre sem tirar nenhum prazer do seu canto, já que disto o impedia a surdez: e múltiplas vezes cantava também sem ter o prazer de agradar ao seu príncipe, porque, havendo-lhe este ordenado cantar, retirava-se ou ia à caça, sem tomar nem o lazer nem o prazer de ouvi-lo.
Ó Deus! enquanto eu vejo a Vossa face doce que testemunha agradar-Se do canto do meu amor, ai! como fico consolado! pois haverá algum prazer que iguais o prazer de agradar bem a seu Deus? Mas, quando retirais os Vossos olhos de mim, e quando eu não percebo o mais doce favor da complacência que achais no meu cântico, verdadeiro Deus! como minha alma se aflige grandemente! mas no entanto sem cessar de Vos amar fielmente e de cantar continuamente o hino da Vossa dileção, não por qualquer prazer que se ache nisso, pois não o tem, mas pelo puro amor de Vossa vontade.
Tem-se visto uma criança doente comer corajosamente, como incrível repugnância, o que sua mãe lhe dava, só pelo desejo que essa criança tinha de contentá-la; e então comia sem achar prazer algum na comida, mas não sem outro prazer mais estimável e mais elevado, que era o prazer de agradar a sua mãe, e de vê-la ficar contente.
Mas a outra que, sem ver a mãe, só pelo conhecimento que tinha da sua vontade, tomava tudo o que lhe traziam da parte dela, comia sem nenhum prazer, pois não tinha prazer de comer, nem o contentamento de ver o prazer de sua mãe, mas comia simples e puramente para fazer a vontade desta.
A simples satisfação de um príncipe presente, ou de alguma pessoa fortemente amada, torna deliciosas as vigílias, as penas, os suores, e torna os perigos desejáveis; mas não há nada mais triste como servir um amo que não sabe nada disso, ou, se o sabe, não dá nenhuma mostra de o agradecer; e, nesse caso, bem preciso é que o amor seja poderoso, já que se sustenta sozinho sem ser apoiado por nenhum prazer nem por pretensão alguma.
Assim sucede às vezes não termos nenhuma consolação nos exercícios do amor sagrado, visto que, como cantores surdos, não ouvimos a nossa própria voz, nem podemos fluir da suavidade de nosso canto; mas, pelo contrário, além disso somos premiados por mil receios, conturbados por mil atoardas que o inimigo faz em torno do nosso coração, sugerindo-nos que talvez não sejamos agradáveis a Nosso Senhor, e que o nosso amor é inútil, até mesmo que é falso e vão, visto não produzir consolação.
Ora, então, Teótimo, nós trabalhamos não somente sem prazer, mas com extremo aborrecimento, não vendo nem o bem do nosso trabalho, sem o contentamento d'Aquele para quem trabalhamos.
Mas o que aumenta o mal nessa circunstância é que o espírito e suprema ponta da razão não nos pode dar nenhuma espécie de alívio; pois, estando essa pobre porção superior da razão cercada toda das sugestões que o inimigo lhe faz, fica mesmo toda alarmada, e acha-se bastante atarefada em se resguardar de ser surpreendida por algum consentimento no mal; de sorte que não pode fazer nenhuma saída para desenlear a porção inferior do espírito.
E, se bem que não tenha perdido a coragem, está entretanto tão terrivelmente atacada que, se está sem culpa, não está sem pena; portanto para cúmulo do seu aborrecimento, está privada da consolação geral que quase sempre se tem em todos as outros males desse mundo, que é a esperança de que eles não serão duradouros, e de que se lhe verá o fim; de tal sorte que nesses aborrecimentos espirituais o coração cai numa certa impôtencia de pensar no fim deles, e por conseguinte de ser aliviado pela esperança.
Certamente a fé, residente no cimo do espírito, bem nos assegura de que essa pertubação findará, e de que um dia fruiremos do repouso; mas a gradeza do barulho e dos gritos que o inimigo faz no resto da alma, na razão inferior, quase que impede que os avisos e admoestações da fé sejam ouvidos, e na imaginação fica-nos só este triste presságio:
Ai! nunca estarei alegre.
Ó Deus! meu caro Teótimo, mas é então que é preciso demonstrar uma invencível fidelidade para com o Salvador, servindo-O puramente pelo amor da Sua vontade, não somente sem prazer, mas por entre esse dilúvio de tristezas, de horrores, de pavores e de ataques, como fizeram Sua gloriosa Mãe e São João no dia da Sua Paixão, os quais entre tantas blasfêmias, dores e angústias morais, ficaram firmes no amor, mesmo quando o Salvador, tendo retirado toda a Sua santa alegria para o cimo do Seu espírito, não difundia nem alegria nem consolação alguma no Seu divino semblante, e quando Seus olhos amortecidos e cobertos das trevas da morte, já não deitavam senão olhares de dor, como também o sol raios de horror e horrendas trevas.
(O Tratado do amor de Deus - pág. 471 a 474, São Francisco de Sales)
PS: Grifos meus.