quinta-feira, 13 de maio de 2010

Da união da nossa vontade ao beneplácito divino nas aflições espirituais, pela resignação

Da união da nossa vontade
ao beneplácito divino nas aflições espirituais, pela resignação
(São Francisco de Sales)


O amor da cruz faz-nos empreender aflições voluntárias, como, por exemplo, os jejuns, vigílias, cilícios e outras macerações da carne, e faz-nos renunciar aos prazeres, honras e riquezas; e o amor nestes exercicíos é muito agradável ao bem-amado. Todavia o é ainda mais quando recebemos com paciência, doce e agradavelmente, as penas, tormentos e tribulações, em consideração da vontade divina que no-las envia.

Mas o amor está então na sua excelência quando não recebemos somente com doçura e paciência as aflições, mas as estimamos, as amamos e as afagamos por causa do beneplácito divino de que procedem.

Ora, entre todas os ensaios do amor perfeito, aquele que se faz pelo consentimento do espírito ás tribulações espirituais é sem dúvida o mais fino e o mais elevado. A bem-aventurada Ángela de Foligno faz uma descrição admirável das penas interiores em que ás vezes se achava, dizendo que sua alma estava em tormento como um homem que, de pés e mãos atados, fosse pendurado pelo pescoço, e não fosse entretanto estrangulado, mas ficasse nesse estado entre morto e vivo, sem esperança de socorro, não podendo nem se sustentar com os pés nem se ajudar com as mãos, nem gritar com a boca, nem sequer suspirar ou gemer.

Assim é Teotimo. A alma ás vezes é tão premida de aflições interiores, que todas as suas faculdades e potências ficam esmagadas por elas, pela privação de tudo o que a pode aliviar, e pelo receio e impressão de tudo o que a pode entristecer.

De modo que, à imitação de seu Salvador, ela começa a entendiar-se, a temer (Mc 14,33), a se espantar, depois a entristecer-se (Mt 26,37), de uma tristeza semelhante à dos moribundos, donde bem pode ela dizer: Minha alma está triste até à morte (Ib.38); e, com o consentimento de todo o seu interior deseja, pede e suplica que, se é possível, seja esse cálice afastado dela (Ib.39), não mais lhe restando senão a fina suprema ponta do espírito que, apegada ao coração e beneplácito de Deus, diz por simples aquiscência:

Ó pai eterno, mas contudo não se faça a minha vontade senão a Vossa. (Lc 22,42)

E o importante é que a alma faz esta resignação por entre tantas pertubações, por entre tantas contradições e repugnâncias, que quase não percebe fazê-la; ao menos lhe parece que a faz tão lânguidamente, que não é de bom coração, nem como é conveniente, visto como o que se passa então pelo beneplácito divino se opera não somente sem prazer nem contentamento, mas contra todo o prazer e contentamento de todo o resto do coração, ao qual o amor bem permite queixa-se, ao menos de se não poder queixar, e dizer todas as lamentações de Job e de Jeremias, mas com a condição de que sempre a sagrada aquiescência se faça no fundo da alma, na suprema e mais delicada ponta do espírito, e essa aquiescência não é terna nem doce, nem quase sensível, embora seja verdadeira, forte, indomável e amorosíssima, e parece que se haja retirado para a pontinha do espírito como para o torreão da fortaleza, onde fica corajosa, posto que todo o resto esteja tomado e premido de tristeza.

E quando mais, nesse estado, o amor é destituído de todo socorro, abandono de toda a assistência das virtudes e faculdades da alma, tanto mais estimável é, por assim guardar tão constantemente a sua fidelidade.

Essa união e conformidade ao beneplácito divino faz-se ou pela santa resignação, ou pela santíssima indiferença. Ora, a resignação pratica-se à maneira de esforço e de submissão: bem se quisera viver em vez de morrer; não obstante, visto ser o beneplácito de Deus que se morra, aquiesce-se.

Querer-se-ia viver se a Deus aprouvesse; e, ademais, querer-se-ia que a Deus aprouvesse fazer viver. Morrer-se de bom grado, porém ainda mais de bom grado se viveria; passa-se com bastante boa vontade, mas ainda mais afeiçoadamente se ficaria. Job nos seus trabalhos faz o ato de resignação, dizendo:

Se recebemos os bens, da mão de Deus, porque não haveremos de aturar as penas e trabalhos que Ele nos envia? (Job 2,10).

Vede Teótimo, que ele fala de aturar, suportar, aguentar. Como ao Senhor aprouve, assim foi feito: bendito seja o nome do Senhor! (Job 1,21). São palavras de resignação e aceitação, á maneira de sofrimento e de paciência.

(Tratado do amor de Deus - pág. 447 a 449 - São Francisco de Sales)
 
PS: Grifos meus.