Da união da nossa vontade
ao beneplácito divino nas aflições espirituais, pela resignação
(São Francisco de Sales)
O amor da cruz faz-nos empreender aflições voluntárias, como, por exemplo, os jejuns, vigílias, cilícios e outras macerações da carne, e faz-nos renunciar aos prazeres, honras e riquezas; e o amor nestes exercicíos é muito agradável ao bem-amado. Todavia o é ainda mais quando recebemos com paciência, doce e agradavelmente, as penas, tormentos e tribulações, em consideração da vontade divina que no-las envia.
Mas o amor está então na sua excelência quando não recebemos somente com doçura e paciência as aflições, mas as estimamos, as amamos e as afagamos por causa do beneplácito divino de que procedem.
Ora, entre todas os ensaios do amor perfeito, aquele que se faz pelo consentimento do espírito ás tribulações espirituais é sem dúvida o mais fino e o mais elevado. A bem-aventurada Ángela de Foligno faz uma descrição admirável das penas interiores em que ás vezes se achava, dizendo que sua alma estava em tormento como um homem que, de pés e mãos atados, fosse pendurado pelo pescoço, e não fosse entretanto estrangulado, mas ficasse nesse estado entre morto e vivo, sem esperança de socorro, não podendo nem se sustentar com os pés nem se ajudar com as mãos, nem gritar com a boca, nem sequer suspirar ou gemer.
Assim é Teotimo. A alma ás vezes é tão premida de aflições interiores, que todas as suas faculdades e potências ficam esmagadas por elas, pela privação de tudo o que a pode aliviar, e pelo receio e impressão de tudo o que a pode entristecer.
De modo que, à imitação de seu Salvador, ela começa a entendiar-se, a temer (Mc 14,33), a se espantar, depois a entristecer-se (Mt 26,37), de uma tristeza semelhante à dos moribundos, donde bem pode ela dizer: Minha alma está triste até à morte (Ib.38); e, com o consentimento de todo o seu interior deseja, pede e suplica que, se é possível, seja esse cálice afastado dela (Ib.39), não mais lhe restando senão a fina suprema ponta do espírito que, apegada ao coração e beneplácito de Deus, diz por simples aquiscência:
Ó pai eterno, mas contudo não se faça a minha vontade senão a Vossa. (Lc 22,42)
E o importante é que a alma faz esta resignação por entre tantas pertubações, por entre tantas contradições e repugnâncias, que quase não percebe fazê-la; ao menos lhe parece que a faz tão lânguidamente, que não é de bom coração, nem como é conveniente, visto como o que se passa então pelo beneplácito divino se opera não somente sem prazer nem contentamento, mas contra todo o prazer e contentamento de todo o resto do coração, ao qual o amor bem permite queixa-se, ao menos de se não poder queixar, e dizer todas as lamentações de Job e de Jeremias, mas com a condição de que sempre a sagrada aquiescência se faça no fundo da alma, na suprema e mais delicada ponta do espírito, e essa aquiescência não é terna nem doce, nem quase sensível, embora seja verdadeira, forte, indomável e amorosíssima, e parece que se haja retirado para a pontinha do espírito como para o torreão da fortaleza, onde fica corajosa, posto que todo o resto esteja tomado e premido de tristeza.
E quando mais, nesse estado, o amor é destituído de todo socorro, abandono de toda a assistência das virtudes e faculdades da alma, tanto mais estimável é, por assim guardar tão constantemente a sua fidelidade.
E quando mais, nesse estado, o amor é destituído de todo socorro, abandono de toda a assistência das virtudes e faculdades da alma, tanto mais estimável é, por assim guardar tão constantemente a sua fidelidade.
Essa união e conformidade ao beneplácito divino faz-se ou pela santa resignação, ou pela santíssima indiferença. Ora, a resignação pratica-se à maneira de esforço e de submissão: bem se quisera viver em vez de morrer; não obstante, visto ser o beneplácito de Deus que se morra, aquiesce-se.
Querer-se-ia viver se a Deus aprouvesse; e, ademais, querer-se-ia que a Deus aprouvesse fazer viver. Morrer-se de bom grado, porém ainda mais de bom grado se viveria; passa-se com bastante boa vontade, mas ainda mais afeiçoadamente se ficaria. Job nos seus trabalhos faz o ato de resignação, dizendo:
Se recebemos os bens, da mão de Deus, porque não haveremos de aturar as penas e trabalhos que Ele nos envia? (Job 2,10).
Vede Teótimo, que ele fala de aturar, suportar, aguentar. Como ao Senhor aprouve, assim foi feito: bendito seja o nome do Senhor! (Job 1,21). São palavras de resignação e aceitação, á maneira de sofrimento e de paciência.
(Tratado do amor de Deus - pág. 447 a 449 - São Francisco de Sales)
PS: Grifos meus.