TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952
DESANIMAMOS POR NÃO QUERERMOS APROVEITAR OS MEIOS
ORDINÁRIOS QUE ESTÃO AO NOSSO ALCANCE, E, POR PREGUIÇA, DESEJARMOS MEIOS EXTRAORDINÁRIOS.
É sempre ou pela falta de instrução ou pela
desatenção à instrução que havemos recebido, que incidimos na sem-razão mais
inconcebível. Deus tem sobre os homens duas espécies de providência: uma,
extraordinária e milagrosa, na qual Ele age pela Sua onipotência; outra, comum
e ordinária, na qual Ele age por meios cuja proporção com o fim que a Sua sabedoria
se propõe a razão nos faz conhecer. A primeira é rara, passageira; só a
emprega Deus para desígnios particulares; e o homem, a quem as razões dessa
providência são desconhecidas, não poderia contar com elas sem tentar a Deus.
Sem dúvida, o Senhor pode fazer milagres, mas não
os prometeu a ninguém. Para ser dirigido nas suas ações e socorrido nas suas
necessidades, ninguém pode, pois, razoavelmente esperá-los. Se, a pretexto de
que Deus é senhor de fazer milagres, e de que os faz, um homem não fizesse nada
para se proporcionar o que é necessário à vida, olhá-lo-íamos como estando no
delírio. Mas contar com um milagre constante na ordem da graça, para a vida da
alma, será menos agir contra os princípios estabelecidos no Evangelho?
A segunda espécie de providência é comum,
ordinária, constante para todos os homens. Se o Senhor seguiu a primeira a
respeito de alguns, transformando-os de chofre, logo os fez reentrar na ordem
comum, conduzindo-os do mesmo modo que ao resto dos homens. Assim, S. Paulo (1
Cor 9, 27) orava com lágrimas, e reduzia seu corpo à servidão.
Essa providência comum e ordinária consiste em
inspirar-nos na aquisição das virtudes, em fazer-nos conhecer os meios que a
razão nos propõe para sermos bem sucedidos naquilo que empreendemos, e em
dirigir esses meios pela religião e para o fim essencial do homem, que é Deus e
a felicidade de possuí-lO.
Queremos sair-nos bem em alguma arte, em alguma
ciência? o desejo que disto concebemos leva-nos a estudar-lhes os princípios
com assiduidade, a ocupar-nos delas para gravá-las a fundo na mente, a fim de
as termos sempre presentes quando se tratar da ocupação em que queremos
aperfeiçoar-nos. Evitamos com cuidado agir contra esses princípios; e, se
alguma falta nos escapa, ao invés de desanimarmos redobramos de cuidado para
repará-la o mais breve possível. Vede todos os homens que querem ser bem
sucedidos no seu estado: o artista, o sábio, o magistrado; achá-los-eis todos,
seguindo a mesma rota, devorar o aborrecimento dos começos sempre tediosos e
penosos, constrangerem-se constantemente, superarem as maiores dificuldades.
Vede a conduta dos homens sensatos nos negócios do século: ocupam-se deles
incessantemente; não poupam nem cuidado nem pena para serem bem sucedidos. A
razão dirige-lhes a todos a mesma linguagem, e o êxito justifica a sabedoria
dos meios.
Eis aí a providência comum e ordinária de Deus sobre
os homens que querem trabalhar para ser bem sucedidos na prática das virtudes
e no grande negócio da salvação. Os meios são os mesmos; a diferença vem só
dos fins e dos motivos que eles se propõem. No mundo, só se procuram bens
terrenos e perecíveis, os motivos são naturais. Na Religião, procuram-se bens
celestes e eternos: os motivos são sobrenaturais; é Deus quem os inspira, e
quem, pela Sua graça, ajuda nos meios.
Deus quer, pois, que desejemos a Sua glória na posse
dos bens da eternidade; que nos ocupemos dela como do nosso bem essencial; que
pratiquemos as obras que podem no-la assegurar; que evitemos com cuidado tudo o
que possa fazer-no-la perder, ou colocar-nos em perigo de sermos dela
privados. Numa palavra, Ele quer que, segundo as luzes da sã razão, elevada pelos
motivos da Religião, não poupemos nem os nossos cuidados, nem as nossas penas,
nem as proteções que temos no Céu, para sermos bem sucedidos: trata-se da
eternidade.
O Senhor escolheu essa ordem de providência, de
preferência a qualquer outra que poderia ter empregado, porque Ele não é menos
o autor da ordem natural do que da ordem sobrenatural. Quis, desse modo,
colocar o homem na necessidade de trabalhar pela sua felicidade, de não
definhar numa ociosidade que o privasse de todo desejo, de todo sentimento por
um bem que ele esperasse unicamente de Deus, sem para ele concorrer pelo menor
esforço. Quis torná-lo indesculpável se não fizesse, para alcançar um bem
eterno, o que faz todos os dias por bens perecedouros, por uma satisfação
passageira, e se agisse contra as luzes da razão num negócio em que mais lhe
importa segui-las.
É assim que, por essa providência cheia de sabedoria
e de misericórdia, Deus, sem Se mostrar sensivelmente, conduz a Sua criatura
pela Sua graça, e fá-la andar por uma trilha de fé, de esperança e de amor.
Porquanto essas vistas, essas reflexões, esses sentimentos que vos fazem
conhecer o que Deus pede de vós, e que vos levam a cumpri-lo, talvez os
julgueis naturalíssimos, e no entanto é Deus quem vo-los inspira; é Ele quem
vos sugere os motivos pelos quais deveis elevá-los, e quem vos mostra o fim
para o qual deveis dirigi-los para torná-los úteis à vossa salvação. Subtrair-se
a essa providência, não fazer nenhum acolhimento a essas luzes, ou resistir-lhes,
por não ser isso o que se pede a Deus, ou por alguma outra razão, é querer
chegar à celeste mansão por outro caminho que não aquele que Deus marcou.
Que deve, pois, fazer uma alma que Deus prova por
tédios? Baseada neste princípio de prudência, de que não devemos perder por
culpa nossa um bem que se apresenta, que leva à felicidade, e isto pelo fato de
não obtermos aquele bem que desejamos, essa alma, até que Deus lhe dê mais atrativos,
sempre submissa à Sua vontade santa deve apegar-se com docilidade às graças
que recebe, seguir com gratidão essas luzes que a iluminam. Então achará sempre
com que se sustentar e praticar o bem, pelos socorros ligados à providência
comum e ordinária do Senhor.
O que justifica este princípio de prudência e o
consagra na Religião, é que, para seguir essa ordem de providência de que nunca
se deve sair, não basta evitarmos certas faltas grosseiras, se descurarmos o
bem que Deus pede que pratiquemos pelas graças que Ele nos concede, e se não
dermos a isso os nossos cuidados. As Virgens loucas (Mt 25) foram excluídas pela
negligência que puseram em manter-se prontas para a chegada do Esposo. O servo
preguiçoso foi condenado por não ter feito valer o talento que seu Senhor lhe
confiara. Esse talento, é o tempo que Deus dá a uma alma; é a graça que ela
recebe tantas vezes, e que tantas vezes ela torna tão inútil como o tempo que
lhe fora dado para fazer bom uso dele. Esses exemplos de punição exemplar devem
fazer tornar a entrar em si mesma essa alma tíbia e frouxa, e reconduzi-la à
providência que Deus estabeleceu, aproveitando os socorros que ela recebe e
que Deus escolheu para santificá-la.
Não olheis esta instrução como um sistema humano:
Jesus Cristo consagrou-a no Evangelho, recomendando a vigilância e a oração, a
renúncia à vontade própria desde que esta é contrária à vontade de Deus; a
atenção a evitar o mal e a fugir do perigo. Por isto os Padres, os Santos,
esclarecidos pelo espírito de Deus, e que deram regras para conduzir as almas à
santidade, não prescreveram nada de extraordinário. Ativeram-se a esses meios
comuns: a oração frequente, as leituras santas, os exames de consciência
reiterados, para se dar conta do seu proceder e corrigir o que nele houve de
defeituoso; o silêncio, para se manter unido a Deus e evitar a dissipação, essa
dissipação que é tão funesta sobretudo a uma alma que, perdendo de vista a
Deus, nada mais faz por Ele, e já não tem outra regra e outra guia senão os
seus desejos e as suas inclinações.
Quanto mais examinardes esses meios, tanto mais
conformes os achareis não somente ao Evangelho, como também à razão. Em
qualquer estado de tédio, de pena, de repugnância, de tentação que nos achemos,
podemos sempre empregar esses meios; e Deus os fortalecerá pela Sua graça, se
recorrermos a Ele com confiança.