TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952
É PENSAR MAL O PEDIRMOS A DEUS A CESSAÇÃO DAS NOSSAS
PENAS E DOS NOSSOS COMBATES, E QUERERMOS SER OUVIDOS IMEDIATAMENTE.
Apesar dessas verdades tão bem estabelecidas, cumpre
confessar que, esse estado de tédio e de repugnância é sempre penoso de
suportar. O homem foge naturalmente do sofrimento e dos combates. Em vez de se
ocupar com as grandes vantagens que as suas vitórias lhe proporcionariam,
mas, ao contrário, unicamente preocupado com aquilo que a guerra que tem de
sustentar contra si mesmo lhe faz sofrer, ele não pensa nos bens preciosos que
daí pode retirar. Volve-se, então, para o Senhor para obter o Seu socorro: mas
que é que lhe pede? Pede-lhe que Ele se digne de fazer findar esse estado de
tédio, de secura, de repugnância. Se Deus não o atende, se quer prová-lo por
mais tempo, ele imagina rezar em vão, imagina que Deus não o escuta, que ele
não alcança nada do que pede. A perturbação, o temor, o desânimo apoderam-se-lhe
do coração. Nesse estado, ele não sabe pedir mais nada a Deus; não se atreve
mesmo a pedir. Diz mesmo como Jesus (Mt 26, 39): Senhor, passe longe de mim
este cálice; mas bem se resguarda de acrescentar com esse divino Modelo: Contudo,
faça-se a Vossa vontade e não a minha. É preciso compenetrar-se bem dos
princípios da Fé para se colocar nesse humilde abandono à Providência, que
vela sobre nós com tanto mais cuidado quanto mais perfeito é o nosso abandono.
A religião nos ensina que, na conduta que segue com
as Suas criaturas, chamando-as ao Seu serviço, Deus não faz nada senão para a Sua
glória, e para a verdadeira felicidade delas. Só a Deus, pois, compete
determinar a espécie de glória que Ele quer tirar do homem, e a trilha pela qual
quer conduzi-lo à santidade e à felicidade. Quereria a criatura servir a Deus
segundo as suas idéias e os seus gostos particulares; prescrever a Deus a maneira
como quer ser conduzida pela Sua Providência; determinar-lhe as condições a que
quer que Ele ligue as Suas recompensas? Seria uma extravagância, um delírio;
seria dar aos homens, como regra da Sua conduta, todas as paixões, todos os
erros.
Diante de Deus o homem não pode, pois, ter em
partilha senão a submissão. O que lhe diz respeito é conhecer bem o caminho de
Deus sobre ele; e segui-lo com confiança, com amor, com docilidade. A Deus cabe
traçar o plano; ao homem compete executá-lo, com o socorro de Deus. Se o homem
entra nesse caminho com estas disposições, esse caminho será sempre o mais
seguro para ele; porquanto, escolhendo-o para por ele conduzi-lo à felicidade
eterna, Deus preparou ao homem graças particulares para guiá-lo e sustentá-lo
nessa trilha. Estando então sempre na ordem da Providência sobre si, não pode o
homem deixar de experimentar uma proteção especial; pelo menos, tem a maior
esperança disto.
Se, pois, Deus quiser conduzir ao Céu uma alma pelas
provações do tédio, das repugnâncias, deverá ela pedir a Deus que mude essa
Providência a seu respeito? Pode pedi-lo, e Jesus Cristo o tem feito: semelhante
pedido tem sido, muitas vezes, atendido. A demora de uma graça não é uma
recusa: obtemo-la pela perseverança, no tempo que Deus destinou a nos fazer
sentir a Sua misericórdia. Mas deve essa alma fazer disso o objeto único das
suas preces, de sorte que, se Deus não a atender, ela caia no abatimento?
Nisto ela se afastaria muito do exemplo que Jesus Cristo lhe deu, e que os
Santos imitaram.
Seguiria as sugestões da tentação, que quer
afastá-la de Deus e tirá-la da ordem da providência sobre ela.
O primeiro e o principal objeto das suas preces deve
ser pedir a Deus a submissão a Sua vontade, a graça de suportar com resignação,
com fidelidade, com amor, o estado em que Ele a põe para santificá-la nele;
visto que não é a ela que compete escolher o caminho que deve seguir. Na
humilde persuasão de não merecer os favores singulares do Senhor; na humilde
persuasão de que, tendo tido a desdita de ofendê-lO, ainda é um efeito adorável
da Sua misericórdia que, como dizia o filho pródigo, Ele a suporte não como um
filho, mas como um dos Seus servos mais vis; deve ela aceitar o seu estado em
espírito de penitência, e abandonar-se nas mãos de Deus por todo o tempo que Ele
quiser tirar desse estado a Sua glória. É esse o melhor meio que ela possa
empregar para alcançar de Deus o fim dessa provação penosa.
Pensais que Deus não vos escuta porque vos deixa no
estado de tédio ou tentação de que lhe pedis serdes livrado; mas, consoante os
princípios da religião, vos enganais. Se a vossa oração é feita com submissão,
com confiança e perseverança, segundo as promessas de Jesus Cristo ela será
certamente atendida. Na verdade, Deus não vos concederá o que lhe pedis, porque
isso vos seria nocivo, devido ao mau uso que disso faríeis, ou seria menos útil
do que os dons que Ele vos recusa por misericórdia; dar-vos-á graças mais preciosas,
mais desejáveis, que vos farão praticar as virtudes perfeitas da Religião e
vos farão adquirir méritos para o Céu, pela renúncia, pela mortificação, pela
submissão, pelo espírito de penitência, graças que, sustentando-vos no
combate, vos deixarão ver todo o vosso nada, vos convencerão da vossa
fraqueza, vos manterão na humildade cristã, fundamento das verdadeiras
virtudes, na vigilância sobre vós mesma, e em relação contínua com Deus para
solicitar o socorro d’Ele, cuja necessidade sempre melhor reconhecereis para
vos sustentar.
Essa Providência, essa conduta do Senhor é-nos bem
assinalada em S. Paulo. Esse grande Apóstolo pede a Deus várias vezes livrá-lo
de uma tentação humilhante que o atormenta. Deus permitia-a nesse grande
Apóstolo, conforme este mesmo no-lo faz saber, com medo de que a grandeza das
suas revelações o elevassem aos seus próprios olhos (2 Cor 12, 7). O Senhor
recusa-lhe o livramento dessas tentações, mas tranquiliza-o sobre elas: Minha
graça te basta (2 Cor 12, 9). Essa recusa que a alma perturbada, entediada,
tentada experimenta, não indica, pois, que Deus se afaste dela, que não a
escute, que a tenha abandonado: essa recusa prova unicamente que Deus tem
outros desígnios que não aqueles que ela se propõe; que não quer livrá-la, mas
que está sempre pronto a ajudá-la.