domingo, 1 de setembro de 2013

TRATADO DO DESÂNIMO - Parte X

Nota do blogue: Acompanhar esse especial AQUI.

TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952


DO ABORRECIMENTO, DO TÉDIO, DA REPUGNÂNCIA NO SERVIÇO DE DEUS, FONTES DE UM DESÂNIMO CONTRARIO À RAZÃO.

Uma alma que, apesar das suas orações constantes, se acha combatida por algum defeito que a domina, por alguma tenta­ção que a assedia; uma alma que no ser­viço de Deus só acha aborrecimento, tédio, repugnância, essa alma está na maior per­plexidade. Logo o demônio lhe sugere que Deus não a escuta mais; que as suas ora­ções são inúteis, e, assim, condu-la ao precipício do desânimo, de onde ela já não vê em Deus senão um Senhor, ou in­sensível ou irritado, a quem não espera mais poder agradar.

O que ilude essa alma, que Deus não abandona, mas que prova, é que, servindo a Deus com essas repugnâncias, com esse aborrecimento, com essa secura de cora­ção, ela pensa que o que faz não pode ser agradável a Deus, nem lhe ser de mérito algum para si mesma. Esta visão a princí­pio aflige-a; e em breve perturba-a e desanima-a inteiramente, se o Senhor não lhe restituir o atrativo e o gosto que ela perdeu, como ela lho pede incessantemen­te. Reconduzamos essa alma aos princí­pios da Religião, e logo ela será tranquili­zada sobre o seu estado, que ela só julga mau por não ajuizar dele segundo as boas regras.

Esse aborrecimento, essas repugnâncias, esses tédios, que não raras vezes são acompanhados por outras tentações, em si mesmos não são pecados: nem sequer são imperfeições. Tudo isso não pode, pois, impedir que os deveres que cumpris para fazerdes a vontade de Deus sejam agradá­veis a Ele e meritórios para vós. Os ho­mens, que não vêem o interior, só julgam da bondade e do mérito das ações por essas demonstrações exteriores de solici­tude; o que faz que, aos olhos deles, a maneira de fazer as coisas aumente ou diminua muito o que se faz por eles. O mesmo não se dá com Deus, que, conhe­cendo o fundo do coração, julga da since­ridade dos sentimentos por estes mesmos, independentemente dos sinais exteriores. Com relação a Deus, basta fazer a Sua vontade santa.

A prova desta verdade é sem réplica. É a palavra e o exemplo de Jesus Cristo. Instruindo os povos, dizia-lhes esse divino Salvador: Aquele que fizer a vontade de meu Pai será salvo. Ele não exige que a façamos com gosto, com um atrativo sen­sível: exige que a façamos, seja qual for a dificuldade que achemos em fazê-la; e então promete a salvação. Se esse estado de aborrecimento, de tédio não impede uma alma cristã de fazer aquilo que Deus exige na prática dos deveres da sua pro­fissão, não pode ele, pois, ser por si mesmo um mal que a afaste da santidade e da salvação.

Esse divino Salvador confirma-nos a Sua doutrina pelo Seu exemplo. Incapaz não somente de pecado, mas de imperfeição, para nossa instrução e para nossa conso­lação Ele mesmo Se dignou de passar pe­las provas a que queria submeter os Seus Discípulos. Assim, no deserto, permitiu ao espírito tentador atacá-lO pelas sugestões da vaidade, das honrarias mundanas, da confiança presunçosa. Assim, no Horto das Oliveiras, à vista dos sofrimentos que os homens Lhe preparavam, da ingratidão dos homens a Seu respeito, Ele quis experi­mentar o tédio mais acabrunhador, a tris­teza mais profunda, a repugnância mais viva. Como nem essas tentações, nem es­ses sentimentos de desgosto levados a esse excesso impediam a Sua fidelidade, a Sua submissão às ordens de Seu Pai, nesse estado de tentação e de acabrunhamento. Ele nem por isso era menos a admiração do céu e o objeto das complacências de Seu Pai.

Certo é, portanto, que o estado de ten­tação, de aborrecimento, de tédio, de per­turbação, de repugnância que uma alma pode experimentar, a qualquer grau que seja levado, não é mau em si mesmo; que esses sentimentos involuntários nem se­quer são imperfeições; que eles não impe­dem que os deveres que nesse estado cum­prirdes sejam agradáveis a Deus e meri­tórios para o Céu.

Eu não poderia insistir de mais nas pro­vas desta verdade. Vejo muitas almas que, apesar da palavra e do exemplo de Jesus Cristo, estão sempre perturbadas com o que sentem nesse estado de secura e de tédio. Elas acham, nos livros, que se deve servir a Deus com alegria. Desde que elas não experimentam este sentimento, sen­timento que Jesus Cristo não exige, que não depende delas, mas unicamente de Deus, como o faremos notar noutro lugar, elas tremem de ser afastadas de Deus e de ser por Ele rejeitadas.

Raciocinemos, pois, sobre os princípios da Religião. Essas tentações, esse aborrecimento, esse tédio, desde que não aderis a eles para os seguir, então os experimentais contra a vossa vontade: eles não dependem de vós. Se dependessem, certa­mente não os teríeis, visto que eles vos causam tanto incômodo. Ora, sentimentos que não dependem de vós, aos quais não aderis, que combateis, mesmo, para não os seguir, não podem tornar-vos culpada diante de Deus. Deus só vos responsa­biliza por aquilo que depende de vós fazer ou deixar de fazer, por aquilo que cons­titui uma escolha livre da vossa vontade.

Verdade esta de que não se pode duvidar depois das decisões da Igreja. Verdade que a razão sozinha nos faz conhecer. E que idéia teríamos da Bondade, da Justiça de Deus, se Ele punisse os homens por coi­sas que eles não puderam evitar?

É, portanto, seguro que em si mesmo esse estado de uma alma cristã não tem nada que possa torná-la desagradável a Deus.

Devemos mesmo acrescentar, para con­solo dessas almas perturbadas e desani­madas, que, se nessa situação elas são fiéis a não se relaxarem sobre os deveres do seu estado, testemunham com isso a Deus um amor mais fervoroso, recebem de Deus uma prova mais assinalada da Sua proteção, têm nas suas ações mais mérito do que no estado em que, atraídas por um amor sensível, não acham quase nenhuma dificuldade. Não é duvidoso que, quanto mais inimigos um coração tem a vencer, quanto mais obstáculos tem a superar pa­ra cumprir a vontade de Deus, tanto mais robustecido deve ser pelo amor divino. Se o seu amor a Deus fosse fraco, ele não resistiria a tantos inimigos reunidos para destruí-lo. A fidelidade de uma alma, nes­sa situação, faz-lhe conhecer a misericór­dia de Deus sobre ela pela força do amor cujo socorro ela experimenta para se sus­tentar; amor tanto mais poderoso e tanto mais meritório quanto menos sensível.

Nesses combates, muitas vezes longos e obstinados, pode uma alma cometer al­gumas faltas; isto é apanágio da huma­nidade: mas que ela não se perturbe; es­sas faltas são em breve reparadas pelos sacrifícios que ela oferece incessantemen­te a Deus. Portanto, se ela carregar essa cruz com submissão, se se renunciar quase a cada instante, para seguir as luzes que recebe no espírito de fé, pode temer ser rejeitada do número dos discípulos de Jesus Cristo? Esse divino Salvador não disse que, para alguém ser Seu Discípulo, é preciso renunciar-se, carregar a sua cruz e segui-lO? (Mt 16, 24). É o que essa alma fiel faz, no aborrecimento, no tédio e na repugnância. Pode ela pensar que Deus deixe sem recompensa tantos sacrifícios?

Não, diz-lhe o Apóstolo (Heb 6, 10): Deus não é injusto, para esquecer os vossos trabalhos e as vossas penas. Sede, pois, fiel; a vossa recompensa está pronta: Deus não faltará à Sua palavra. Alguns dias de uma pena leve, e depois uma eternidade... de felicidade inefável, e de uma felicidade que geralmente começa desde esta vida pelas graças de consolação e de paz que Deus concede a essa alma, depois de a haver provado bastante. Eis aí o vosso destino, como tem sido o de todos os Santos.