sábado, 6 de outubro de 2012

Da virtude mais necessária aos homens da ciência


Padre Júlio Maria, C.SS.R.
As virtudes, 1936.

Eu vos apontei, como primeiro traço da fisionomia cristã do Brasil, atualmente, a decadência dos costumes bem demonstrada nesse fenômeno que expus e analisei com o escalpelo da crítica mais sincera e mais justa: a falsa noção da honestidade.
Não me parece que seja menos saliente e visível no rosto da nação, este segundo desagradabilíssimo traço: a desordem intelectual.
Esta desordem é, senão maior, pelo menos tão grande como, na política e na administração, o desacordo e a desarmonia das inteligências.
Na ordem intelectual é completa e absoluta a falta de disciplina mental.
Eu poderia penetrar na esfera política para demonstrar o desacordo e a desarmonia de que falei, em relação aos grandes interesses nacionais, aos maiores e mais importantes problemas sociais; poderia fazê-lo porque o Evangelho não é somente um código individual, mas também um código eminentemente social. Errônea é a opinião que pretende reduzir o Catolicismo à ação das sacristias e às festividades do templo; como se a Igreja não fora igualmente a diretora das almas e dos povos. Poderia, mas não o faço porque bem grande é a seara que tenho hoje de percorrer, bastando-me limitar a conferência à esfera dos homens de ciência, categoria em que eu incluo, além dos cientistas propriamente ditos, os magistrados, os advogados, médicos, engenheiros, militares, etc...
Em todos eles, salvas as devidas exceções, que vemos?
As idéias mais opostas, as teorias científicas mais absurdas, os sistemas filosóficos mais extravagantes; e, de par com tudo isso, a maior ignorância do Catolicismo, na soberba construção de sua economia, na beleza transcendental, do seu dogma, nas maravilhas incomparáveis de sua moral e nos encantos inefáveis do seu culto.
Para que bem compreendêsseis o primeiro traço da fisionomia brasileira (decadência dos costumes), eu vos dei um fenômeno, a falsa noção da honestidade.
Não é certo, que o Deus dos nossos intelectuais, salvas sempre as exceções, é um Deus à sua feição, segundo os seus gostos, muito diferente do Deus tradicional?
Não é certo que cada um deles fazem Deus a sua feição, segundo os seus gostos científicos ou as suas predileções literárias? 
Não é certo que teoricamente para eles Deus se reduz a uma hipótese ou a uma abstração; e que, praticamente, para eles é como se não existisse, ou, pelo menos, uma verdade ainda não demonstrada?
Demonstrar a existência de Deus! quando demonstrada não estivesse eu julgá-la-ia, essa demonstração, uma inutilidade.
Eu vo-lo provo com uma consideração bem simples.
Vós todos mais ou menos amais a popularidade. Não indagarei agora se o desejo dessa glória humana é ou não perfeitamente cristão. Acredito que pode sê-lo, uma vez que não toque as raias da vaidade e do orgulho.
O que quero averiguar é isto: vós todos, mais ou menos, admirais, invejando-os, os homens célebres que conquistaram essa apoteose dos povos. Pois bem: percorrei o mundo inteiro; penetrai nas cidades e nas aldeias; entrai nos palácios e nas choupanas; de todos os homens, em toda a parte, em todas as condições da vida, vós ouvireis estas expressões, ou outras equivalentes: Graças a Deus. - Louvado seja Deus! - Que Deus me perdoe! - Eu apelo para a justiça de Deus! - Como Deus é bom! Deus não é como os homens!
Que é que isto prova? Prova que o ser mais popular, no mundo inteiro, não é o General vitorioso que subjugou cidades ou derrotou batalhões; não é o estadista cheio de glórias que, por serviços relevantes, imortalizou-se na história de sua pátria; não é também o homem que arrebatou multidões nas asas da eloquência; nem o artista que realizou na tela, no mármore, no bronze; os ideais da beleza, ou o poeta que fez experimentar ao mundo, na sua lira, os mais puros gozos da harmonia.
Isso prova a verdade desta frase que li num livro: Deus é o mais popular de todos os seres!
Mas se Deus é o mais popular de todos os seres, Deus não é, não pode ser, como pretendem tantos homens de ciência, uma hipótese, uma abstração.
Uma hipótese! Mas que é uma hipótese? É uma coisa, às vezes concepção de um só homem e que absolutamente não se pode impôr ao espírito de todos. A universalidade de uma crença exclui necessariamente o que fez a essência de toda a hipótese e que é não ser universalmente aceita. Ora, uma crença que em todos os tempos, em todas as épocas e em todos os países, se impôs à universalidade dos homens, não é, não pode ser uma hipótese.
Abstração! Que é abstrair? É tirar de uma coisa, para considerá-la separadamente, o que nela se contém.
Sendo assim, como tirar o infinito do finito, o absoluto do relativo, o necessário do contingente? Com supor num Deus uma simples abstração do espírito do homem? Não! Deus é, portanto, a maior de todas as realidades; tão grande que, como já disse, Ele é o mais popular de todos os seres. Mas, se Ele é o mais popular de todos os seres, uma inutilidade, sem dúvida, é a demonstração de Sua existência.
Concordo, entretanto, que atualmente é oportuna e conveniente uma afirmação de Deus.
É oportuna porque nos grandes atos da nação, nos documentos públicos, nas cerimônias mais solenes, e até mesmo nas simples conversações já um grande número de homens têm vergonha de proferir o nome de Deus.
S. Paulo aos judeus e aos gentios, dizia: "Eu não me envergonho do Evangelho". Parece chegado o tempo em que cada um de nós necessita dizer: Eu não me envergonho de Deus.
Isto denota que, a certos respeitos, estamos abaixo do paganismo.
Para os pagãos compreende-se que o Evangelho fosse um escândalo e uma loucura, porque o Evangelho era de fato um reviramento de todas as idéias e costumes e a proclamação das verdades mais opostas às convicções sociais da antiguidade. Para os modernos, porém, a idéia de Deus é o que sempre foi uma verdade tradicional e universal que remonta à origem do mundo.
Vedes, pois, que maior anomalia é hoje a vergonha de Deus do que foi na antiguidade a reação contra o Evangelho.
Não só oportuna - também conveniente, atualmente, é a afirmação de Deus.
Conveniente, porque é mister expelir da cabeça dos nossos intelectuais um sem número de fórmulas vãs e de logomaquias ridículas em relação a Deus.
Caro, da Academia Francesa, reuniu num precioso livro - Os novos críticos de Deus - todas essas fórmulas, das quais Renan, Vachereau e Taine foram os principais introdutores no mundo das letras. O ilustre e saudoso acadêmico francês analisou, uma por uma, com muito espírito e grande penetração, todas essas fórmulas: Deus é a categoria do ideal; Deus é o resumo das nossas necessidades suprassensíveis; Deus é o absoluto; Deus é o ideal, etc...
Caro faz esta ponderação muito interessante: - que esses homens, abandonando completamente a idéia de Deus, não abandonaram, pelo contrário, continuam a usar freqüentemente da palavra Deus, fazendo essa palavra exprimir causas completamente diferentes do que ela significa. Isto é um absurdo, porque as palavras só podem ter a beleza do que elas significam. Sem isto, a palavra reduz-se ao mais insignificante dos fenômenos físicos: é um sopro de ar.
Mas pergunto: Onde esses intelectuais acharam fundamento para as suas logomaquias? Nos mesmos livros onde os nossos intelectuais o têm achado, isto é, nos livros de filosofia e ciência avariada com que muitos sábios procuram explicar a criação sem o Criador, o mundo sem Deus.
Os sábios!
José Estevão, o maior e mais ousado e célebre dos tribunos políticos de Portugal, disse um dia no Parlamento: "Eu detesto os heróis. Detesto-os porque são exceções monstruosas da nossa natureza; detesto-os porque, colocados muito acima de nós, não nos ouvem e nos desprezam".
Parodiando, digo: Eu detesto os sábios! Detesto-os porque vivem inchados da sua ciência. Detesto-os porque, exclusivamente preocupados com as altas cogitações do espírito desprezam esta vulgar e inaudita faculdade humana que se chama o senso comum. Detesto-os porque, reconhecendo eles que há para a ciência mistérios insondáveis, isto é, ignorâncias completas, como a matéria, a força, o movimento, a sensação; falam, entretanto, destas coisas como se as conhecessem perfeitamente, não duvidando transportar para elas os atributos que negam a Deus. Detesto-os porque são muitos os absurdos dos seus sistemas proclamando, enormidades como estas: Deus é a matéria; Deus e o complexo das causas; Deus é a química; o mundo é um simples fenômeno cerebral; a civilização é obra do gelo; os animais são religiosos; os macacos inventaram as artes; os insetos construíram as flores; o homem (que vaidosamente se supõe o rei da criação) não é mais do que uma simples combinação de azoto, fósforo, carbono o oxigênio.
Detesto os sábios porque eles se arrogam um título que nem o próprio Arquimedes tinha, porque era chamado apenas um geômetra. O que é certo é que antigamente a palavra sábio não existia; e que hoje chama-se sábio o homem que conhece, uma coisa, mas ignora todas as outras. E porque as ignora diz da química, da civilização, dos macacos, das flores, dos homens e de Deus as enormidades que acabais de ouvir.
E porque as ignora faz de verdades parciais sínteses totais, falsas, e com que mistifica grande número de espíritos.
Detesto os sábios - e quem quiser que me chame de obscurantista, de homem abaixo de sua época e de sua civilização. Não; não me defenderei, nem mesmo para repetir o verso de Moliére:
La science est sugette à faire de grands sots.
Pelo contrário, bem longe de explorar o estro de Moliére, eu defenderei a ciência contra os sábios; eu farei com que a ciência obrigue os sábios a esta tríplice afirmação de Deus: a afirmação sensível, isto é, o universo; a afirmação lógica, isto é, a conservação do universo; e a afirmação pessoal, isto é, a revelação de Deus pelo Verbo, Jesus Cristo.
O universo é uma afirmação visível de Deus, porque, na síntese do universo, como a compõe a própria ciência, cada elemento é uma afirmação de Deus.
A matéria elementar, o mineral, o vegetal, o animal, o homem – eis a síntese do universo. A matéria elementar, pela impossibilidade de toda operação; o mineral, pela impossibilidade da junção das moléculas sem uma força exterior que as ponha em contato; o vegetal, pela impossibilidade das combinações químicas em produzi-lo; o animal e o homem, organismos ainda mais perfeitos do que o organismo vegetal, por essa mesma impossibilidade ainda em maior grau – afirmam a existência de Deus Criador.
A conservação do universo é uma afirmação da existência de Deus, porque, se é certo que a criação implica a conservação dos seres, esta, implica necessariamente o poder criador, sendo que o que a própria ciência chama lei da continuidade é uma afirmação da Providência Divina que a todo o instante mantém o universo.
Quanto à revelação pessoal, essa, podemos vê-la na história. Por que nós aceitamos, sem nenhuma relutância as verdades matemáticas como evidentes?
Porque elas encarnam-se em dados experimentais e sensíveis, o número, o movimento e a extensão; porque elas são uma revelação do absoluto sob a forma do relativo.
Pois bem; o que se dá com o absoluto matemático deu-se com o absoluto metafísico.
A história prova que Deus Se manifestou sob uma forma sensível; que Ele Se afirmou com a evidência de um fato; que Se manifestou diretamente, pessoalmente, por Jesus Cristo.
Jesus Cristo de tal sorte gravou na história não só a certeza de Sua natureza humana, mas também de Sua personalidade divina; de tal sorte gravou a Sua divindade na história, que a história deixa de ser história se Jesus Cristo não é Deus.
Bastantemente tenho analisado a moléstia dos nossos homens de ciência; é justo que agora aponte o remédio de que eles devem usar se realmente querem curar-se de uma enfermidade tão grave, como a desordem intelectual.
Que remédio é este? - É uma das chamadas virtudes cardeais - a Temperança.
A Temperança, nos ensina a Ascética, pode ser considerada em sentido restrito ou sentido lato. No primeiro caso refere-se somente às desordens do gosto e as deleitações sensíveis dessa parte do corpo. No segundo caso refere-se às desordens do espírito e é considerada como uma disposição da alma, como um hábito de caráter que deve preservar o homem de toda exageração.
Por esta razão Santo Agostinho, dizia: Pertence à Temperança nos manter puros e sem máculas, diante de Deus.
Sem dúvida as desordens da intemperança corpórea, porque são mais visíveis, impressionam e escandalizam mais do que as desordens da intemperança espiritual.
Estas, porém, não são menos lamentáveis. As desordens da intemperança corpórea, tão comuns, não só nas classes ínfimas como nas mais altas da sociedade, bem profligadas têm sido, já por médicos, já por moralistas, uns e outros reconhecendo a sabedoria das leis da Igreja que prescrevem a abstinência e o jejum; zombam muitos destes preceitos da Igreja. Mas, responda a eles, o médico notável Vitteau, no seu livro - Da Medicina nas suas relações com a religião - no qual prova que as leis da Igreja, na matéria de que se trata, são leis de conservação, expressões da grande sabedoria. Responda também aos homens das classes altas, que hoje pretendem tornar a vida num prazer sensível, Tolstoi que diz: “Sem abstinência não há vida moral, porque, o homem é doente, tem paixões complicadas que não pode vencer, nem combater primeiramente: a gula e a luxuria. Infelizmente - acrescenta Tolstoi - os homens modernos desprezam esta verdade. Eles se ocupam, é certo, de causas grandes e elevadas: ciência, arte, poesia, distribuição de riqueza, ensino e educação; mas ocupam-se de passagem, no intervalo dos banquetes, quando o estômago está cheio e não pode mais comer".
Mas deixemos de parte a intemperança corpórea e tratemos da que nos interessa hoje: a intemperança do saber, que mata o espírito e nisto estão de acordo com S. Paulo matemáticos como Couchy e químicos como Chevreul, ambos afirmando que a razão do homem precisa de uma disciplina, sem a qual a ciência se perde em extravagâncias e quimeras sem a qual o homem de ciência pretende sempre, o que não é licito, saber tudo, explicar tudo.
Temperança, portanto, eis o que eu aconselho aos nossos intelectuais.
Quando a razão não lhes chegue para compreender os mistérios do mundo, recorram, sem respeito humano, à religião. Façam-no, calcando aos pés toda e qualquer vaidade intelectual, porque não é vergonhoso ao espírito do homem ter limites, como não é vergonhoso ao seu corpo ser contingente e capaz de operar, na esfera da ciência, sem certos instrumentos.
É interessante o diálogo entre Moigno e Arato, este julgando humilhante para o espírito, quando não compreende certas verdades, recorrer à fé; aquele respondendo tão admirável e peremptoriamente que Arago emudeceu.
Moigno disse a Arago: "Grande é o vosso erro, grande é a vossa inconsequência. Grande o vosso erro porque o espírito tem limites como o corpo. Grande é a vossa inconsequência, porque vós próprio que tão admiravelmente tendes descrito as propriedades espantosas do olho, seu poder de recepção, sua capacidade maravilhosa para condensar num ponto quase imperceptível o maior horizonte; vós próprio, quando quereis fazer as vossas experiências, na terra ou no céu, não achais humilhante nem vergonhoso armar os vossos olhos de instrumentos que aumentam o seu poder visual".
Temperança, eis o remédio indispensável. Aceitai-o, homens de ciência, prezados intelectuais, a que me refiro nesta conferência. Aceitai-o e vós vereis que, quebrado o encanto de tantos e tão falsos sistemas que baralham e confundem a vossa inteligência, esta facilmente se submeterá a bela e necessária disciplina, sem a qual vossa razão desvaria.
O deus falso do positivismo deixará vazio o templo de vossa alma, mas neste brilhará fulgurante o Deus verdadeiro, o Deus católico, o Deus pessoal que a humanidade adora no mistério da Trindade; mistério imperscrutável sem dúvida, mas necessário e soberanamente racional porque não podemos negar a Trindade sem negar a Deus, aquelas mesmas coisas que não negamos ao homem e sem as quais o homem não pode viver; que não podemos negar, sem negar a Deus, aquelas mesmas coisas, que damos a todos os seres da criação; que não podemos negar sem negar a Deus aquilo que não negamos a um verme; a vida, o movimento, a produção, a fecundidade, a semelhança e a relação.