quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Da virtude mais necessária aos sectários

 Padre Júlio Maria, C.SS.R.
As virtudes, 1936.

- Vós vistes - eu vo-la mostrei, tratando dos homens de Estado e da virtude que lhes é mais necessária, a maior e a mais bela de todas as instituições que a humanidade tem conhecido: a Igreja. Não só a sua necessidade e a sua origem, a sua constituição e autoridade, não só isto, é certo, mereceu a vossa admiração. Mais do que tudo isso vos impressionaram o espírito, quando descrevi a beleza da Igreja, os exemplos e os fatos dados como testemunho da sua maravilhosa fecundidade.
Exposto como já foi o duplo e magnífico serviço da Igreja, isto é, o serviço particular das almas e o serviço público da sociedade: demonstrado, como já ficou, ser a Igreja um organismo prático, perfeitamente adaptável a todos os interesses sociais e que ela é, no governo das sociedades políticas, o melhor e mais profícuo de todos os instrumentos de que possa lançar mão o poder público; agora é preciso que contempleis, bem saliente, na beleza da Igreja, um apostolado típico, especial, característico, único - o apostolado da Doutrina.
Este apostolado é o maior dom de Deus, ao homem, e o maior sacrifício do homem a Deus. É o maior dom de Deus ao homem, porque é a revelação mesma de Deus, dando ao homem no Dogma - a verdade, que ele deve crer, venerar - a verdade, que ele deve praticar, no culto - a verdade que ele deve amar.
Inteligências há, estreitas, que não vão até à compreensão da necessidade da doutrina, que, entretanto, é a tríplice satisfação do que a natureza humana tem de mais nobre no espírito, de mais digno na vontade e de mais delicado no coração.
Pelo Dogma Deus emancipa o homem do erro.
Pela moral liberta-o do pecado. Pelo culto, exime-o às ilusões do mundo.
Se assim é, mui pequeno espírito ao qual, por sua transcendência, repugna o dogma. Mui fraca a vontade, a que prefere a escravidão das paixões à mais fecundada das liberdades a - da virtude. Mui estreito o coração, o que se contenta com os gozos grosseiros do prazer terrestre, não cobiçando, jamais as delícias inefáveis da piedade.
Mas a Doutrina não é só o maior dom de Deus ao homem; é, também, o maior sacrifício do homem a Deus. Sacrifício múltiplo e sublime!
Múltiplo, porque é a imolação do espírito, da vontade e do coração. Sublime, porque é o espírito repudiando esse lado estreito da inteligência, a que há pouco me referi, e subindo, pela imolação da razão, até a aceitação voluntária das verdades mais transcendentes, como, por exemplo, estas: Deus trino e uno, um homem que é Deus, um Deus que nasce de uma virgem, um Deus que morre, um Deus que, crucificado, substitui no seu Calvário em Jerusalém, um Calvário mais belo, num sacrifício perpétuo - a Eucaristia. Sublime, porque é o homem repudiando o lado estreito e mesquinho de sua vontade, e, subindo pela imolação de suas paixões, até querer coisas que são, para ele, grandes violências, como, por exemplo: a humildade, o perdão das injúrias, o amor aos inimigos, a penitência. Sublime, porque é o homem repudiando o lado mesquinho do amor ilusório que lhe dão as criaturas, até às expansões sobrenaturais do amor divino.
Grande sacrifício, pois, do homem, o que lhe impõe a Doutrina. Mas esse sacrifício, não é só o maior sacrifício do homem a Deus, é também, quando ele reveste o apostolado da palavra, o maior dom de um homem aos outros homens.
Se um homem diz: eu dei aos outros homens os meus bens, a minha casa, a minha herança, nós, sem dúvida o admiramos. Se um homem diz: eu dei aos outros homens todos os afetos, sentimentos e ternuras do meu coração, não podemos negar-lhe, sem dúvida, o nosso amor.
Mas se um homem diz: eu dei aos outros homens, mais do que os bens, coisas materiais; mais do que o coração, coisa bela, mas frágil: eu dei-lhe verdade; então, o que sentimos por esse homem e mais que admiração, é mais do que amor, porque é a gratidão ao maior dos apostolados - o da palavra.
Sim, o maior apostolado é o da palavra porque é o dom do homem inteiro aos outros homens. A palavra e, ao mesmo tempo, o espírito, o corpo e a vida. A palavra é o próprio sangue, porque a palavra é o sangue transfigurado, na mais sublime das caridades: a caridade do ensino.
Desta caridade só a Igreja é capaz, nos homens que só a Igreja envia aos povos, num ministério que só a Igreja possui: a pregação. Só a Igreja. Que pregação já deram a humanidade os maometanos, os turcos, os protestantes? Não deram, nem podem dar; porque o apostolado da palavra é como já ficou dito, um apostolado especial, característico, único da Igreja. Só à Igreja Cristo disse, na pessoa de Seus Apóstolos. Ide e ensinai a todas as nações!
Pois bem - não obstante esta caridade e justamente por motivo dela, vê-se, hoje, senão muito saliente, já bem inequívoco, na desnaturada fisionomia do país, este traço - o ódio à Igreja! Pois é possível? Pode-se odiar o amor? Que é a Igreja senão um grande amor? Amor devotado, persistente, tenaz, que acompanha o homem desde o berço até ao túmulo enxugando as suas lágrimas, consolando as suas dores abrindo os vastos horizontes das suas esperanças?
O amor da Igreja! Quereis ver do que ele é capaz?  Vede-o em S. Paulo, ele quer ser anátema por seus irmãos. Vede-o em Tereza de Jesus. Ela quer sofrer ou morrer. Vede-o em Madalena de Pazzi. Ela não quer morrer, para sofrer. Vede-o nesse humilde cura d' Ars, cujo presbitério ainda recentemente contemplei, embevecido, numa aldeia de França, porque, esfomeado de dores e lágrimas, imolando-se dia e noite, por amor dos homens, o cura d' Ars o transformara num imenso hospital, onde iam buscar alívio todas as dores da humanidade.
O amor da Igreja! Que solicitude maior que a desse amor?
Odiar a Igreja, como fazem os sectários, é odiar a mais solícita de todas as maternidades, essa que gera o cristão no batismo, nutre-o na Eucaristia, fortifica-o na Confirmação, regenera-o na Penitência. Odiar a Igreja é odiar o grande e inexprimível amor que, por assim dizer, persegue o homem, corre atrás do homem, e que, quando mesmo o homem o repudia, abre-lhe os braços e oferece-lhe a salvação.
Razão, pois, tendes, de estranhar o ódio que eu atribuo aos sectários, classificação em que estão incluídos protestantes, espiritistas, maçons, e, em geral, todos os membros das falsas religiões. Razão tendes - mas podeis verificar perfeitamente este ódio contemplando-o neste fenômeno da sociedade brasileira: a hostilidade dos sectários. Essa hostilidade é bem manifesta, hoje, na intolerância falada e escrita. A irreverência com que eles se referem aos homens e às coisas da Igreja: os falsos melindres que em certos incidentes humanos desagradáveis a que não é superior a parte da Igreja, eles mostram, com um zelo farisaico o escândalo fingido: a astúcia com que conseguem da administração e do Governo os maiores favores e privilégios, o modo por que conseguem aliciar para a sua causa jornalistas e políticos; a audácia descomunal com que procura esbulhar a Igreja, no Brasil, do apostolado do ensino - todas essas causas são provas cabais de que o ódio dos sectários se traduz já em manifesta hostilidade. Qual - a causa desta hostilidade nos homens de Estado, como vistes, o desprezo do catolicismo procede da falsa noção da Igreja. Nos sectários, a hostilidade deles ao apostolado da Igreja procede necessariamente - da ignorância ou da falsificação do seu ensino.
Como não ver bem falsificado o ensino da Igreja, nos absurdos que lhe atribuem os sectários a respeito da razão do homem, da sua liberdade e dos progressos da humanidade?
O que, na Igreja, é para a razão humana uma disciplina salutar, de que não prescindem as próprias ciências, eles chamam restringir a razão do homem. O que é na Igreja a verdadeira garantia da liberdade, sempre estéril e funesta, quando desacompanhada da virtude, eles chamam escravidão do homem. O que, na Igreja, é verdadeiramente júbilo pela civilização verdadeira, que ela sempre abençoa, eles chamam horror ao progresso.
Mas não só falsificação, há também, entre os sectários, perfeita ignorância do ensino da Igreja.
Tão necessária a Igreja, tão necessário o ensina Igreja, que, sendo a Igreja, como anteriormente ficou provado, o órgão da verdade, não pode o homem prescindir do seu ensino.
O desejo de conhecer a verdade não foi dado por Deus somente ao filósofo, ao literato, ao sábio: ele é vocação comum de todos os homens.
Ora, a grande maioria do gênero humano não tem nem o tempo, nem a aptidão convenientes para a aquisição da verdade. Era, pois, imprescindível que Deus lhe desse um órgão transmissor da verdade. Quereríeis que esta fosse somente um privilégio dos aristocratas da inteligência, dos fidalgos da ciência, dos privilegiados do talento e do gênio?
Oh! - Deus ama muito o gênero humano, para que tal permitisse. Ele instituiu, pois, na terra, um depósito da verdade, um órgão que a transmite à humanidade e que é revestido de todos os caracteres da verdade. Esse órgão é a Igreja. É a Igreja que liberta o homem da escravidão de um ensino puramente humano; é a Igreja que não permite, a um punhado de homens, filósofos, literatos, sábios, imporem aos outros homens o despotismo dos sistemas das suas seitas e das suas escolas; é a Igreja que nos dá a nós todos a maior, a melhor e a mais vasta de todas as liberdades: essa que nos subtrai ao erro, à dúvida, à ilusão, às lacunas e fraquezas da nossa própria razão.
Eu não posso explorar numa conferência a doutrina da Igreja, de que, entretanto, posso dar uma síntese, posto que, já de si, enormemente vasta.
A doutrina da Igreja pode-se resumir nestes três pontos fundamentais e culminantes: a paternidade de Deus, a mediação de Jesus Cristo o espírito divino da revelação.
Discorrerei longamente sobre estes três pontos, mostrando como nenhuma filosofia, nenhuma ciência, nenhuma política pode rivalizar com a Igreja, nos postulados da dignidade humana, de que o simples Padre Nosso é a fórmula mais esplendida.
No Padre Nosso nós vemos, pela afirmação da paternidade divina dada a todos os homens, despedaçados os sistemas orgulhosos e as hipóteses soberbas com que a meia ciência tem pretendido negar a humildade do gênero humano e firmar a desigualdade das raras. Aliás, a paternidade de Deus, como a Igreja já ensina, não é a que imaginam os sectários.
O pai que a Igreja manda o homem conhecer, servir e amar, não é o patrão que o servo deve temer não é o senhor, cuja cólera aterra o escravo, não e o soberano, cuja altivez humilha o súbdito.
Esse pai que a Igreja nos mostra é a suma bondade, a mediação de Jesus Cristo, no ensino da Igreja, é o requinte do amor, de um amor ardente e impetuoso que se diria a loucura do infinito, porque é o infinito que desce dos esplendores da eternidade e se amesquinha, por assim dizer, em uma forma humana.
Nenhuma política, nenhuma filosofia, nenhuma ciência pode rivalizar com a Igreja, no ensino em que ela dá ao homem, por irmão, o próprio Deus, que Se fez homem e para salvar o homem fez de Seu patíbulo um sacrifício de amor e fez de Sua morte um perdão universal.
Se a mediação de Jesus Cristo é o sumo amor, a solicitude da Igreja, a solicitude enfim com que ela vivifica o mundo, é a mina da alma, o veio de ouro do homem, a suprema riqueza da humanidade.
Basta, para confundir todas as ponderações políticas, a só igualdade de todos os homens, como a Igreja o ensina, mas, se é bom ouvir o ensino da Igreja, melhor é vê-lo praticar. Essa igualdade tão mentirosamente prometida pelos códigos políticos, a Igreja realiza-a, de um modo esplêndido, dizendo a todos os homens, grandes e pequenos, ricos e pobres, fidalgos e plebeus, brancos e pretos: "Vinde, todos, vinde beber das mesmas fontes divinas as águas da salvação! Vinde! Aqui, a mesma pia batiza, o óleo confirma, o mesmo pão nutre, o mesmo tribunal perdoa, tanto os humildes que não se pejam de sua raça, de sua família, de sua condição social, como os orgulhosos que se imaginam descendentes de outra genealogia e de outro sangue humano.
Tal é, em largos traços, o ensino da Igreja. Agora, digo aos sectários: Ou vós o ignorais, ou vós o falsificais. No primeiro caso deveis aprendê-lo; no segundo deveis repudiar a vossa falsificação. A isso vos obriga virtude de que não podeis prescindir e que vos é, na vossa qualidade de sectários, a mais necessária: a Justiça.
Jesus Cristo disse: "Felizes os que têm fome e sede de Justiça".
A justiça a que se refere o Divino Mestre é, sem dúvida, essa que implica, para o homem, o complexo de todas as virtudes. Por isso, quando se diz de um homem - é um justo - tem-se-lhe dado a coroa de perfeição, essa que se traduz, na vida futura, pela bem-aventurança especial por Jesus Cristo prometida.
A Justiça tem uma especificação mais restrita: a que lhe-deu a jurisprudência romana, definindo-a: vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu.
É a justiça nesse sentido, restrito, que hoje aconselho aos sectários; é a justiça, como virtude cardeal.
Sem essa virtude, não podem eles ficar, nem mesmo ao nível dos pagãos.
Mas, perguntareis, foram os pagãos justos para com o cristianismo? Não o foram, bem sei; acho, porém, na injustiça deles uma explicação que a vossa não tem. Para eles o cristianismo se apresentava como uma completa inversão de todas as coisas do universo. Era verdadeiramente para eles um absurdo, um escândalo, uma loucura.
Para vós sectários, o cristianismo já produziu dezenove séculos de civilização. O absurdo desapareceu, o escândalo não têm mais razão de ser, a loucura é reconhecida como o maior prodígio do amor divino.
A justiça dos sectários é menos explicável do que a dos pagãos.
Bem contraditória a vossa civilização, quando, ao mesmo tempo, que reclama justiça, no Parlamento, na imprensa, e até na praça pública, reclama também, para o homem, completa emancipação da moral cristã.
Examinai todas as perturbações da vida contemporânea; analisando, mesmo no Brasil, as inquietações dos espíritos, as queixas dos corações, todas as acusações do homem contra o homem, que verificais:
Que tudo isso procede de injustiças, ou injustiças contra a propriedade, ou injustiças contra pessoas, na sua honra, na sua reputação.
Que são, porém, todas essas violações da justiça senão consequências lógicas da moral independente? Como é possível a justiça numa época em que todos falam de direitos, mas poucos falam de seus deveres? Entre os deveres do homem nenhum sobrepuja, em magnitude e gravidade, o que lhe impõe respeitar a igreja.
A razão é bem simples e aprendam-na os sectários. Deus é o primeiro direito do homem. Criado por Deus e para Deus, todo homem pode dizer: "Deus é meu; Deus me pertence; quero vê-lO: quero ouvi-lO; quero conviver com Ele; quero satisfazer n’Ele as aspirações do meu espírito, os desejos do meu coração. Mostrai-mO, pois, vós, quem quer que sejais, que tiverdes recebido de Deus a missão de conduzir-me ao itinerário terrestre".
A Igreja aparece e prova ao homem a sua missão divina. A Igreja aparece para dar Deus ao homem.
A Igreja tem, pois, direito ao respeito que lhe negam os sectários.
Os sectários! - exclama o orador. Há bem o pouco contemplei em França de quanto eles são capazes.
De um lado, eu via, em Paris, numa mentira de bronze, erguida a figura de Gambetta, com que a França pretende glorificar a liberdade; do outro lado eu via as escolas cristãs vazias, os seminários católicos fechados, os religiosos expulsos. Triste irrisão essa que me fazia verificar experimentalmente o que valem as democracias sem Deus e as repúblicas sem Jesus Cristo, a política sem a religião.
- Justiça! - justiça para a Igreja: Reclamariam-na muitos, porque dizem que o catolicismo é a religião da maioria do povo brasileiro.
Eu não quero indagar o valor desse argumento, nem saber agora, se ele traduz uma verdade certa. Meu ponto de vista é outro. Constantemente, em longos anos de pregação, dos quais sete dedicados ao curso católico que tenho feito nesta Capital, estudei o catolicismo nos seus variados pontos de vista. Não só em conferências preliminares tratei de todas as questões modernas: longas séries consagrei ao Dogma ao Culto e à Moral. Recentemente nos três anos de pregação nesta Catedral, tenho me ocupado da vida cristã, estudando-a de modo especial para as classes dirigentes, nestes três pontos: os mandamentos, os pecados e as virtudes. A orientação que tem preponderância é a da moderna apologética, não mais, propriamente científica, porém psicológica e social, com a demonstração de que o catolicismo é, sob todos os pontos de vista, a religião que se harmoniza com a natureza do homem e com o progresso das sociedades políticas; sendo demonstrações peremptórias desta verdade, não mais argumentos filosóficos ou científicos, porém fatos experimentais, provados por fenômenos psicológicos e sociais, tais como a felicidade ou a desgraça do homem, a prosperidade ou a decadência das nações.
Por isso eu proclamo no Brasil a educação e a política cristã. Diminuísse, embora, o número de católicos no Brasil; conseguissem, embora os sectários oprimir a Igreja e despojá-los das próprias prerrogativas do direito comum, ainda assim a política cristã continuaria a ser para mim uma questão de vida ou de morte, no nosso regime social. Eu faria, se pudesse, o que longos anos fez o mais poderoso e brilhante dos tribunos católicos modernos clamando: Justiça para o catolicismo na Irlanda!
Eu o faria, porque o catolicismo é a expressão última, definitiva e universal deste primeiro e fundamental direito de todo homem: Deus.
E como a Igreja é a liberdade com que o homem conquista esse direito; quando - permiti-me uma hipótese singularíssima, inverosímel - quando um só católico - eu - ficasse no Brasil eu diria:
Não, sectários, não podeis oprimir a Igreja católica, porque eu sou católico. Deus é meu direito; a Igreja é a minha liberdade; e quem quer que seja, mesmo um povo inteiro, que negue o meu direito ou restrinja a minha liberdade, não é digno da liberdade nem do direito.