quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Bondade

J.Guibert
A Bondade - 1907


Se, na bondade, não houvesse nenhum lugar para a vontade, ela seria inteiramente instintiva. Ele se torna humana e meritória e atrai a nossa estima, pela parte de vontade que ela contém. É exato que a vontade não intervém no mesmo grau em todos os homens dotados de bondade: mas são naturezas calmas e simpáticas, que, por serem boas, seguem a natural inclinação; outros são naturezas mais austeras e mais frias, só inteiramente boas em virtude de um esforço, como essas sementes que só dão o óleo que encerram quando submetidas a uma prensa. Os mais bem dotados, aqueles aos quais coube a “grande felicidade de nascer bons” se devem lembrar de que “toda a virtude recusa a facilidade para companheira”, e que a bondade tem tanto mais sabor quanto maior é a soma de vontade que nela entra. 

A vontade, estabelecida no centro da alma como um governador na cidadela, tem na sua mão todas as atividades do homem; ora, ela as modera, se elas se excitam; ora, as desperta, se elas adormecem; sempre ela as dirige, receosa de que não despendam, em pura perda, as suas energias fora do bom caminho. Quando ela tiver decidido, como deve, pôr a sua autoridade ao serviço da bondade, a vontade deverá reprimir os movimentos que a molestam, provocar os sentimentos e as ações que a desenvolvem, opor-se às contrafações que a desfiguram.

As melhores almas têm lutado para dominar certos movimentos instintivos contrários à bondade. São Francisco de Sales confessa que a doçura lhe custou longos e constantes esforços. Em São Vicente de Paulo a caridade não se formou sem combates, de que ele fez a humilde confissão: “Dirigi-me a Deus, conta ele, e pedi-Lhe instantemente me mudasse esse caráter seco que repelia, num espírito atraente e benigno; e, pela graça de Nosso Senhor, com um pouco de atenção que empreguei em repelir os impulsos da natureza modifiquei um pouco a minha atitude."

Quantos sentimentos incompatíveis com a bondade podem espontaneamente surgir na alma! Antipatias involuntárias, ardentes invejas, violentas cóleras, surdas oposições que tomam uma cor de ódio, etc., rebentos da má natureza, nos quais a vontade não tomou parte, mas que ela deve abafar como monstros desde o seu aparecimento na consciência. Se pertence à inteligência ver a insensatez da vergonha, é o papel da vontade desdenhá-las e repeli-las. E deve fazê-lo prontamente, pois se nisso empregasse um pouco de complacência, o coração seria logo pervertido pelo mal. 

Com igual força, deve combater certas tendências que comprimem os impulsos de bondade e tornam o homem mau para o seu próximo. É, antes de tudo, o egoísmo, em que o “eu” absorve todos os pensamentos, que não vê, nos outros, as suas necessidades nem as suas dores, mas somente o que eles lhe podem trazer de alegrias ou de dissabores, e desde então, favorece-os como úteis ou os repeli como perturbadores da tranquilidade. É, em seguida, o interesse, a ambição, forma muito aguda do egoísmo, que ignora os generosos sacrifícios de dinheiro de que a bondade se alimenta, que oprime o operário para lhe fazer dar um grande trabalho em troca de uma miserável salário, que explora a miséria e a fraqueza, e acusa da inexperiência dos simples. É o orgulho, que quer ultrapassar a tudo, mesmo à custa de cruéis injustiças, que impõe o seu domínio, sem respeitar os direitos, e a dignidade dos pobres; que, para chegar às honras, faz um degrau das vítimas de sua ambição. É a sensualidade, cujas baixas paixões, depois de terem fechado o coração a toda a delicadeza e a toda a compaixão, imolam à sua satisfação à honra, o repouso, o interesse, a felicidade de pessoas inocentes e de famílias merecedoras de respeito. Nas almas entregues a esses vícios a bondade não tem as suas entradas livres; o seu reino pacífico só se pode estabelecer numa terra purgada dessas horríveis cobiças. Será a obra da vontade preparar-lhe uma morada. 

Enquanto ela não tiver acalmado todas as tempestades interiores, a vontade deverá pelo menos compor de tal maneira o exterior que nada aí ofenda a bondade. Enquanto em nós se agitam dois homens contrários, ela fará que as exterioridades só exprimam o bem. Ele reterá, portanto, nos lábios essas palavras amargas, secas, violentas ou impregnadas de uma doçura venenosa, que levariam às almas a perturbação ou a morte. Ela suprimirá esse ar altivo que, no olhar, no andar, no gesto, imprime ao indivíduo uma atitude ofensiva. Ela impedirá esses atos de vingança, esses processos injustos, que, abertamente ou sorrateiramente, prejudicam os interesses alheios. 

Por essa firme repressão da natureza; a vontade terá já notavelmente auxiliado a bondade. Ela deve, porém, fazer mais; resta-lhe provocar positivamente os seus movimentos e os seus atos. Ela não pode permitir que nesse particular a alma adormeça; cumpre que ela a excite impulsione ou arraste. 

Eis um homem dotado de uma natureza generosa; mas é frio, reservado, embaraçado. A bondade está no fundo, e aqueles que a descobrem, dela se utilizam; mas a indiferença está na superfície, e os que não cavam o solo árido, só guardam uma lembrança de esterilidade. Pode esse homem deixar assim na sombra os tesouros de bondade que possui? Não. Tanto para explorar o dom de Deus quanto para que dele os outros beneficiem, ele deve cultivar o terreno de sua alma e trazer à flor as riquezas que ela oculta. Deve, pois, a vontade intervir, substituindo a espontaneidade que não se manifesta. E sendo a compaixão o primeiro sentimento que comove um coração e o abala, deixai o bem estar egoísta de vossa casa, ide visitar os que sofrem, os pobres, os doentes, os abandonados, os humilhados, os vergonhosos, aqueles que choram, aqueles que o infortúnio arruinou, aqueles que o desespero tornou maus... Não se contempla impunemente tantas misérias. Diante desse espetáculo lamentável, os corações pervertidos se conservam insensíveis; mas o vosso, adormecido apenas despertará e dentro em pouco baterá o doce ritmo da bondade. 

Desde que se tornar ativa, a vossa bondade será generosa, mas se lhe falta fôlego e energia seja ela socorrida pela vossa vontade. Se não dais por entusiasmo, daí, ao menos, aconselhado pela razão. O sacrifício espontâneo é um gesto mais belo, mas o dom refletido é um ato tão meritório. Com o sangue frio que calcula, tende, pois, por convicção o desinteresse que não poupa a fortuna, nem saúde, nem o trabalho. Por ser comandada e voluntária, a vossa dedicação nada perderá do seu valor útil. 

Do mesmo modo, se a benevolência não fizer parte do vosso temperamento, tentai incluí-la, pelo esforço, na vossa segunda natureza. Desfazei as asperezas que molestam, quebrai esse invólucro que vos aprisiona o coração, desvendai essa bondade que se oculta. Deixai-a revelar-se na suavidade do vosso olhar, na serenidade de vossos traços, na simplicidade de vossas maneiras, na lhaneza de vossa atitude, na afabilidade de vossas palavras. Tudo em vós deve ser atraente, a amenidade de vosso acolhimento com o encanto de vossa conversação. Mostrai que não vos importuna quem vos visita, que não vos fatigam as longas confidências, que não anseias por que vos deixem sós. Desse modo, não sereis um encargo para ninguém, e sereis um abrigo para muitos. Não ofendereis nunca e proporcionareis sempre um bem-estar moral. Mas até que o exercício perseverante vos tenha dado a desejada perfeição, não será necessário que a bondade vos imponha uma salutar violência? 

Seja a bondade natural, ou constitua uma virtude adquirida, cumpre que a vontade a preserve de se desviar do bom caminho. Mas essa vigilância se deve exercer particularmente sobre as naturezas ardentes e originais de que se podem recear todos os excessos. Vivas, generosas, impetuosas mesmo, ora elas empregam delicadezas que se tornam indiscretas, ora se abandonam a uma sensibilidade que degenera numa espécie de egoísmo. A bondade não é ela mesma, se não observa uma justa medida; nós teremos, mais longe, a ocasião de dizer que tudo o que são dos limites da prudência será a sua contrafação Compete à vontade, ainda, a tarefa de pôr ordem e harmonia na caridade.