A SALVAÇÃO NÃO PODE VIR UNICAMENTE DA
PRODUÇÃO E DA ORGANIZAÇÃO
Dir-se-ia que a Humanidade de hoje,
tendo sabido construir a maravilhosa e complexa máquina do mundo moderno,
subjugando em seu serviço forcas ingentes da natureza, se mostra incapaz de lhe
dominar o avanço, como aquele que, tendo deixado escapar o leme das mãos, corre
o perigo de ser submergido e despedaçado. Essa incapacidade de domínio deveria
naturalmente levar os homens, que são vítimas dela, a não esperar a salvação unicamente
dos técnicos da produção e da organização. O trabalho destes, só quando unido e
orientado para melhorar e fortalecer os verdadeiros valores humanos, poderá
contribuir, e notavelmente, para resolver os graves e vastos problemas que
angustiam o mundo. Em caso nenhum, porém, conseguirá estabelecer um mundo sem
misérias. Quanto desejaríamos que todos se convencessem disso, aquém e além do
oceano!
A VIDA SOCIAL NÃO PODE CONSTRUIR-SE À MANEIRA DUMA
GIGANTESCA MÁQUINA INDUSTRIAL
Sabe-se aonde se há de ir buscar o
tecnicismo para o inserir no pensamento social: nas gigantescas empresas da
indústria moderna. Não temos aqui intenção de pronunciar juízo sobre a
necessidade, utilidade e inconvenientes de semelhantes formas de produção.
Constituem sem dúvida aplicações maravilhosas da potência inventiva e
construtiva do espírito humano; são justamente apresentadas à admiração do
mundo essas empresas, que, segundo normas maduramente estudadas, conseguem
coordenar e englobar, na produção e na administração, a atividade dos homens e
das coisas; nenhuma dúvida também que a sua sólida ordem e por vezes a beleza
completamente nova e própria das formas externas são motivo de legítimo orgulho
para a idade presente. O que, pelo contrário, devemos negar é que elas possam e
devam valer, como modelo geral, para conformar e ordenar a moderna vida social.
Antes de tudo, é claro princípio de
sabedoria que só há verdadeiro progresso quando se acrescentam novas conquistas
às antigas, novos bens aos adquiridos no passado, numa palavra, quando se sabe
entesourar experiência. Ora, a História ensina que outras formas de economia
nacional têm sempre tido influência positiva em toda a vida social; influência
de que aproveitaram não só as instituições essenciais - como a família, o Estado
e a propriedade privada - mas também as constituídas em virtude de livre
associação. Indicamos, por exemplo, as indiscutíveis vantagens verificadas onde
predominava a empresa da agricultura ou dos misteres.
Sem dúvida, também a moderna empresa
industrial teve efeitos benéficos; mas o problema, que hoje se apresenta, é este:
Um mundo que não reconheça senão a forma econômica dum enorme organismo
produtivo, será igualmente capaz de exercer influência benéfica na vida social
em geral, e nas três instituições fundamentais em especial? Devemos responder:
o caráter impessoal de tal mundo opõe-se à tendência totalmente pessoal daquelas
instituições, dadas pelo Criador à sociedade humana. De fato, o matrimônio e a
família, o Estado e a propriedade privada tendem, por sua natureza, a formar e
desenvolver o homem como pessoa, a protegê-lo e a torná-lo capaz de contribuir,
com a sua voluntária colaboração e responsabilidade pessoal, para a conservação
e desenvolvimento, também pessoal, da vida social. A sabedoria criadora de Deus
fica portanto alheia àquele sistema de unidade impessoal, que atenta contra a
pessoa humana, fonte e fim da vida social, imagem de Deus no seu mais íntimo
ser.
A "DESPERSONALIZAÇÃO" DO HOMEM MODERNO
Infelizmente não se trata aqui de hipóteses
e previsões, pois já se vê na prática esta triste realidade: onde a mania da
organização invade e tiraniza o espírito humano, manifestam-se logo os sinais
da falsa e anormal orientação do desenvolvimento social. - Em não poucos
países, o Estado moderno vai-se tornando gigantesca máquina administrativa. Estende
a sua intervenção a quase toda a vida: quer tornar matéria da sua administração
toda a gama dos setores políticos, econômico, social e intelectual, até o
nascimento e a morte. Neste clima do impessoal, que tende a penetrar e a
envolver toda a vida, não é portanto nada de maravilhar que o sentido do bem
comum desapareça da consciência dos indivíduos, e o Estado perca cada vez mais
o primordial caráter duma comunidade moral de cidadãos.
EFEITOS DO MULTÍPLICE DESCONHECIMENTO DA PESSOA
HUMANA
Quem tenha ainda dúvidas sobre tal estado
de coisas, olhe para o populoso mundo da miséria e pergunte a tão variadas
categorias de indigentes que respostas lhes costuma dar a sociedade, disposta
como está a desconhecer a pessoa. Pergunte-se ao indigente vulgar, falto de
qualquer recurso, que não raras vezes se encontra nas cidades, nas vilas e nos
campos; pergunte-se ao pai de família necessitado, frequentador assíduo dos
centros de assistência social, e cujos filhos não podem esperar por longínquos
e vagos prazos duma idade de ouro sempre para vir. Pergunte-se também a um povo
inteiro em nível de vida inferior ou bastante baixo, que - tomando lugar na
família das nações ao lado de irmãos que vivem na suficiência ou até na
abundância - espera em vão, duma Conferência Internacional para outra, qualquer
melhoramento estável da própria sorte.
Qual é a resposta que muitas vezes dá a
sociedade hodierna ao desempregado que se apresenta na agência de emprego,
predisposto já por hábito, quem sabe, a nova desilusão, mas ainda não resignado
ao imerecido destino de se julgar um ser inútil? E qual é a resposta que se dá
ao povo que, por mais que faça e se esforce, não consegue libertar-se das
garras atrofiantes do desemprego em massa?
A todos estes já de longa data se repete
incessantemente que o seu caso não pode ser tratado pessoal e individualmente,
que a solução deve ser encontrada numa regulamentação que se há de estabelecer,
num sistema que abrangerá tudo, e que, sem prejuízo essencial da liberdade,
conduzirá homens e coisas a uma crescente e mais coesa forca de ação,
resultante de maior utilização do progresso técnico. Quando se realizar tal
sistema - assim se afirma - surgirá automaticamente a solução para todos: um nível
de vida em constante ascensão e o emprego geral em toda parte.
Estamos longe de pensar que o contínuo
adiamento para uma futura e poderosa organização de homens e coisas seja
expediente mesquinho de quem não quer prestar socorro. Julgamos pelo contrário
que se trata de firme e sincera promessa, capaz de excitar confiança.
Entretanto, não se vê sobre que sólidos fundamentos possa apoiar-se tal
promessa, uma vez que as experiências realizadas até agora conduzem antes ao
cepticismo a respeito de sistemas como esse. Este cepticismo é, além disso,
justificado por uma espécie de círculo fechado, em que o fim estabelecido e o
método adotado correm um após outro sem jamais se encontrar nem harmonizar.
Realmente onde se quer assegurar a ocupação de todos, com a contínua elevação
do nível de vida, tem-se motivo para perguntar ansiosamente até que ponto ele
se poderá elevar sem provocar uma catástrofe, e sobretudo sem ocasionar a
desocupação em massa. Parece deste modo que se deve procurar o mais alto grau
possível de emprego, mas procurando ao mesmo tempo assegurar a sua
estabilidade.
Nenhuma confiança pode portanto iluminar
tal panorama, dominado pelo espectro daquela insolúvel contradição, nem se
fugirá nunca das suas malhas se se continua a contar apenas com o elemento da
mais alta produtividade. É mister considerar os conceitos de nível de vida e emprego
de mão de obra não como fatores puramente quantitativos, mas como valores
humanos no pleno sentido da palavra.
Quem, portanto, quer prestar auxílio às
necessidades dos indivíduos e dos povos não pode esperar a salvação dum sistema
impessoal de homens e coisas, mesmo poderosamente desenvolvido sob o aspecto
técnico. Todo plano ou programa deve ser inspirado pelo princípio de que o
homem - como sujeito, guarda e promotor dos valores humanos - está acima das
coisas e mesmo acima das aplicações do progresso técnico e que importa
sobretudo preservar de uma nefasta "despersonalização" as formas
fundamentais da ordem social mencionadas, e utilizá-las para criar e desenvolver
as relações humanas. Se as forças sociais forem dirigidas para esse fim, não só
realizarão uma natural função sua, mas trarão valiosa contribuição ao provimento
das necessidades atuais, porque lhes compete a missão de promover a perfeita
solidariedade recíproca dos homens e dos povos.
A SOLIDARIEDADE RECÍPROCA DOS HOMENS E DOS POVOS
É sobre a base desta solidariedade, e
não sobre sistemas vãos e instáveis, que Nós convidamos os homens a edificar a
sociedade. Aquela exige que desapareçam as desigualdades clamorosas e
irritantes no nível de vida dos diversos grupos de um povo. Na consecução desse
objetivo, prefira-se à coação externa a ação eficaz da consciência, que saberá
impor limites às despesas de luxo e impelirá igualmente os menos ricos a cuidar
antes de tudo do necessário e útil, e a economizar o restante, quando o houver.
A solidariedade dos homens entre si exige,
não somente em nome do sentimento fraterno mas também da própria conveniência
recíproca, utilizar todas as possibilidades na conservação dos empregos
existentes e na criação doutros novos. Por isso, aqueles que são capazes de
aplicar capitais considerem à luz do bem comum, se poderão conciliar com a sua consciência
pô-los de lado com vã cautela, deixando de fazer tais investimentos desoportuno.
Por outro lado, procedem contra a consciência aqueles que, usufruindo
egoisticamente os próprios empregos, impedem que outros encontrem trabalho,
permanecendo assim desocupados. E quando a iniciativa privada se mostra
inoperante ou insuficiente, os poderes públicos são obrigados a proporcionar,
na maior medida possível, meios de trabalho, empreendendo obras de utilidade
geral, e a facilitar, com a orientação e outros auxílios, a colocação dos que
procuram trabalho.
O nosso convite para tornar eficaz este
sentimento e esta obrigação de solidariedade estende-se também aos povos como
tais: cada povo, no concernente ao nível de vida e à ocupação da mão de obra,
desenvolva as suas possibilidades e contribua para o progresso correspondente
de outros povos menos favorecidos. Se bem que ainda a mais perfeita realização
da solidariedade internacional dificilmente possa conseguir a igualdade
absoluta dos povos, urge todavia que ela seja praticada ao menos em medida tal
que chegue a modificar sensivelmente as condições atuais, que estão bem longe
de representar uma proporção harmoniosa. Noutros termos, a solidariedade dos
povos exige a cessação das enormes diferenças no nível de vida e simultaneamente
nos investimentos e no grau de produtividade do trabalho humano. Esse resultado
não se obterá mediante uma regulamentação mecânica. A sociedade humana não é
uma máquina, nem pode tornar-se tal, mesmo no campo econômico. Ao contrário, é
preciso ter sempre em conta a contribuição da pessoa humana e da individualidade
dos povos, como base natural e primordial, de que será sempre necessário partir
para chegar ao fim da economia pública, isto é, para assegurar a suficiência
permanente de bens e serviços materiais, ordenados por sua vez a melhorar as
condições morais, culturais e religiosas. Esta solidariedade e a desejada
melhor proporção de vida e de trabalho deveriam portanto efetuar-se nas várias regiões,
mesmo relativamente grandes, onde a natureza e o desenvolvimento histórico dos
povos interessados mais facilmente podem oferecer para isso uma base comum.
As dificuldades econômicas não são
todavia as únicas que sofre o homem na sociedade atual. Muitas vezes surgem, em
conexão com elas, dificuldades de consciência, sobretudo para o cristão
preocupado em viver segundo os ditames da lei natural e divina. A consciência,
a que se deveria confiar em grande parte o remédio e a salvação, vê-se assim
condenada a íntimas torturas pelos propugnadores da concepção impessoal da
sociedade. É talvez este o ponto extremo a que chega o homem, no seu esforço de
remediar os males, quando se afasta do divino modelo (1).
(1)
Alocução ao Sacro Colégio, 24 de dezembro, 1952.
Fonte: Pio XII e os problemas do mundo moderno, tradução e adaptação do Padre José Marins, 2.ª Edição, edições Melhoramentos.