TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952
PERDE-SE O TEMPO NA MEDITAÇÃO: PRETEXTO PARA
ABANDONÁ-LA; PRETEXTO FALSO, E NÃO RARAS VEZES CRIMINOSO, NAQUILO QUE PODE TER
DE REAL. MEIOS DE SE OCUPAR UTILMENTE NA MEDITAÇÃO
Mas afinal, acrescentam algumas vezes certas
pessoas, bastas vezes sucede não se ter nenhum atrativo particular. Prepara-se
ou resolve-se ler um assunto, que logo se esquece, ou no qual não se acha com
que se ocupar, ao menos por longo tempo. Neste caso, não se sabe o que fazer na
oração. E logo a gente se persuade de que perde aí o seu tempo, que empregaria
melhor noutro lugar e em alguma ocupação do seu estado. Não é melhor seguir
esta idéia do que estar na oração sem aí fazer nada?
Esta idéia é uma tentação perigosa e funesta, que
afasta de Deus uma alma e a faz esquecer a Deus, justamente pela ocupação que
ela toma contra a vontade d’Ele.
Porque, afinal de contas, — direi eu também por meu
lado, — é bem de admirar que uma alma religiosa formule semelhante queixa, e
confesse, sem corar, que não acha com que se ocupar diante de Deus. Se a
preguiça ou o amor-próprio não a impedem disso, então entre ela em si mesma,
examine diante de Deus se os seus sentimentos, os seus motivos, as suas
diligências, o seu proceder são conformes àquilo que a santidade do seu estado
pede, quais são as paixões que a ocupam, quais as ocasiões que a arrastam às
faltas que ela comete; e, nos sentimentos de pesar que testemunhar a Deus,
procure os meios que deve empregar para se corrigir. Eis aí um assunto que facilmente
se pode ter sempre presente, que se pode tomar com frequência, e que é talvez
um dos mais úteis.
Quantos outros assuntos mais ou menos semelhantes
não pode a gente propor-se! Não há ninguém que não possa prender-se a alguma
das vistas que a Fé fornece, e que lhe podem ser mais familiares.
Como o Publicano, a gente se reconhece indigno dos
benefícios de Deus; implora a Sua misericórdia; admira a Sua bondade que nos
suporta; dá-Lhe mil ações de graças.
Como Madalena, mantemo-nos aos pés de Jesus Cristo; testemunhamos-Lhe
o vivo pesar que concebemos das nossas faltas; solicitamos o perdão delas.
Repassamos na mente os bens que temos recebido da pura liberalidade do Senhor,
a criação, a redenção, a providência especial que nos colocou na sua Igreja,
único asilo para a salvação; a Sua bondade, que nos buscou quando Lhe fugíamos;
a Sua paciência, que nos suportou quando Lhe resistíamos; a Sua doçura, que
nos repôs no caminho quando d’Ele nos transviávamos.
Estes objetos, e mil coisas semelhantes, fundados
naquilo que deveis a Deus e nos vossos interesses pessoais em relação à
eternidade, poderão ocupar-vos utilmente diante de Deus, sem vos constrangerdes,
nem vos obrigardes a deter-vos na mesma vista senão enquanto ela vos ocupar.
Quando se tem uma imaginação viva e volúvel, facilmente
ela é detida apresentando-se-lhe um objeto sensível no qual achamos um bem
interessante. Jesus Cristo, Deus e Homem, é um objeto sensível, e capaz de
excitar numa alma o mais vivo interesse. Que utilidade não podemos tirar dele
para a meditação!
Representamo-no-lo ensinando os homens; fixamo-nos
nas verdades que Ele lhes revela. Consideramo-lo agindo entre os homens: vemos
as Suas intenções para a glória de Seu Pai, a Sua exatidão em cumprir a
vontade de Seu Pai, embora bem rigorosa; a Sua paciência, a Sua caridade para
com os homens, nas humilhações e nos sofrimentos a que Se submete por amor a
eles. Que exemplos não achamos em todas as virtudes que esse divino Salvador
praticou! exemplos capazes de impressionar a imaginação, de ocupá-la
utilmente, se nos dermos o trabalho de os aplicar à nossa conduta.
Muitas vezes, no tempo da oração, estamos diante do
SS. Sacramento. Esta vista relembra-nos o sacrifício de Jesus Cristo nos nossos
altares, a Sua morada no tabernáculo, a mesa santa onde Ele nos convida a nos
alimentarmos da Sua própria carne, e onde tantas vezes nos tem unido a Si de
maneira tão íntima, tão perfeita. Esses prodígios do Seu amor a nós, que
reflexões, que sentimentos não nos inspirarão, por pouca atenção que Lhes
prestemos? Se, apesar de tudo isso, a imaginação se extravia, lançai os olhos
sobre o altar onde Jesus Cristo está presente, sobre a Cruz a que está pregado,
e logo a reconduzireis a Ele.
Em qualquer estado que estejais, ide sempre à
oração, na firme esperança de que será um tempo de mérito para vós. Já que é
Deus quem a ela vos chama, achareis nela as maiores graças pelo sacrifício
contínuo que fizerdes de vós mesmo à vontade de Deus. A confiança dá esta
santa liberdade que se deve ter com um pai infinitamente bom, dilata o coração
pelo amor, consola a alma de todas as suas penas pela esperança das recompensas.
Experimentareis o socorro d’Ele para combaterdes e vencerdes as paixões que são
as inimigas da Sua glória tanto como da vossa felicidade. Nunca vos perturbeis,
pois; não deis ouvidos à preguiça; não temais nada, estando sob a proteção de
um Deus infinitamente bom, todo poderoso, e fiel às Suas promessas.
Achareis sempre ou com que vos ocupardes, ou,
combatendo, com que merecerdes uma felicidade eterna.