Nota do blogue: Acompanhar esse especial AQUI. Com esse post encerro a transcrição desse belíssimo livro.
TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952
DA ESCOLHA DOS LIVROS DE QUE NOS SERVIMOS NA
MEDITAÇÃO,
E DO MÉTODO QUE SE DEVE SEGUIR NESSAS LEITURAS.
Para nos ocuparmos, na meditação, com o socorro dos
livros, importa muito escolher bem os livros de que nos queremos servir, e
seguir nessas leituras um método útil. Há livros que contêm meditações em que a
alma se eleva, de alguma sorte, ao seio de Deus, perde-se nas Suas infinitas
perfeições, e leva a sua vista às profundezas dos Seus mistérios. Esses livros
não são próprios para uma alma que necessita de socorro para se recolher. Só
Deus pode fazer entrar nesta espécie de meditação; e, quando Ele a ela nos
chama, entramos nela sem dificuldade. Uma alma que entrasse nela por si mesma,
sem a isso ser atraída pela graça, extraviar-se-ia infalivelmente, e incidiria
numa funesta ilusão. Não seria Deus quem a conduziria por essa trilha extraordinária;
ela só seria guiada nela pelo orgulho e pela presunção. O amor-próprio, a vã
estima de si mesma não tardaria a insinuar-se na sua oração, impedi-la-ia de
tirar proveito dela, afastá-la-ia mesmo de Deus, ao invés de aproximá-la; ou,
se ela agisse de boa fé, em breve a inutilidade dos seus esforços a lançaria
no desânimo.
Falo, pois, aqui da meditação que está ao alcance de
toda alma cristã. O fim da meditação é não somente esclarecer a mente sobre as
verdades da Religião, sobre a extensão das nossas obrigações, mas é também
excitar o coração a se apegar a Deus pelos sentimentos, e levá-lo à prática
das verdades que devem santificá-lo. Com efeito, de que serviria conhecermos os
nossos deveres, se por motivos da religião não nos aplicássemos a animá-los
desse amor cristão que os faz cumprir em mira a Deus?
Portanto, um livro que só servisse para vos
instruir, que não vos propusesse os motivos próprios para pôr o coração em
movimento a fim de se prender às máximas que ele propõe, não seria próprio para
vos ocupar na meditação. Ordinariamente, a instrução não falta: o que falta é a
determinação à prática.
Livros de meditação prática é que é preciso
empregar; ou então desses livros em que os sentimentos se juntam às reflexões,
e fazem amar o dever fazendo conhecê-lo. Sem isso, perderemos a prática comum
da meditação, e achar-nos-emos muito embaraçados quando quisermos por nós mesmos
refletir sobre as verdades da Religião, e tirar delas ou consequências práticas
ou afetos para regular a nossa conduta; porque não teremos acostumado a nossa
mente a esse método, servindo-nos de livros que não o propõem.
A meditação não é um estudo para se instruir, porém
um meio de se determinar a viver santamente, pelos motivos que a Religião
apresenta. Não basta ser esclarecido sobre as próprias obrigações, é preciso
que o coração se apegue a elas para agradar a Deus.
Se quiserdes tirar fruto desse santo exercício feito
com o socorro dos livros, observai o não lerdes continuamente, sem nunca parar.
A meditação e a leitura espiritual são exercícios bem diferentes: a meditação é
feita para prender o vosso coração a Deus; nunca percais isto de vista. O coração
só se apega pelos seus próprios sentimentos. O que achais nos livros são as
afetos, os sentimentos de outrem: não são os vossos. Portanto, se só fizerdes
ler, lereis muitos sentimentos, mas sentimentos que vos são estranhos. Eles
ocuparão a vossa mente, mas o vosso coração não produzirá nenhum se não
tiverdes cuidado de deter-vos para refletir sobre os motivos que vos são
apresentados, e por este meio excitar o vosso coração a esses sentimentos
salutares, e tornar-vo-los próprios produzindo-os por vós mesma.
Não nos santificamos pelo amor que outro teve a
Deus, e que lemos num livro, porém pelo amor que o nosso coração concebe, e que
ele próprio testemunha a Deus.
O vosso coração sairá, pois, desse exercício quase
tão vazio como nele entrou, porque não terá produzido nada do seu próprio
fundo. A meditação é obra muito mais do coração do que da mente. Uma meditação
em que o coração não age, só apresenta o exterior do edifício, que não contém
nada dentro. E eis aí por que é que as pessoas que se servem de livros, e que
só fazem ler, geralmente saem da sua meditação muito satisfeitas, porém quase
tão pouco recolhidas como estavam antes. Saem dela sem haverem tomado nenhuma
resolução de servir melhor a Deus. Nada tendo feito para se reformar, o coração
torna a encontrar os seus pendores, e continua a entregar-se a eles. Da
meditação corre ele aos divertimentos, aos quais não renunciou.
Lede, pois, se tendes muita dificuldade em estar
recolhido na presença de Deus: lede em espírito de fé; e, quando achardes
alguma reflexão que podeis aplicar à vossa conduta, não a passeis de leve; aprofundai-a,
para gravá-la na mente, e para prender a ela o coração. Ela servirá para vos
corrigir de algum defeito que ela mesma vos fará conhecer em vós; para vos
firmar no amor de alguma virtude interior, que ela vos mostrará, para fazerdes
uso dela nas ocasiões.
Mas sobretudo, quando no livro que meditais
achardes algum bom sentimento, não vos contenteis com admirá-lo; tratai de
vo-lo tornar próprio e pessoal. Numa santa confiança, em Deus, de que pela Sua
misericórdia e pela Sua graça podeis elevarvos aos sentimentos perfeitos que
tantos outros tiveram antes de vós, prendei-vos a eles durante algum tempo
para excitar o vosso coração a produzi- los, não uma vez de passagem, porém
várias vezes e de várias maneiras diferentes, pelos diferentes motivos que o
Espírito Santo vos sugerir para animar o vosso coração; e não os deixeis
enquanto eles vos ocuparem. Se a imaginação ainda se transviar, voltai à
leitura; fazei-a sempre segundo o mesmo método, e sobretudo não vos esqueçais
de que os livros não devem servir para favorecer a preguiça, mas sim para
facilitar o recolhimento.
Se, pelo socorro dos livros, Deus vos der algum bom
sentimento que vos prenda a Ele, ainda mesmo quando esse sentimento fosse
diferente daquele que ledes, deixai o livro e segui esse sentimento; o Espírito
Santo sopra onde quer.
O amor-próprio, que teme sempre o esforço, talvez vos
sugira que não deveis deter-vos então, apesar da luz de Deus; que é preciso ver
se, continuando a ler, não achareis coisas que vos serão mais úteis.
Guardai-vos bem de escutá-lo! Isso é uma astúcia do inimigo, que procura
tornar-vos infiel à graça que recebeis, e que quer fazer-vos perder todo o
fruto da vossa meditação.
As coisas que lemos, como as que ouvimos, só podem
fazer no coração uma impressão salutar na medida em que Deus as acompanhar da
sua graça. É Deus quem fala ao coração, e quem dá o incremento à palavra da
salvação. Deveis, pois, ler e escutar em espírito de fé, de confiança e
docilidade. Deus, que quis atrair-vos nesse momento, talvez não tenha ligado a
mesma graça às coisas em que a procurais, e a vossa infidelidade será causa de
serdes privada dela. Será por culpa vossa que a vossa oração não produzirá
todo o bem que dela esperáveis. Aliás, a mesma tentação vos faria passar sobre
as segundas reflexões como sobre as primeiras. A vossa meditação não passaria
de uma leitura mal feita, da qual nenhuma vantagem tiraríeis.
Se eu me detiver assim, dirá alguém, não terei tempo
de percorrer todos os pontos da meditação.
Mas que necessidade há de os percorrerdes todos, se
um só basta para vos ocupar? Por que deixardes um objeto que vos ocupa
santamente, para procurardes outro que talvez não venha a vos ocupar do mesmo
modo? Por que deixardes o certo pelo incerto? Seria seguirdes a inconstância
do vosso espírito, e não o espírito de Deus.
Nesse objeto que quereis abandonar achareis sempre
duas coisas: ou algum defeito a combater, ou alguma virtude a aperfeiçoar, e um
recolhimento de amor a Deus. A primeira servirá para vos corrigirdes sobre
algum ponto, não raro importante; a segunda pôr-vos-á numa disposição mais
perfeita de praticar todas as virtudes. O amor estende-se a tudo; e, se somos
tão fraco e tão imperfeito, é por não amarmos bastante. Que mais podeis
procurar alhures?
Aproveitai, pois, da graça que Deus vos apresenta.
Nunca deixeis o certo pelo incerto. Dai mais ao sentimento do que à reflexão.
Quando o coração se apega a Deus, a mente ocupa-se d’Ele mais facilmente, e a
imaginação se desgarra mais dificilmente. Enfim, é indubitável a máxima: Para
ir a Deus e ao Céu, segui a impressão de Deus, e guiai-vos pelo Seu Espírito.
Se Ele parece abandonar-Vos, não percais ânimo: sede firme e constante. A
esperança é um porto seguro contra as borrascas e as tempestades. Ainda quando
estivésseis no fundo do abismo, Deus vos tirará dele pela Sua misericórdia. Em
qualquer estado em que estejamos, nunca é permitido desesperar; e, apesar de
todos os seus pretextos especiosos, o desânimo refletido e voluntário é tão desarrazoado
quanto criminoso.