segunda-feira, 7 de outubro de 2013

TRATADO DO DESÂNIMO - Parte XVIII

Nota do blogue: Acompanhar esse especial AQUI.

TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952


A CESSAÇÃO DOS SENTIMENTOS DA PIEDADE, 
PRINCÍPIO ERRÔNEO E DESARRAZOADO DE DESÂNIMO.

Uma alma que Deus, por uma providên­cia particular, conduziu durante algum tempo pela trilha de uma devoção sensí­vel, acha uma razão de desânimo, que ela acredita muito bem fundada, se Deus vem a mudar de conduta a seu respeito, e já não a toca mais sensivelmente.

É por falta de reflexão que ela cai nes­sa armadilha.

Acaso pensa uma alma cristãmente quando se entrega então ao abatimento, ao desânimo? Será por essas doçuras, por essas consolações sensíveis, que ela serve a Deus? Em si mesmo e por si mesmo, Deus não merece nada? A posse de Deus e as recompensas eternas, que são prome­tidas à fidelidade, não fazem nenhuma impressão sobre ela para sustentá-la? Se assim fora, e se ela O reconhecesse, de­veria bendizer a Deus por haver reti­rado essas graças sensíveis: pois seria mui­to de recear que só a si mesma ela hou­vesse procurado no serviço de Deus, e hou­vesse inteiramente esquecido a glória que Deus queria haurir dela.

Portanto, se então ela carece de firmeza nas suas resoluções, é que, perdendo de vista a Deus, e não sendo mais atraída por essa doce sensibilidade, o seu coração não está num exercício frequente de Fé, de Esperança, de Amor, de gratidão, de desejo de ser todo de Deus. Ora, se o seu coração permanecer na inação em rela­ção a Deus, ou se dissipará procurando satisfações naturais, ou incidirá na pusilanimidade e perderá todo ânimo.

Para vos sustentardes em qualquer es­tado em que vos acheis, deve ser a Fé o vosso recurso: ela será a vossa força e o vosso consolo. Se a sua luz vos alumiar e vos conduzir, far-vos-á enxergar as cila­das, e dar-vos-á os meios de evitá-las. A conduta de uma alma fundada na Fé, é bem mais segura do que a conduta de uma alma fundada nas consolações. Na primeira, os princípios aparecem sob o mesmo aspecto, sempre seguros e inabalá­veis; fundam-se na verdade e na revela­ção; facilmente se tiram deles as consequências que se devem pôr em prática, e os meios que se devem empregar para ser bem sucedido. Destas verdades: que Deus, Criador do universo, é o soberano Senhor, o fim último das criaturas; que só as pode ter criado para a Sua glória; que morreu para lhes proporcionar uma vida eterna­mente feliz; de tudo isto claramente se conclui que é preciso obedecer-Lhe, referir-Lhe tudo o que depende de nós, amá-lO acima de todas as coisas, seja lá como for que Ele nos trate. Estas verdades, achamo-las sempre na Religião, desde que o queiramos; ela nos fala sempre a mes­ma linguagem: aqui nada está sujeito à ilusão. Os princípios são claros, são certos: não se fazem mister longos raciocínios para ver as consequências práticas que de­les se devem tirar.

Pelo contrário, a devoção sensível está sujeita à ilusão. Pode-se tomar uma naturalíssima ternura de coração por uma consolação do Céu. Então, depois de ex­perimentar os mais ternos sentimentos na oração, fica-se sem vigilância, sem força, sem vontade para levar uma vida mais re­colhida, mais mortificada, mais regular. Esses exemplos não são raros.

Quanto às consolações e à sensibilidade que vêm realmente de Deus, e que produ­zem numa alma frutos preciosos de virtu­de e de mérito, Deus pode retirá-las. Se­melhantes graças não são necessárias à salvação, e o Senhor às vezes as cerceia, para nos ensinar que, se devemos recebê-las com tanta humildade quanta gratidão, não nos devemos apegar a elas de maneira que a nossa fidelidade esmoreça e conce­bamos inquietação quando elas vêm a nos faltar. Privando-nos delas, Deus não se afasta de nós; tem outros desígnios: quer experimentar e depurar o nosso amor a Ele.

Entretanto, que sucede então com uma alma acostumada a se deixar guiar por essa sensibilidade de devoção, quando não a acha mais no seu coração? Então ela se sente sem apoio: não sabe mais a que recorrer para se animar e se sustentar. Pouco afeita a se guiar por esse amor que vem da Fé, nem sequer pensa em en­veredar por essa trilha, a única que lhe reste, e cujas vantagens ela não conhece. Desconcertada por essa privação, afasta-se de Deus por infidelidades multipli­cadas, por imaginar falsamente que Deus se afasta dela, quando não faz senão ex­perimentá-la. A tentação avoluma-lhe os objetos, e põe-na em perigo de abandonar a Deus inteiramente.

Se a sensibilidade da devoção é mais doce e mais satisfatória, a conduta da Fé é bem mais segura e mais meritória. A esta devemo-nos, pois, apegar em todo tempo e em qualquer estado em que nos achemos. Saboreai as consolações que Deus vos der; mas, agindo, apegai-vos aos princípios da Fé; então não tereis nada a mu­dar aos motivos da vossa conduta, quando as consolações vierem a cessar.