Da languidez amorosa do coração ferido de dileção
É coisa bastante conhecida que o amor humano tem a força não somente de ferir o coração, mas de tornar o corpo doente até à morte, de vez que, assim como a paixão e temperamento do corpo tem muito poder para inclinar a alma e puxá-la atrás de si, assim também os afetos da alma têm uma grande força para revolver os humores e mudar as qualidades do corpo.
Mas, além disso, quando o amor é veemente, leva tão imperiosamente a alma à coisa amada, e ocupa-a tão fortemente, que ela falta a todas as suas outras operações, tanto sensitivas quanto intelectuais, de tal sorte que, para nutrir esse amor e secundá-lo, parece que a alma abandona qualquer outro cuidado, qualquer outro exercício, e ainda a si mesma. Donde haver Platão dito que o amor era pobre, roto, nu, descalço, franzino, sem casa, deitando-se fora no chão das portas, sempre indigente. É pobre, porque faz deixar tudo pela coisa amada; é sem casa porque faz sair a alma do seu domicílio para seguir sempre aquele que é amado; é franzino, pálido, magro e desfeito, porque faz perder o sono, o beber e o comer; é nu e descalço porque faz deixar todos os outros afetos para tomar o da coisa amada; deita-se ao de fora no chão, porque faz ficar a descoberto o coração que ama, fazendo-o manifestar suas paixões por suspiros, queixas, louvores, suspeitas, ciúmes; fica todo estendido como um mendigo às portas, porque faz com que o amante esteja perpetuamente atento aos olhos e a boca da pessoa a quem ama, e sempre preso aos seus ouvidos para lhe falar e mendigar favores, dos quais nunca é saciado: ora, os olhos, os ouvidos e a boca são as portas da alma. E enfim é sua vida o ser sempre indigente; pois, se uma vez ele é saciado, já não é ardente, e, por conseguinte já não é amor.
Certamente, Teótimo, eu bem sei que Platão assim falava do amor abjeto, vil e mesquinho dos mundanos; mas, sem embargo, não deixam essas propriedades de se achar no amor celeste e divino. Porquanto vede um pouco aqueles primeiros mestres da doutrina cristã, quer dizer, aqueles primeiros doutores do santo amor evangélico, e ouvi o que dizia um deles que mais trabalho tinha: Até agora, diz ele, nós temos fome e sede, e estamos nus, e somos esbofeteados, vagueamos, e somos tratados como o lixo deste mundo, e como a escória ou resíduo de todos (1 Cor 4, 11-13). Como se disesse: Somos tão abjetos, que, se o mundo é um palácio, nos somos considerados o lixo dele; se o mundo e um pomo, nós lhe somos o resíduo. Pergunto-vos, quem os havia reduzido a esse estado senão o amor? Foi o amor que lançou São Francisco nu diante de seu bispo, e nu o fez morrer sobre a terra; foi o amor que o fez mendigo a vida toda; foi o amor que enviou o grande São Francisco Xavier, pobre, indigente, roto, aqui e acolá entre os Indús e entre os Japoneses; foi o amor que reduziu o grande cardeal São Carlos, arcebispo de Milão, àquela extrema pobreza, entre todas as riquezas que seu nascimento e sua dignidade lhe davam; pois, como diz aquele eloqüente orador da Itália, monsenhor Panigarole (Nota de rodapé: Francisco Panigarole, da Ordem de São Francisco, depois bispo de Asti, pronunciou a oração fúnebre de São Carlos nas exéquias deste), ele era como um cão na casa de seu dono, comendo apenas um pouco de pão, bebendo apenas um pouco d'água e deitando-se sobre um pouco de palha.
Ouçamos, por favor, a Santa Sulamita como exclama quase destarte: Embora em razão de mil consolações que meu amor me dá, eu seja mais bela do que as ricas tendas de meu Salomão, quero dizer mais bela do que o céu, que não passa de uma tenda inanimada da sua real majestade, visto que eu sou sua tenda animada, não obstante sou toda negra (Cânt. 1, 4), rota, poeirenta e estragada de tantas feridas e golpes que esse mesmo amor me deu. Oh! não repareis na minha tez; porque eu sou realmente morena, visto que meu bem-amado, que é meu sol, dardejou os raios de seu amor sobre mim: raios que iluminam pela sua luz, mas que pelo seu ardor me tornaram crestada e tisnada, e, tocando-me com o seu esplendor, tiraram-me a minha cor. A paixão amorosa torna-me demasiado feliz de me dar um tal esposo como é meu rei; mas essa mesma paixão que me faz às vezes de mãe, visto que só ela me casou, e não meus merecimentos, tem outros filhos que me dão assaltos e trabalhos sem igual, reduzindo-me a tal languidez, que, assim como de um lado eu me pareço com uma rainha que está ao lado de seu rei, assim também do outro eu sou como uma vinhateira que numa mesquinha cabana guarda uma vinha, e ainda uma vinha que não é sua.
Por certo, Teótimo, quando as feridas e chagas do amor são freqüentes e fortes, põem-nos em languidez e produzem-nos a mais amável doença de amor. Quem poderia jamais descrever as languidezes amorosas das santas Catarina de Sena e Catarina de Gênova, ou de Santa Ângela de Foligno, ou de Santa Cristina, ou da bem-aventurada madre Teresa, ou de São Bernardo, ou de São Francisco? E quanto a este último, a sua vida não foi outra coisa senão lágrimas, suspiros, queixas, languidezes, desfalecimentos, êxtases amorosos. Mas nada é tão admirável em tudo isso como aquela admirável comunicação que o doce Jesus lhe fez das Suas amorosas e preciosas dores, pela impressão feita nele das Suas chagas e estigmas.
Teótimo, tenho muitas vezes considerado essa maravilha, e tenho feito dela este pensamento. Esse grande servo de Deus, homem todo seráfico, vendo a viva imagem de seu Salvador crucificado estampada num serafim luminoso que lhe apareceu no monte Alverne, enterneceu-se mais do que se poderia imaginar, presa de consolação e de compaixão soberana; porque, olhando para esse belo espelho de amor que os anjos nunca se podem fartar de olhar, ai! ele desmaiava de doçura e de contentamento. Mas, vendo também, por outra parte, a viva representação das chagas e feridas de seu Salvador crucificado, sentiu em sua alma aquele gládio impiedoso que traspassou o sagrado peito da Virgem mãe no dia da Paixão (Lc 13, 35), com tanta dor interior como se houvesse sido crucificado com seu caro Salvador. Ó Deus! Teótimo, se a imagem de Abraão elevando o golpe de morte sobre seu caro filho único para sacrificá-lo, imagem feita por um pintor, teve o poder de enternecer e fazer chorar o grande São Gregório, bispo de Níssa, todas as vezes que ele a olhava; oh! quanto foi extremo o enternecimento do grande São Francisco quando viu a imagem de Nosso Senhor sacrificando-Se a Si mesmo na Cruz! Imagem que não uma mão mortal, porém a mão de mestre de um serafim celeste tirara e reproduzira do seu próprio original, representando tão vivamente e ao natural o divino Rei dos anjos, machucado, ferido, furado, pisado, crucificado!
Essa alma, pois, assim amolentada, enternecida e quase toda derretida nessa dor amorosa, achou-se por esse meio extremamente disposta a receber as impressões e marcas do amor e dor de seu sumo amante. Pois a memória estava toda embebida na lembrança desse divino amor, a imaginação aplicada fortemente em se representar as feridas e contusões que os olhos contemplavam então tão perfeitamente bem expressas na imagem presente; o entendimento recebia as imagens infinitamente vivas que a imaginação lhe fornecia, e enfim o amor empregava todas as forças da vontade para se comprazer e conformar na paixão do bem-amado, pelo que sem dúvida a alma se achava transformada toda num segundo crucifixo. Ora, como forma e senhora do corpo, usando do seu poder sobre ele, a alma imprimiu as dores das chagas de que estava ferida, nos lugares correspondentes aos em que seu amante as aturara. O amor, pois, fez passar os tormentos interiores daquele grande amante São Francisco até para o exterior, e feriu o corpo com o mesmo dardo de dor com que ferira o coração.
Mas fazer as aberturas na carne por fora, o amor que estava dentro não o podia realmente fazer: foi por isso que, vindo em socorro, o ardente serafim dardejou sobre ele raios de uma claridade tão penetrante, que fez realmente na carne as chagas exteriores do crucifixo que o amor imprimira interiormente na alma. Assim, vendo Isaías não ousar falar, porque sentia os lábios poluídos, o serafim veio em nome de Deus tocar-lhe e purificar-lhe os lábios com um carvão apanhado no altar secundando destarte o desejo dele. A mirra produz sua goma e primeiro licor como à maneira de suor e de transpiração; mas, a fim de que ela deite bem todo o seu suco, é preciso ajudá-la pela incisão. Assim também o amor divino de São Francisco apareceu em toda a sua vida como à maneira de suor, pois ele não respirava em todas as suas ações senão essa sagrada dileção; mas, para fazer aparecer inteiramente a incomparável abundância dela, o celeste serafim veio talhá-lo e feri-lo. E, a fim de que se soubesse que as suas chagas eram chagas do amor do céu, elas foram feitas não com o ferro, mas com raios de luz. Ó verdadeiro Deus! Teótimo, quantas dores amorosas, e quantos amores dolorosos! pois não somente então, mas por todo o resto de sua vida, esse santo foi-se sempre arrastando e definhando como bem doente de amor.
O bem-aventurado Filipe de Néri, na idade de oitenta anos, teve uma tal inflamação do coração pelo divino amor, que o calor, fazendo-se localizar nas costelas, as alargou muito, e lhe quebrou a quarta e a quinta, a fim de que ele pudesse receber mais ar para refrescá-lo. O beato Estanislau Kostka, menino de quatorze anos, era tão assaltado do amor de seu Salvador, que múltiplas vezes caía em delíquio, todo desmaiado, e era forçado a aplicar sobre o peito panos molhados em água fria para moderar a violência do ardor que sentia.
E, em suma, Teótimo, como pensais que uma alma que uma vez tateou um pouco à vontade as consolações divinas possa, neste mundo misturado de tantas misérias, viver sem dor e languidez quase perpétua? Muitas vezes se ouviu aquele grande homem de Deus, Francisco Xavier, lançando destarte sua voz ao céu, quando pensava estar bem solitário: Oh! meu Senhor, não, por misericórdia, não me esmagueis com tamanha afluência consolações; ou, se por Vossa infinita bondade Vos apraz fazer-me assim abundar em delícias, levai-me então para o paraíso: porque quem uma vez degustou bem, no interior, a Vossa doçura, força lhe é viver em amargura enquanto não fruir de Vós. Quando, pois, Deus dá a uma alma um pouco largamente das Suas divinas doçuras, e lhas tira, fere-a por essa privação, e ela depois fica esmorecida, suspirando com David: Ai! quando virá o dia em que a doçura de um regresso me tirará este sofrimento? (SI. 41, 3).
E com o grande Apóstolo: Oh! eu miserável homem! quem me livrará do corpo desta mortalidade? (Rom 7, 24).
(Tratado do amor de Deus por São Francisco de Sales, Livro Sexto, Capítulo XV)