DA VIDA CONFORME AOS PRECEITOS DA FÉ
Para se salvar não basta que se tenha por certo o que ensina a fé, é preciso também conformar o nosso modo de viver aos preceitos da fé. Pico de Mirândola escreve: Certamente é uma grande loucura não querer crer no Evangelho, porém é ainda maior loucura crer no Evangelho e viver-se como se não se cresse nele. (Ep. ad Nep.). Os incrédulos procedem em verdade mui desarrazoadamente fechando os olhos para não verem o precipício para o qual se dirigem; porém muito maior é a insensatez dos fiéis que, percebendo o precipício, nele se lançam de olhos abertos. "Ó meus irmãos, exclama São Tiago (2,14), que adianta se alguém diz ter a fé e não tem as obras? Talvez a fé só o poderá salvar?"
Muitos cristãos crêem que há um Deus justo, que os há de julgar; que um céu ou um inferno eterno os espera, e, contudo, vivem como se não houvesse nem um Deus, nem um juízo, nem um céu, nem um inferno. Muitos crêem que o divino Salvador nasceu por seu amor em um estábulo, que viveu 30 anos em uma pobre casinha, adquirindo o sustento com o trabalho de Suas mãos; e que, finalmente, morreu em uma cruz, consumido de dores, e, apesar de tudo isso, não O amam; chegam mesmo a ofendê-lO com inúmeros pecados. A estes todos São Bernardo dirige a seguinte recomendação (In Cant. 24,8): "Mostrai por vossas obras que tendes fé".
O Cristão deve mostrar por sua vida virtuosa que tem fé. Os pecadores que conhecem as verdades da fé, mas não vivem conforme seus preceitos, o muito que têm é uma fé mui fraca, pois se cressem firmemente que a graça de Deus é o sumo bem, e o pecado, que nela rouba, o sumo mal, mudariam necessariamente de vida. São Bernardo diz que quem confessa a Deus com a boca e O nega com suas ações, consagra sua língua a Jesus Cristo e entrega a sua alma ao demônio. Segundo São Tiago (2,17), a fé que não se externa em obras é uma fé morta. Quando em um homem não se nota mais nenhuma ação vital: não se move mais, não fala mais, não respira, nesse caso não se lhe dá mais o nome de vivo, mas de morto. Da mesma forma deve ser considerada morta a fé que não produz mais obras da vida terrena.
Há muitos cristãos que de boa vontade abraçam os ensinos da fé que ficam na alçada do entendimento, mas não querem de forma alguma aceitas as verdades que se relacionam com a vontade. E, afinal, são estas tão certas como aquelas, já que todas elas nos são propostas pelo mesmo Evangelho. Assim como cremos no dogma da SS.Trindade, da encarnação, do Verbo divino e outros mistérios, devemos também aceitar os princípios estabelecidos por Jesus Cristo para as nossas ações. São Paulo escreveu a seus discípulos: 'Examinai a vós mesmos para conhecerdes se tendes fé". (2 Cor. 13,2) O divino Salvador disse uma vez: "Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus" (Mt. 5,3). Ora, quem não se resigna com sua pobreza e queixa-se das disposições da providência, não pode propriamente ser chamado de "fiel", "crente", pois quem crê de coração não procura sua riqueza e felicidade nos miseráveis bens deste mundo, mas exclusivamente na graça de Deus e na vida eterna.
Quando ofereceram a São Clemente Romano ouro, prata, pedras preciosas para que renegasse a Cristo, deu o santo um grande suspiro e deplorou amargamente o quererem roubar-lhe seu Deus por um preço tão miserável. - o divino Salvador disse igualmente: "Bem-aventurados os pacíficos Bem-aventurados os que choram. Bem-aventurados os que padecem perseguição por amor da justiça". Isso quer dizer: bem-aventurados os que perdoam as injúrias. Bem-aventurados os que pacientemente suportam as enfermidades, perdas de bens e outras adversidades. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por fugirem do pecado ou procurarem a glória de Deus. Ora, quem julga que se desonra perdoando, que só cuida em levar uma vida agradável, não se abnegando em matéria alguma, quem lastima os que renunciam às alegrias terrenas e crucificam sua carne, quem por respeito humano deixa os exercícios de piedade, negligência aos SS.Sacramentos, distraíndo-se com a vida de teatros e bailes, - não pode arrogar-se o nome de cristão.
2) É aqui o lugar de corrigir uma opinião falsa. Muitos pensam que uma vida segundo os preceitos da fé é uma vida triste e privada de toda a alegria. O demônio lhes pinta a nossa santa religião como uma tirania que impõe a seus filhos toda a espécie de penas e fadigas, obrigando-os continuamente à abnegação de seus desejos. Não negamos que a vida conforme a prescrição da fé oferece poucos atrativos aos que querem obedecer unicamente a seus apetites sensuais. "Os que são de Cristo, crucificam sua carne com seus vícios e concupiscência", diz o Apóstolo (Gál. 5,24).
A lei de Jesus Cristo exige combatamos nossas inclinações, amemos nossos inimigos, mortifiquemos nosso corpo, suportemos com paciência as adversidades e ponhamos toda a nossa esperança na vida futura. Por isso, porém, não é triste a vida do verdadeiro cristão. A religião de Jesus Cristo convida-nos, por assim dizer, dizendo: "Vinde e uni-vos a mim; conduzir-vos-ei por um caminho que, considerado com os olhos corporais, parece áspero, mas que se tornará delicioso e agradável a todo aquele que tem boa vontade." Buscai alegrias e delícias? Pois bem! Dizei-me antes que alegria preferis, a que apenas libada desaparece, deixando o coração repleto de amargura, ou a que vos pode saciar e satisfazer por toda a eternidade? Buscai honras? Entendido! Mas, que preferis? uma honra vã, que se esvai como a fumaça, ou uma honra verdadeira, que vos glorificará uma vez à vista de todo o mundo? Perguntai aos que levam uma vida conforme às máximas do Evangelho, se a renúncia aos bens deste mundo os entristece! Visitai o santo eremita Paulo, em sua gruta, São Francisco de Assis, no monte Alverne, Santa Maria Madalena de Pazzi em seu claustro, e perguntai-lhes se acham falta das alegrias terrenas. A uma voz vos responderão: Não, de forma alguma; só queremos a Deus e nada mais.
Se alguém afirmar que a vida conforme aos preceitos da fé é, apesar de tudo, penosa e contrária à natureza, respondo-lhe: Realmente ela é contrária à natureza, mas à natureza corrompida; ela é de fato penosa, mas só para os que se abandonam às próprias forças. Quem confia em Deus e a Ele recorre, acha fácil e agradável a observância da lei de Jesus: "Provai e vede quão suave é o Senhor", diz o salmista (Sl 33,9), e o próprio Jesus: "Meu jugo é suave e minha carga leve". (Mt. 11,30)
Prouvera a Deus que saboreassem uma vez a doçura de uma vida conforme aos ensinamentos da fé os que recuam diante de suas supostas dificuldades e tristezas: indubitavelmente mudariam de opinião e tê-la-iam em grande apreço.
(Escola da Perfeição Cristã para seculares e religiosos, Pe. Saint Omer, C.SS.R, obra compilada dos escritos de Santo Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja, pelo Pe. José Lopes, C.SS.R, IV- Edição, Editora Vozes, 1955)
PS: Grifos meus.