sexta-feira, 5 de novembro de 2010

CONFORMIDADE NAS SECURAS DA ORAÇÃO

CONFORMIDADE NAS SECURAS DA ORAÇÃO



Conta-se nas Crônicas da Ordem de São Domingos (Hist. Ord. Praed., I P., lib. I, c.60), que um dos primeiros Padres da Ordem, depois de ter estado nela alguns anos com grande exemplo de vida e grande limpeza e pureza de alma, nenhuma consolação, por pequena que fosse, sentia nos exercícios espirituais da Religião, nem meditando, nem contemplando, nem orando, nem lendo. E como sempre tinha ouvido falar dos singulares favores que Deus fazia a outros na oração, e dos sentimentos espirituais que nela tinham, estava meio desesperado.

Estando em oração diante do crucifixo, chorando amargamente, pôs-se a dizer estes desatinos:

"Senhor, eu sempre entendi que excedeis a todas as Vossas criaturas na bondade e mansidão; porém aqui estou eu, que há tantos anos Vos servi, sofrendo por Vosso respeito muitas tribulações, e sacrificando-me só por Vós, de muito boa vontade; e se a quarta parte do tempo que Vos tenho servido, servisse a um tirano, já me teria mostrado algum sinal de benevolência, ao menos com um ar de sorriso e graça. E Vós, Senhor, nem um pequeno mimo, nem o mínimo favor me tendes feito daqueles que a outros costumais fazer; e sendo Vós a mesma doçura, sois para mim mais duro que cem tiranos. Que é isto, Senhor? Por que razão quereis que isto seja assim?"

Estando dizendo estas coisas tão desatinadas, ouviu de repente um grande estrondo e tão espantoso, que parecia que vinha a igreja ao chão, e no forro da mesma igreja havia um ruído tão temeroso, que parecia que milhares de cães com dentes queriam despedaçar o madeiramento. Ficou em extremo assombrado e tremendo de medo. Voltou o rosto para ver o que fosse aquilo, e viu atrás de si a mais feia e horrível visão do mundo. Era um demônio que, com uma barra de ferro que tinha nas mãos, lhe deu um tão cruel golpe, que caindo em terra não mais pode levantar-se. Teve contudo ânimo para se ir arrastando até chegar a um altar que estava perto, mas sem poder andar nem menear seus membros com a força das dores, que não parecia senão que lhe tinham desconjuntado todos os ossos a poder de pancadas.

Quando depois os religiosos se levantaram para cantar prima, e o acharam como morto, sem saberem a causa de tão inesperado e mortal acidente, levando-o à enfermaria, o trataram durante três semanas inteiras. Mas no meio das dores gravíssimas que o atormentavam era tão intenso e abominável o mau odor que despia, que os religiosos de nenhum modo podiam entrar no aposento a curá-lo e servi-lo senão tapando cautelosamente os narizes e usando de outras prevenções.

Passadas aquelas três semanas, recobrou forças; e tanto que se pode ter em pé, quis logo curar-se de sua louca presunção e soberba; e tornando ao lugar onde tinha cometido a culpa, buscou nele o remédio dela, e com muitas lágrimas e muita humildade fazia a sua oração bem diferente da primeira.

Confessou a sua culpa e reconheceu-se por indigno de algum bem, e por muito merecedor de pena e castigo. Então o Senhor consolou-o com uma voz do céu que lhe disse:

"Se queres consolações e gostos, convém que sejas humilde, e que reconheças a tua vileza, entendendo que és mais vil que o lodo, e de menos valor que os bichinhos que pisas com os pés".

Com isto ficou tão escarmentado, que dali em diante foi perfeitíssimo religioso.

(Exercício de Perfeição e Virtudes cristãs pelo V.P. Afonso Rodrigues da Companhia de Jesus, versão do Castelhano por Fr. Pedro de Santa Clara, edição de 1946)

PS: Grifos meus.