ESPECIAL DE QUARESMA (2010)
Reflexões sobre o Calvário e a Santa Missa
1ª Parte: A Confissão
2ª Parte: O Ofertório
3ª Parte: Sanctus
4ª Parte: A Consagração
5ª Parte: A Comunhão
6ª Parte: Ite, Missa est
7ª Parte: O Último Evangelho
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O Último Evangelho
“Pai, nas vossas mãos entrego o meu espírito”.
(São Lucas 23,16)
O último Evangelho da Missa é um formoso paradoxo que nos faz regressar ao princípio, pois abre com as palavras “no princípio”...
Também na vida humana o fim é o princípio de outra vida. A última palavra de Nosso Senhor foi realmente, o Seu último evangelho: “Pai nas vossas mãos entrego o meu espírito”.
Tal como no evangelho da Missa, também Ele regressa ao Pai de onde veio. Jesus completara a Sua obra. A Sua missa começara com a palavra Pai, e foi com essa mesma palavra que Ele terminou.
“Todas as coisas perfeitas, diziam os Gregos, movem-se em sentido circular”. Tal como os grandes planetas, que só após um longo espaço de tempo completam as suas órbitas e regressam novamente ao seu ponto de partida, como que para saudarem Aquele que os colocou no seu caminho, também o Verbo Incarnado, que veio ao mundo para dizer a Sua Missa, ao completar a Sua Missa na Terra regressou para junto de Seu Pai Celestial que O enviara para a jornada da Redenção do mundo.
O Filho Pródigo está prestes a regressar à casa de Seu Pai, pois Jesus é também o Filho Pródigo que durante tinta e três anos deixou a casa de Seu Pai e a bem-aventurança do Céu e veio ao país estrangeiro que é a Terra- pois é estrangeiro todo o país distante da casa paterna. Ele despendeu a substância da Sua Verdade na infabilidade da Sua Igreja, e a substância do Seu Poder na autoridade que deu aos Seus Apóstolos e aos Seus sucessores.
Ele despendeu a substância da Sua Vida na Redenção e no Sacramento. Quando esgotou tudo até a última gota, Ele volveu o olhar para a casa de Seu Pai e, num grito ressonante, lançou o Seu Espírito para os braços de Seu Pai, não como alguém que mergulha na escuridão, mas sim como quem sabe que caminha para onde será bem-vindo.
Naquela última palavra e naquele último evangelho que O fez regressar ao Princípio de todos os princípios, e principalmente a Seu Pai, revelam-se a história e o ritmo da vida. O fim de todas as coisas regressa, de qualquer maneira, ao seu princípio.
Tal como a Filho regressa à casa de Seu Pai, e como o corpo regressa ao pó de onde nasceu, também a alma do homem, que veio de Deus, deve algum dia voltar para junto de Deus.
A morte não é o fim de todas as coisas. A lousa fria que cai sobre a sepultura não marca o fim da história de um homem. A maneira como ele viveu a sua vida determina as condições da sua vida futura. Se ele procura Deus durante a existência, a morte será como que a abertura de uma gaiola. Ele poderá então, servindo-se das suas asas, voar para os braços do Bem-Amado.
Se ele, durante a vida, se afastou de Deus, a morte ser-lhe-á como que o início de um eterno afastamento da verdadeira Vida, da Verdade e do Amor – será o inferno.
Junto ao trono de Deus, de onde viemos para o nosso noviciado da Terra. Deveremos regressar algum dia para prestar contas do uso que fizemos da nossa existência. Não haverá um único ser humano que, ao chegar à última folha do livro da sua existência, não encontre ali traçado o seu destino, segundo aceitou ou rejeitou a divina dádiva da Redenção.
Aceitando-a, ou rejeitando-a, o homem terá assinado, por sua própria mão, a sentença do seu eterno destino. Tal como na caixa registradora ficam apontadas as importâncias para serem conferidas no final do nosso dia de negócio, também os nossos pensamentos e obras são registrados para o Julgamento Final.
Se, porém, vivemos sempre à sombra da Cruz, a morte não será o fim, mas sim o princípio da vida eterna. Em vez de uma separação, aguardar-nos-á uma reunião; em vez de uma partida, será uma chegada; em vez de encontrarmos um fim, esperar-nos-á um último evangelho – um regresso ao princípio.
Tal como a voz do destino murmura, “Deves abandonar a Terra”, a voz do Pai diz: “Meu Filho, vem para Mim”!
Fomos enviados a este mundo como filhos de Deus, para assistirmos ao Santo Sacrifício da Missa. Compete-nos permanecer aos pés da Cruz e, como àqueles que ali permaneceram desde o primeiro dia, ser-nos-á pedida a declaração da nossa lealdade.
Deus deu-nos o grão e a cepa da vida e, à semelhança do homem que, segundo o Evangelho, recebeu talentos, também nós devemos apresentar a retribuição das graças divinas que tivermos recebido.
A vida que Deus nos concedeu representa o grão e as cepas, e é nosso dever consagrá-los, restituí-los a Deus, sob as formas de pão e de vinho, transubstanciados. As nossas mãos devem apresentar o fruto das colheitas, quando chegar o fim da nossa peregrinação na terra.
É essa a razão pela qual o Calvário se ergue no meio de todos nós, e nos encontramos sobre a sua montanha sagrada. Não nascemos para ser simples espectadores, ou para lançarmos os dados, como fizeram os algozes de outrora, mas sim para sermos participantes do mistério da Cruz.
A maneira de reproduzir o quadro do Último Julgamento, durante a Santa Missa, será a evocação da forma como o Pai recebeu e saudou o Seu Filho, olhando para as Suas mãos. Nelas se evidenciavam os vestígios do trabalho, as calosidades da Redenção e as cicatrizes da Salvação.
Também nós, terminada a nossa peregrinação na Terra e no regresso ao princípio, veremos que Deus olha as nossas mãos. Se durante a nossa vida tivermos tocado as mãos do Seu Divino Filho, as nossas mãos apresentarão as marcas dos pregos; se tivermos percorrido a senda que conduz à eterna glória, através das veredas tortuosas e difíceis do Calvário, também os nossos pés apresentarão os mesmos ferimentos; se os nossos corações bateram em uníssono com o de Jesus, também eles ostentarão a chaga do lado, aberta pela lança que trespassou o Coração do Salvador.
Abençoados são, pois todos aqueles que levam nas suas mãos, marcadas pelos cravos da Cruz, o pão e o vinho das suas vidas consagradas, marcadas pelo signo e pelo selo do Amor redentor.
Mal, porém, daqueles que se afastaram do Calvário e que apresentarão as mãos brancas e sem cicatrizes! Quando a vida se acaba, e a Terra se desvanece como um sonho, quando a luz da eternidade entra a jorros nas almas, com todo o seu esplendor, os justos podem com uma fé humilde, mas triunfante, repetir, como num eco, a última palavra de Cristo: “Pai, nas Vossas mãos entrego o meu espírito”!
E, assim, termina a Missa de Cristo. O Confiteor foi a Sua oração ao Pai, para que nos perdoasse aos nossos pecados; o Ofertório foi a apresentação das pequenas hóstias, sobre a patena da Cruz; o Sanctus foi a encomendação das nossas almas a Maria, a Rainha de todos os Santos; a Consagração representou a separação do corpo do Salvador e a aparente separação de divindade e humanidade; a Comunhão foi a Sua sede pelas nossas almas; o Ite Missa est foi o remate da obra da salvação; o último evangelho foi o regresso de Jesus a Seu Pai.
E, agora que a Missa está dita, que Jesus encomendou o Seu espírito ao Pai Celestial, Ele prepara-Se para restituir o Seu corpo a Sua Mãe Santíssima, aos pés da Cruz. Também esta última fase será um regresso ao princípio da Sua vida terrestre – a Belém, ao tempo em que Se aconchegava no regaço de Sua Mãe, retomando novamente o Seu lugar.
A Terra tinha sido cruel para Ele; os Seus pés vaguearam pelos caminhos da ovelha tresmalhada, e nós trespassamo-los com os cravos de ferro; as Suas mãos ofereceram-nos o pão da Vida Eterna, e nós pregamo-las nos braços da Cruz; os Seus lábios ensinaram-nos a Verdade, e nós oferecemos à Sua sede o fel e o vinagre. Ele veio para nos dar a Vida, e nós demo-Lhes a morte; mas esse foi o nosso erro fatal, pois não Lhe roubamos realmente a vida, e apenas tentamos fazê-lo. Ele deixou-Se vencer por Sua própria vontade.
Nenhum dos Evangelhos diz, de fato, que, Ele morreu, mas sim, “Ele rendeu o espírito”. Foi, pois, um ato voluntário, uma renúncia espontânea da própria vida.
Não foi a morte que se aproximou d’Ele. Foi Ele quem Se aproximou da morte. E foi por essa razão que o Salvador, à aproximação do fim, ordenou que os portais da morte se Lhe abrissem, na presença de Seu Pai.
O cálice vai-se gradualmente enchendo com o vinho rubro e precioso da salvação. As rochas da terra abrem as suas bocas sequiosas, para o beber, como se ela própria estivesse mais necessitada da torrente da salvação do que os ressequidos corações dos homens.
A Terra estremeceu de horror porque os homens tinham erigido sobre seu seio a Cruz de Deus. Madalena, arrependida, lá estava, abraçada aos pés da Cruz; João, o sacerdote, cujo rosto é a imagem fiel do próprio amor, escuta as pulsações do coração, cujos segredos aprendera a amar.
Maria, absorta, pensa quanto o Calvário é diferente de Belém.
Trinta e três anos antes, Maria baixava o seu doce olhar para a sagrada face de Jesus Menino. Em Belém o Céu contemplava a face da Terra; agora, os papéis invertiam-se. É a Terra que ergue os olhos para a face do Céu – um Céu marcado pelas cicatrizes da Terra.
Ele amava Maria, acima de todas as criaturas da Terra, porque Ela era a Sua Mãe e a Mãe de todos nós. Ele viu-A, logo que chegou à Terra, e viu-A ainda no momento derradeiro , antes de A deixar. Os Seus olhos encontraram-se, resplandecentes de vida, trocando, entre si, uma linguagem que só Eles entendiam.
No meio de um rapto de amor, uma cabeça inclinou-se, um coração parou, outro coração despedaçou-se. Jesus entrega o Seu espírito puro, sem mácula, nas mãos de Deus, por entre o ressoar das trombetas da vitória eterna. E Maria, a Mãe que acaba de perder o Seu Filho, permanece aos pés da Cruz. Jesus está morto.
Maria ergue o Seu olhar para os olhos de Jesus, vivos e claros ainda no Seu rosto imobilizado pela morte.
Sumo Sacerdote do Céu e da Terra, a Vossa Missa está terminada! Deixa o altar da Cruz e encaminha-Vos para a Vossa sacristia. Como Sumo Sacerdote, Vós vieste da sacristia do Céu, paramentado com as vestes da humanidade, e o Vosso corpo e o Vosso sangue eram o pão e o vinho.
Agora, o Sacrifício está consumado. Fez-se ouvir o toque da campainha da Consagração, e resta apenas o cálice esgotado e enxuto. Entra na Vossa sacristia, despe as vestes da mortalidade, e enverga a túnica branca da imortalidade.
Mostra as Vossas mãos, os Vossos pés e o Vosso lado a Vosso Pai Celestial e diz: "Assim fui ferido na casa daqueles que Me amaram".
Entra, Sumo Sacerdote, na Vossa sacristia celestial e, quando os Vossos representantes na Terra erguerem a hóstia e o cálice, mostrai-Vos ainda a Vosso Divino Pai, e intercede amorosamente por nós, até a consumação dos séculos.
A Terra foi cruel para conVosco, mas Vós serás extremamente misericordioso para com ela. A Terra Ergueu-Vos na Cruz, mas agora Vós elevarás a terra por meio por meio da Cruz. Abre as portas da celestial sacristia, ó Sumo Sacerdote! Vê que estamos agora à Vossa porta e não cessamos de bater!
E o que Vos diremos nós a Vós, Maria? a Vos que és a sacristia do Sumo Sacerdote, como já o foste em Belém, quando Ele veio até junto de Vós, para trazer ao mundo o grão e a cepa? E foste-o também na Cruz, onde Jesus Se transformou no Pão da Vida e no Vinho, por meio da Crucificação.
Vós és também o Seu sacristão, agora que Ele vem do altar da Cruz, trazendo apenas o Cálice enxuto do Seu sagrado corpo. Quando esse cálice repousa no Vosso regaço é como se voltasses aos tempos de Belém, porque Ele é Vosso, mais uma vez, O cálice só é, porém, o mesmo, na aparência, pois o de Belém sofrera apenas a prova do fogo que o moldara, ao passo que o da Paixão passara pelo duplo fogo do Gólgota e do Calvário.
Em Belém, Ele era branco, tal como viera das mãos de Deus, Seu Pai: agora é da cor de sangue, tal como vem até nós.
Vós és, porém, ainda a Mãe Imaculada daqueles que ajoelham junto ao latar; fazei com que nos apresentemos ali na maior pureza e assim nos conservemos, até ao dia em que entremos na Sacristia Celestial do Reino dos Céus, onde Vós serás a nossa eterna sacristia e Jesus o nosso eterno Sacerdote.
E vós, amigos do Crucificado, o vosso Sumo Sacerdote abandonou a Cruz, mas deixou-nos o altar.
Na Cruz, Ele estava só, mas na Missa está conosco.
Na Cruz, Ele sofreu no Seu corpo físico. No altar, Ele sofre no Seu Corpo Mistico, que somos nós.
Na Cruz, Ele era a única Hóstia; na Missa, nós representamos pequenas hóstias, e Ele a Hóstia imensa, recebendo o Seu Calvário por nosso intermédio.
Na Cruz, Ele era o Vinho; na Missa nós somos a gota de água, unida com o vinho e consagrada com Ele.
Sob esse aspecto, Ele está ainda na Cruz, rezando a Confissão conosco, perdoando-nos ainda, encomendando-nos ainda a Maria, sequioso ainda por nós, encaminhando-nos ainda para junto de Seu Pai, pois, enquanto o pecado existir na terra, a Cruz permanecerá!
"De dia ou de noite,
onde quer que o silêncio me rodeia,
sou surpreendido por um grito
que vem do alto da Cruz.
A vez primeira que o ouvi,
parti à procura...
E encontrei um homem nas agonias da crucificação.
E disse-Lhe:
"Vou despregar-Vos da Cruz!"
E tentei arrancar os cravos dos Seus pés,
mas Ele disse:
"Deixa-os estar, porque eu não posso ser retirado,
enquanto cada homem, cada mulher e cada criança
não vierem, juntos, retirar-me daqui".
E eu volvi:
"mas eu não posso ouvir Vosso grito. O que devo fazer?"
E Ele replicou:
"Vai, mundo fora, e diz, a todo aquele que encontrares
que está um Homem pregado na Cruz!"
(O Calvário e a Missa - Arcebispo Fulton J. Sheen - Sétima e última parte)
PS: Grifos meus