Da condolência e complacência
do amor na Paixão de Nosso Senhor
(São Francisco de Sales)
Quando eu vejo meu Salvador no monte das Oliveiras, com Sua alma triste até à morte (Mt 26,38), oh! Senhor Jesus, digo eu, quem pode suportar essas tristezas da morte na alma da vida senão o amor, que excitando a comiseração, atraiu por ela nossas misérias ao Vosso coração soberano?
Ora, vendo esse abismo de tédios e de angústias nesse divino amante, como pode uma alma devota ficar sem uma dor santamente amorosa? Mas, considerando, por outra parte, que todas as aflições do seu bem-amado não procedem de nenhuma imperfeição nem falta de força, mas da grandeza da sua cara dileção, não pode ela deixar de derreter-se toda de um amor santamente doloroso. De tal sorte que ela exclama: Sou negra de dor por compaixão, mas sou bela de amor por complacência; as angústias de meu bem-amado descoraram-me (Cânt 1, 4-5) toda. Porque, como poderia uma fiel amante ver tantos tormentos naquele a quem ela mais ama do que a sua vida, sem ficar com isso toda transida, lívida e seca de dor? As tendas dos nômades perpetuamente expostas às injúrias do ar e da guerra estão quase sempre amarrotadas e cobertas de pó; e eu exposta toda aos pesares que por condolência recebo dos trabalhos sem par de meu divino Salvador, estou toda coberta de angústia e traspassada de dor; mas, por isso que as dores daquele a quem amo provém do Seu amor, à medida que elas me afligem por compaixão deleitam-me por complacência.
Pois, como poderia uma fiel amante não ter um extremo contentamento de se ver tão amada por seu celeste esposo? Por isso, pois, a beleza do amor está na fealdade da dor. E, se eu estou de luto pela paixão e morte de meu Rei, toda crestada e negra de pesar, não deixo de ter uma doçura incomparável em ver excesso do seu amor em meio aos trabalhos de suas dores; e as tendas de Salomão (Ib.) todas bordadas e recamadas numa admirável diversidade de trabalhos nunca foram tão belas como eu estou contente e por conseguinte, doce, amável e agradável na variedade dos sentimentos de amor que tenho por entre essas dores. O amor iguala os amantes. Oh! Vejo que esse caro amante é um fogo de amor, ardendo numa sarça espinhosa de dor (Êx 3, 2), e eu assim sou igualmente; estou toda inflamada de amor dentro dos matagais das minhas dores, sou um lírio circundado de espinhos (Cânt 2, 1). Ah! não queirais sequer olhar os horrores das minhas dores pungentes, mas vede a beleza dos meus agradáveis amores. Ai! sofre dores insuportáveis esse divino amante bem-amado; é isto que me entristece e me faz desmaiar de angústias; mas ele acha prazer em sofrer, ama os seus tormentos e morre de contentamento por morrer de dor por mim. É por isso que, assim como me dôo pelas suas dores, fico também toda enlevada de contentamento pelo seu amor; não somente me entristeço com ele, mas me glorifico nele.
Foi esse amor, Teótimo, que atraiu sobre o amoroso seráfico São Francisco os estigmas, e sobre a amorosa e angélica Santa Catarina de Sena as feridas ardentes do Salvador, havendo a complacência amorosa afiado as pontas da compaixão dolorosa, tal como o mel torna mais penetrante e sensível o amargor do absinto: e como, ao contrário, o suave odor das rosas é afinado pela vizinhança dos alhos que são plantados perto das roseiras. Porquanto, do mesmo modo que a amorosa complacência que haurimos no amor de Nosso Senhor torna infinitamente mais forte a compaixão que temos das Suas dores, reciprocamente, tornando a passar da compaixão das dores à complacência dos amores, o prazer disto é bem mais ardente e elevado. Então se pratica a dor do amor, e o amor da dor: então a condolência amorosa, e a complacência dolorosa, quais outros Esaú e Jacob, lutando (Gn 25, 22) sobre quem fará mais esforços, põem a alma em convulsões e agonias incríveis, e produz-se um êxtase amorosamente doloroso e dolorosamente amoroso. Por isso aquelas grandes almas de São Francisco e Santa Catarina sentiram amores sem par nas suas dores, e dores incomparáveis nos seus amores, quando foram estigmatizadas; saboreando o amor jubiloso de sofrer pelo amigo, amor que o seu Salvador exerceu no grau supremo na árvore da cruz. Assim nasce a união preciosa do nosso coração com seu Deus, a qual, como um Benjamim místico, é filha de dor e de alegria conjuntamente (Gn 35, 18).
Não se pode dizer, Teótimo, o quanto o Salvador deseja entrar em nossas almas por esse amor de complacência dolorosa. Ai! diz Ele, abre-me, minha cara irmã, minha amiga, minha pomba, minha imaculada, pois minha cabeça está repleta de orvalho, e meu cabelos das gotas da noite (Cânt 5, 2). Que é esse orvalho, e que são essas gotas da noite senão as aflições e penas da Sua Paixão? As pérolas, certamente, como dissemos bastas vezes, não são outra coisa senão gotas do orvalho que a frescura da noite esparze sobre a face do mar, recebidas nas conchas das ostras ou madrepérolas. Oh!, quer dizer o divino amor da alma, estou carregado das penas e suores de Minha Paixão que se passou quase toda ou nas trevas da noite ou na noite das trevas que o sol, escurecendo-se, fez no mais forte do seu meio-dia. Abre, pois, teu coração para Mim, como as madrepérolas abrem suas conchas para o lado do sol, e derramarei sobre ti o orvalho de Minha Paixão, que se converterá em pérolas de consolação.