sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Capítulo III - Segunda Dor: A Fuga para o Egito

Nota do blogue: O texto que segue é longo e de uma riqueza indescritível, aconselho vivamente que ele seja lido por partes e de forma meditada para que se possa retirar todos os frutos desta leitura. Você pode acompanhar o ESPECIAL deste livro AQUI.

Saudações,
A grande guerra

Capítulo III - Segunda Dor: 

A Fuga para o Egito



A fuga para o Egito tem sempre sido, na Igreja, um assunto fecundo para a poesia e para a arte, além de, para as almas religiosas, uma fonte abundante de lágrimas e de contemplação. Não somente se trata dum mistério de extrema beleza, como também os gentios o podem olhar, depois da Epifania, como o começo das operações de Nosso Senhor sobre eles. Jesus foge de Seu povo para ir encontrar refúgio em um povoado pagão; Ele consagra, por Sua presença, a terra mesma que havia sido a maior inimiga histórica de Seu povo e que era, por assim dizer, o verdadeiro tipo de todas as trevas da idolatria. Entre esses gentios envoltos em trevas, Ele encontra uma estadia pacífica, onde as perseguições não vêm perturbar a calma de Sua infância; os ídolos tombam de seus altares à medida que Ele marcha; uma virtude secreta avança pelo rico vale do Nilo para o inundar e se expandir ao longe em suas planícies de areias ardentes; ela santifica toda essa região, e a assinala como um santuário futuro, um deserto a florir, desolação a mudar-se num paraíso povoado de Santos. Os Padres do deserto tornar-se-ão proverbiais entre as grandezas do ocidente cristão; serão um fenômeno que os homens não se cansarão jamais de admirar, uma disciplina vivificante, uma escola permanente, na qual todas as gerações futuras de Santos virão se instruir e formar. Assim, o ocidente irá se acumular de tradições referentes à fuga para o Egito, ao refúgio encontrado nesse povoado e ao retorno de lá.

Se a paz não existe na retirada vila de Nazaré, onde a irão encontrar? Os olhares dum poder excessivo, tornados mais penetrantes pelo discernimento sutil dum temor egoísta, descobrirão o santo Infante entre os numerosos meninos dessa desprezada vila? O espírito do mal é atento; a paz não será a herança de Jesus, nem de Maria. É verdade que Jesus é o príncipe da paz, mas não duma paz que se encontre na terra. Maria perdera-a havia pouco tempo; Seu Coração estava amargurado; tinha necessidade de descansar; o repouso viria na hora ordinária, mas ocorre outra coisa. No meio da noite, o Senhor aparece durante o sono a José, o guardião sobre a terra dos tesouros mais preciosos do Céu, e lhe ordena que se levante, tome o Menino e Sua Mãe, e fuja para o Egito. Os três Reis haviam retornado ao oriente sem descobrir a Herodes onde se encontrava o Rei recém-nascido. Herodes lhes havia mandado que voltassem para lhe contar, mas a Escritura não diz que eles tenham prometido fazê-lo; ou, se tinham prometido, a ordem recebida de Deus anulava a promessa feita. Entretanto, a tirania não aceitaria se ver assim frustrada e, para alcançar seu intento, ela afoga Belém em sangue pelo massacre dos inocentes. Ó Maria, vede que irmã cruel [soeur cruelle] Vós tendes sido para essas pobres mães de Belém, que Vos tinham visto, na noite de Natal, errar sem asilo pelas ruas, enquanto acariciavam, talvez, seus pequenos meninos à porta! Que concerto de gemidos se eleva do cimo estreito dessa colina, ao passo que o sangue corria abundantemente em rios pelas ruas, em ladeira rápida! Essa é a lei da Encarnação, a lei que envolvia o doce Jesus, e que começava sua obra. Senhor bem-amado! Seu grande amor por nós havia já amargurado o Coração de Sua Mãe. Esse amor enche agora de desolação os felizes lares de Belém, e mancha de sangue as suas portas não hospitaleiras. E tudo isso afim de conservar Jesus para o Calvário, onde Ele deveria, com sofrimentos mil vezes mais cruéis, derramar Seu preciosíssimo Sangue por nós.

A noite era escura e tranqüila fora da pequena vila de Nazaré quando José partiu. Nenhuma ordem de Deus foi jamais executada pelo santo mais grande, nem pelo anjo mais zeloso, com tanta prontidão, quanto aquela o foi por Maria. Ela ouviu as palavras de José e Lhe sorriu em silêncio enquanto ele falava; nada de perturbação ou precipitação nEla, embora experimentasse todo o cuidado duma mãe. Ela toma Seu tesouro, que ainda dorme, e parte com José, sob a fria luz das estrelas. Sua pobreza tinha poucos preparativos a fazer. Ela muda de novo de habitação; o terror, as dificuldades, o deserto e o abrigo entre pagãos estavam presentes a Seus olhos, e Ela faz face a tudo isso com a calma angústia dum Coração já ferido. Aqui e ali o vento da noite se agita nas figueiras despojadas de sua folhagem, curvando seus galhos ao céu brilhante, e, de tempos em tempos, um cão de guarda latia, não porque ouvisse os fugitivos, mas pela inquietude noturna dos animais. Mas, assim como Jesus tinha vindo como Deus, também se retirava agora como Deus, sem ser notado e sem que Sua ausência parecesse deixar um vazio. Ninguém parece fazer menos falta sobre a terra do que Aquele de quem ela depende por completo.

O caminho que eles preferiram não era aquele que a prudência humana teria indicado; eles retornam pela estrada de Jerusalém, a mesma há pouco percorrida. Evitando, porém, entrar na cidade santa, eles passam perto de Belém, como se a vizinhança de Jesus devesse espalhar a benção sobre esses meninos que, na ignorância da sorte cruel que os ameaçava, repousam ainda tranquilamente nos braços de suas mães; entram, assim, no caminho que leva ao deserto, José marchando na frente, como a sombra do Pai Eterno; atravessam a fronteira da terra prometida e avançam até que o olhar os perda de vista e eles pareçam simples manchas sobre a areia do deserto. Duas criaturas levam o seu Criador pelo deserto e preocupam-se com Ele em meio às areias pedregosas dessas gargantas sem água. O nascer e o pôr do sol, o clarão do meio-dia e o luar da meia-noite, a órbita da lua, a pele queimada pelo calor, eram coisas que se renovavam para eles durante os dias passados no deserto. Entretanto, continuam seu caminho. À noite, tinham de suportar o frio, e, de dia, eram queimados por um sol contra o qual não havia abrigo; não tinham, também, mais do que um pouco de alimentos, e a sede era constante; eles sabiam a quem estavam transportando, mas não buscaram milagres para aliviar sua sorte.

O Bom Ladrão
Uma antiga tradição conta que eles entraram, uma noite, numa caverna que era abrigo de ladrões; foram recebidos pela mulher do chefe da corja, com uma hospitalidade rude, mas benévola. Pode ter sido que a aflição a tornasse boa, pois é sempre assim com as mulheres. Ela tinha também um belo menino, a vida de sua alma, o único ser doce e inocente em meio à vida culpável e selvagem que o cercava, e esse menino era branco como a neve. Ah! Isso não era vantagem, pois essa brancura era aquela da lepra. Ela, porém, não o amava menos por isso; abraçava-o, sim, ainda mais ternamente, como o fazem as mães; por causa de seu infortúnio, esse menino tornara-se para ela, mais que nunca, a sua vida e sua luz. Maria e Jesus, a mulher do ladrão e o menino leproso juntos na caverna, à caída da noite! Que lugar conveniente para o Redentor! Que gracioso símbolo da Igreja que Ele fundaria! Maria pede água para lavar Nosso Senhor, a mulher vai buscá-la e Jesus é lavado. A bondade, em abrindo o coração, abre também os olhos do espírito. A mulher percebe qualquer coisa de diferente nestes seus hóspedes. Talvez ela visse alguma luz em torno à cabeça de Jesus, ou o Espírito Santo falasse pela voz de Maria, ou então que a simples presença de tanta santidade a afetasse estranhamente, não o sabemos; mas, cheia de amor e duma espécie de fé, o seu coração de mãe intui [devina/adivinha]; a terra conhece bem essa faculdade de intuição [deviner/ adivinhar] que possui o coração materno. Ela pede a água de que Maria se havia servido para lavar a Jesus, e lava, com ela, seu pequeno leproso Dimas, do qual a carne torna-se, então, toda tão rosada e tão bela quanto uma mãe poderia desejar. Longos anos [depois disso] se passaram; o menino teve de deixar os braços de sua mãe; realizou suas ações de audácia infantil sobre as areias do deserto; enfim, Dimas teve idade suficiente para se juntar à corja e, embora pareça ter conservado em si, até o fim, algo do coração de sua mãe, ele leva, no entanto, uma vida de violência e de crime e, afinal, Jesus o vê chegar prisioneiro dentro das muralhas de Jerusalém. Pregado na cruz, consumido pela febre, em meio a uma dolorosa agonia, ele ainda foi assaz perverso para dizer palavras de desprezo ao Inocente que sofria ao seu lado. Jesus permanecia silencioso, e Dimas, observando-O, vê nEle alguma coisa de celeste, alguma coisa de estranha num criminoso, talvez a mesma que sua mãe havia visto na caverna, trinta e três anos antes. Este era o Menino no banho do qual a sua lepra fôra curada! Pobre Dimas! A lepra que tens agora é mais perigosa; ela precisa de Sangue em vez de água! A operação da fé foi rápida nele. Pode ser que seu coração fosse semelhante ao de sua mãe, e a fé, assim, lhe fosse de alguma forma como que natural; ele compreende a cena da crucificação, as zombarias, os ultrajes, as blasfêmias, a prece do Cristo por aqueles que O perseguiam, e o olhar misericordioso lançado sobre ele mesmo por Jesus agonizante. É o bastante; então, sobre o madeiro mesmo, ele faz a sua profissão de fé; pois as preces da Santa Mãe se elevavam dali abaixo, e o pecador é envolvido numa verdadeira nuvem de misericórdia. Senhor! Lembrai-Vos de mim quando entrares em Vosso reino! Vede como ele, prontamente, ultrapassa mesmo alguns dos Apóstolos. Ele via Jesus cravado na cruz para morrer, e sabia que não era um reino terrestre o que se podia esperar dEle. Ainda hoje estarás comigo no paraíso! O paraíso pela hospitalidade na caverna, infortunado jovem ladrão! E Jesus morre, e a lança abre Seu Coração, e o Sangue que escapa cai como uma doce onda sobre os membros do ladrão agonizante, e, embora sua mãe da caverna não esteja lá, sua nova Mãe estava ali, ao pé da Cruz, e Ela envia este Seu primeiro filho para o paraíso, para ser o primeiro desta família inumerável de filhos que deverão entrar na glória através do Preciosíssimo Sangue.

Vários séculos antes, o povo judeu, após ser liberto da servidão do Egito, havia vagado por esses mesmos lugares. As areias pardas, as rochas avermelhadas do deserto, suas planícies cheias de pedras, suas raras regiões de verdura, suas regiões vizinhas ao mar, seus poços famosos entre os pastores, tinham sido o teatro de prodígios tais quais o mundo jamais tinha visto. Jamais o Criador havia intervindo tão visivelmente, nem por tanto tempo seguido, em favor de Suas criaturas. O campo todo inteiro, com sua nuvem e sua coluna de fogo, sua marcha em forma de cruz, com Efraim, Benjamim e Manassés portando os ossos de José, sua igreja móvel, embelezada com os despojos do Egito, era tudo um milagre permanente. Sobre o Monte Sinai, Deus havia aberto as comportas do alto, derramando sobre todo o mundo, através do povo hebreu errante, a luz gloriosa da fé fundamental na unidade de Deus, doutrina que, da austera grandeza do deserto, chegava ao mundo da maneira mais conveniente. É lá que são dados os Mandamentos da moral celeste, sob os quais vivemos ainda hoje, e que serão, até o Julgamento, a regra de vida para os homens, a regra da qual o Juiz se servirá para fixar o destino de cada um. Em nossa infância cristã, nós errávamos com os judeus nesse deserto silencioso, enquanto aprendíamos a fé em Deus. Na peregrinação deles, vemos uma imagem da nossa. Os nomes dos poços e lugares de repouso deles, ressoam aos nossos ouvidos como esses velhos refrões aprendidos em nossa infância, e que não podemos mais esquecer. Então, [na fuga da Sagrada Família para o Egito,] o próprio Criador, na realidade mesma de Sua infância humana, errava através desse deserto histórico e, revertendo o Êxodo, ia fazer do Egito a Sua habitação, uma vez deixada a terra deliciosa dos antigos cananeus, conquistada pelo povo por Ele mesmo guiado do meio duma coluna de fogo, pelo povo que Ele havia protegido nas batalhas, para o qual Ele havia ganhado as vitórias, para o qual Ele havia estabelecido as tribos, cada uma na porção do território apropriada a seu caráter. Maria estava lá com Seu Magnificat, no lugar de Miriam e seu alegre cântico à beira do mar; e havia também outro José, mais grande e mais amável que o santo patriarca de outrora, pois este havia salvado a vida dos homens ao administrar o pão do Egito, ao passo que o novo José devia guardar, no mesmo Egito, o pão vivo descido dos céus. Os dois Josés tinham atravessado esse mesmo deserto.

Como os pensamentos de Jesus e de Maria deviam ser admiráveis, ao passarem por esses cenários das misericórdias passadas de Deus, dos julgamentos e grandezas de outrora! Nós podemos, em nossas meditações, segui-los com respeito, mas seria pouco respeitoso acreditar que nossas conjecturas os alcançam. Foi uma viagem cheia de dificuldades e fadigas. Por fim, atingiram as margens do Mar Vermelho, e viram as águas que os separavam do Egito. Quase supomos que eles consagraram com sua presença o lugar exato do Êxodo. Dali, é mais provável que seguiram a costa, passaram o golfo de Suez, e se dirigiram para Heliópolis, que deveria ser, por alguns anos, verdadeiramente, a Cidade do Sol. A tradição fala de árvores que se curvavam, inclinando seus caules flexíveis e abaixando suas copas verdes e seus longos galhos, para abrigar a Mãe e o Menino. Fala também de imagens bizarras dos deuses pagãos que tombavam, como Dagon, de seus pedestais, quando o verdadeiro Deus passava. Lá, sobre as margens do rio onde Moisés fizera seus milagres, em meio a idólatras ignorantes, no desconforto e na pobreza, habitariam nossos estrangeiros hebreus, durante sete, cinco ou pelo menos dois anos e meio, segundo a opinião de diferentes autores. José continuava a exercer seu ofício de carpinteiro, Maria contribuía sem dúvida para o sustento da modesta família [Marie contribuait sans doute au soutien de la modeste famille], enquanto que Jesus fazia Suas graças infantis, mil vezes mais delicado e mais belo em Sua formosura humana que o mais fresco lótus jamais embalado sobre o seio do Nilo.

Durante esses anos, a cidade egípcia foi o centro do mundo. O jardim do Éden não era nada em comparação a ela, na beleza e nas riquezas. Os Anjos se reuniam nela em multidão, para admirar e para adorar. Para lá, embora os homens o ignorassem, subiam as preces do mundo inteiro, seus suspiros, suas secretas aspirações. Lá chegavam também as vozes da pena e da dor de Heliópolis mesma; elas encontravam o ouvido, o ouvido humano de um Deus, ali na rua vizinha ou na mesma casa. Atos sobrenaturais de santidade consumada e dum preço infinito, emanavam noite e dia da alma humana de Jesus, com mais abundância que a maior cheia do Nilo, e mereciam graças que teriam sido capazes de fertilizar todo o deserto dum mundo decaído. O Coração de Maria também estava cheio de beleza durante esses anos. Sua santidade crescia continuamente; Sua união com Deus, mais estreita já do que qualquer termo da teologia mística poderia exprimir, tornava-se mais e mais estreita, de sorte que Maria parecia quase identificada com Seu Filho, apesar de toda a infinidade existente sempre entre eles, como entre o Criador e a criatura. E as dores de Maria cresciam também. Persistia sempre, em Seu Coração, a aflição da primeira dor, aflição que devia durar toda a vida, e à qual se acrescentavam as novas penas que esta segunda dor, a fuga para o Egito, necessariamente traria consigo. O sombrio Egito conhecia, acaso, a grande luz que brilhava às margens de seu famoso rio? Seus sacerdotes, apesar disso, ofereciam seus sacrifícios ao sol, enquanto que Jesus estava tão perto que sentia o odor dos sacrifícios. Que pensaria Ele dessas adorações insensatas, Ele, que havia criado o sol, que o havia tirado do nada, que lhe havia dado todas as suas influências fecundas, que o havia estabelecido como um lar para o éter dourado que, inflamando-se, se transformasse em calor e em luz; Ele, que havia feito o centro dessas regiões de vida tão vastas e tão recolhidas, o centro de tão magníficos fenômenos que se estendiam ainda para mais longe, atingindo planetas desconhecidos, e que havia criado todas essas maravilhas com incompreensível sabedoria? Não surgiriam suspeitas nos espíritos mais refletidos da multidão, quando se reuniam nas cerimônias ignóbeis desse culto aviltante de animais, quando o Criador havia revestido uma natureza criada e deixava-se ver e ouvir sobre a terra? Algum raio de verdade, alguma vertigem salutar deve, certamente, ter atingido várias almas, como um doce contágio da presença de Jesus e de Maria. Pois estariam estes tão próximos sem que nenhuma benção se seguisse? Mas todos esses mistérios da estadia no Egito foram divinamente envolvidos por uma vida oculta.


Mosaico 
Passaram-se, assim, os anos que tinham sido determinados; e quando Herodes morreu, um Anjo do Senhor apareceu a José durante o sono, dizendo: “Levanta-te, toma o Menino e Sua Mãe, e volta para a terra de Israel. Pois estão mortos aqueles que buscavam a vida do Menino.” José se levanta com a mesma prontidão de outrora. Ele não admitia atrasos. Ninguém, em Heliópolis, se lembrava de os reter; eles eram muito obscuros; estavam livres, pois, para ir e vir como quisessem. As estrelas da noite cintilavam seus raios tremulantes como traços livres de luz sobre o seio do Nilo, quando eles começaram seu curso errante para a pátria. Reviram as águas do Mar Vermelho. Mais uma vez o vento da noite desértica sopra sobre eles, quando se estendiam sobre a areia para repousar. Mais uma vez os seus olhos se encantam a vista das colinas e dos muros de vinhedos de Judá, a terra amada que Deus havia escolhido. Entretanto, a cruz não devia afastar-se num instante. O templo de Jerusalém os atraia naturalmente a si. Mas José conhecia o preço do tesouro que estava encarregado de guardar e, quando soube que Arquelau reinava no lugar de seu pai, desistiu de residir aí. Em seu temor, ele busca, sem dúvida, a luz através da prece; uma advertência sobrenatural lhe vem durante o sono, e recebe a ordem de se retirar para a Galiléia. Assim, a longa viagem se prolonga até que, enfim, sua antiga habitação, Nazaré, os recebe aos três.

Tal foi o mistério da segunda dor. Ela perpassa um lapso de tempo incerto, pois não devemos restringir essa dor à fuga apenas. Epifânio pensa que Nosso Senhor tinha dois anos quando fugiu, e que ficou durante outros dois anos no Egito. Nicéforo fixa a estadia no Egito em três anos. Barradius fala em cinco ou seis anos, e Amônio de Alexandria em sete. Maldonado diz que não foi mais de sete anos, nem menos de quatro. Barônio conclui, após várias considerações, que Nosso Senhor fugiu no primeiro ano de Sua vida e retornou no nono ano, após haver passado sete anos completos no Egito. Suárez é da mesma opinião, embora ele diga que nada de positivo possa ser decidido nessa questão. O número de sete anos é aquele que é mais geralmente admitido pelos fiéis. Essa dor nos apresenta três objetos diferentes de devoção: a fuga, com todos os seus temores, dificuldades e fadigas; a estadia, com seu sentimento de exílio e sua convivência com os idólatras; e o retorno, com as particularidades resultantes de que Jesus já havia crescido em idade e tamanho. Uma piedosa contemplação pode, segundo as disposições do espírito, passar livremente de uma a outra dessas três divisões da segunda dor.

Podemos, portanto, passar agora da parte narrativa do mistério à consideração dos aspectos particulares dessa dor.

A primeira coisa a assinalar é que, tal como Simeão foi o instrumento da primeira dor, José o foi da segunda. Esta última circunstância era bem própria a afetar o Coração amante de Maria. Há mesmo uma aparência de crueldade em nos enviarem aflições por intermédio daqueles que amamos. Shakespeare dizia que o primeiro portador duma notícia ruim assume o peso duma missão desagradável. Assim, era uma dor também para José infringir uma nova ferida à Maria, tanto pior para Ela por ser recebida dele. O mundo tem sido sempre honrado por exemplos heróicos de afeição conjugal. Vários desses exemplos são-nos transmitidos pela história, como fenômenos demasiado preciosos no aprendizado e na consolação do gênero humano para serem esquecidos. Nas profundezas mais íntimas da vida privada, a afeição conjugal é um fogo puro que arde sempre. Mas jamais o casamento envolveu nas bênçãos divinas um amor conjugal tão puro, tão verdadeiro, tão vivo quanto aquele que existia entre José e Maria. Jamais houve tanta união, tanta identidade, uma vida tão mais no outro do que em si mesmo, quanto entre eles. Era a perfeição mesma do amor natural. Após o amor natural de Maria para com Jesus, a terra jamais viu outro amor tal qual o que havia entre José e Maria, a não ser aquele do mesmo José para com o santo Infante. Mas, além do amor natural, havia, no Coração de Maria, um amor sobrenatural, e este era não apenas mais profundo, como também mais terno que o amor natural. Ele punha em jogo as capacidades profundas do coração humano, bem mais além do que o amor natural poderia fazê-lo. Para Maria, José era a sombra do Pai Eterno, o representante de Seu Esposo celeste, o Espírito Santo. Assim, Ela via nele, com uma claridade imponente e com a ternura mais respeitosa, duas Pessoas da Santíssima Trindade. Quando Ela via Jesus nos braços de José, isso era para Ela um mistério demasiado profundo para ser expresso em palavras: só as lágrimas o podiam exprimir. E depois, a santidade eminente de José estava continuamente diante dos olhos de Maria; Ela compreendia que as operações da graça na alma de José eram maiores que em qualquer outro santo, pois eram as graças daquele que devia ser o chefe da família de Deus. Assim, apesar de que a segunda dor proporcionava à Maria ocasião de obedecer àquele que Lhe fôra dado como chefe, não deixava de ser para Ela uma sutil agravação dessa dor o fato de chegar-Lhe por meio de José.

Ela encontrava ainda uma grande agravação dessa dor no fato de que esta parecia vir menos diretamente de Deus e mais da maldade dos homens, ao contrário da primeira dor. Nesta foi uma profecia, uma revelação que Deus Lhe fazia do futuro, e que Lhe dava uma visão clara que a devia acompanhar sem cessar; agora, porém, era preciso entrar em contato com a violência da qual Jesus devia ser a Vítima, e o Calvário, ao tocar Maria pela primeira vez, A fere até o Coração. Em nossa esfera limitada de sofrimentos, certamente devemos todos ter provado mais sofrimento ao receber uma cruz quando ela não vem diretamente de Deus, mas pelas mãos dos nossos semelhantes. E não somente é algo mais penoso, como parece ser precisamente o próprio ponto penoso. Imaginamos, sem dúvida, ao concebermos tal ilusão, que portaríamos nossa cruz com paciência e alegria se ela nos viesse inteiramente de Deus. Mas há qualquer coisa que desdoura a cruz que passa por mãos humanas. Ela é, assim, uma prova não apenas para nossa paciência, como também para nossa humildade. Nada há de humilhante em sentir o peso da onipotência de Deus se impondo por si mesma, com o concurso apenas das causas inanimadas e secundárias. Nada há de humilhante na morte dum filho querido, na perda duma irmã amada, na dispersão duma família pela morte, na desolação de nossa casa por algum terrível acidente. A humildade não é o efeito imediato, direto, que as catástrofes produzem na alma. Mas quando Deus nos pune através da injustiça dos homens, através dos baixos insultos de outrem, através das suspeitas indignas de amigos desconfiados, ou por um amor correspondido com ingratidão, então as naturezas mais corajosas recuam e afastam-se da cruz, se podem. É verdade que a razão lhes diz que é Deus, realmente, a fonte da aflição, mesmo quando ela vem através de outrem. Mas, que nada, se não for por uma humildade extraordinária, não se fará desse preceito da razão uma convicção prática. Mesmo nas causas inanimadas, na verdade, já experimentamos repugnância em nos submeter à aflição. Uma mãe sabe da morte do filho, e sua alma se enche de amargura, embora também de resignação, se ela é cristã. Mas novas notícias mais completas sobrevêm. Se a morte foi resultado de um simples acidente, e uma leve mudança nas circunstâncias que a acompanharam a teria impedido; se ela não chegasse no tempo e lugar mesmo aonde chegou, não teria podido ocorrer. Afasteis alguma negligência inocente, ou imagineis a menor previdência ordinária, e a mãe poderia ainda, a esta hora, apertar entre seus braços o filho na flor da idade. Sua morte foi tão excepcional que é extremamente raro que as circunstâncias se combinem como o fizeram então. Estas pareciam ser de propósito, como uma fatalidade, reunidas para fazê-lo perecer. Ah! Esse véu não é assaz tênue para que um olho cristão consiga, através dele, ver o Pai celeste? Não é esse um bálsamo que torna a morte menos cruel, no pensamento de que ela foi ocasionada com uma intenção de bondade tão manifesta? Observai essa mãe cristã e vede. Sua resignação quase desapareceu. A austera fé é tudo o que lhe resta para sustentá-la em sua dor. As lágrimas lhe escapam de novo. Rompe o silêncio e deixa ouvir o seu pranto. Ela torce as mãos, abandona suas ocupações e permanece chorando à beira do caminho. Reconta sempre sua história, essa história que é grande em seu espírito. Cada vez que a reconta acrescenta-lhe uma pequena exageração, de modo que a morte do filho é-lhe sempre um mistério penoso, uma injustiça inexplicável, um golpe insuportável, manifestamente intolerável. É assim que a ação das criaturas torna as fontes de nossas aflições mais amargas, três vezes mais amargas.

Mas há ainda alguma coisa de mais grande na impaciência com que sofremos a intervenção [intencional] das criaturas em nossos infortúnios. É a confiança, profundamente enraizada em nossas almas, que temos na justiça de Deus, e que é o fundamento de tudo o que há de viril em nossa vida. Ela faz com que nossa natureza pareça capaz de suportar os golpes de Deus, e põe mesmo qualquer coisa de consolador no sentimento de sua presença perto de nós, que revela o ato de punição. Todo o nosso ser crê na infalibilidade do amor de Deus e assim permanece tranqüilo, mesmo quando está descontente. Nenhuma idéia de crueldade está suspensa, embora saibamos que foi Ele que criou o inferno. Mas toda face criada tem alguma coisa de cruel. Em cada olhar há algo que nos diz para não nos fiarmos inteiramente; pode ser que possamos nos fiar muito, mas não no mais alto grau. A idéia de que estamos à mercê dessa crueldade nos faz recuar diante da dor que parece vir diretamente das mãos das criaturas. Nosso sentimento de segurança é destruído. Não sabemos aonde as coisas irão parar. Coisa estranha! Parece que conhecemos tudo quando somos apertados pelo Deus inescrutável, mas, se as criaturas estendem sobre nós suas mãos, então objetos assustadores, mundos de injustiça ainda desconhecidos, abismos subterrâneos, as tristes possibilidades de injustiça, tudo se avoluma e se multiplica como sombras. Entre os sentimentos que provamos em meio aos infortúnios que nos vêm diretamente de Deus e aqueles que nos vêm através dos homens, há a mesma diferença que a existente entre os sentimentos dum criminoso impopular ouvindo os gritos selvagens da multidão que exige o seu sangue, atrás dos espessos muros de sua prisão, que ele sabe ser impenetrável, e o terror que ele experimentaria ao ser exposto na rua aos ultrajes do povo, cujos olhares cruéis estão fixados sobre ele, enquanto que a fraca guarda que o cerca deve ceder ao primeiro ataque. No primeiro caso, ele está face à calma refletida da justiça; no segundo, à fúria da barbárie descontrolada dos selvagens. Davi mesmo, do qual o coração era segundo o coração de Deus, sentia profundamente esse temor. Após ele haver feito o recenseamento do povo, e Deus lhe haver deixado a escolha de seu castigo, ele responde: “Estou em grande perplexidade, mas é melhor que eu caia nas mãos do Senhor, pois Suas misericórdias são numerosas, do que nas mãos dos homens”. E assim escolheu a peste. Quem não sente, com efeito, que o Deus imutável é mais fácil de ser dobrar [fléchir] que os corações de carne daqueles que são pecadores como nós? Ele muda Seus desígnios mais facilmente que o homem. [Il change ses desseins plus facilement que l’homme.] Quando Deus se põe entre nós e o mundo malvado, nós nos sentimos em segurança, e gememos, mas com calma, repousando nossa cabeça aos Seus pés, mesmo quando somos prostrados em terra pela desolação. Mas, quando o mundo implacável cai sobre nós, nos vemos então num estado mais digno de pena que a ovelha tosquiada, e o vento do norte desola livremente a pele despojada. Foi isso o que Maria experimentou. Todos as cercas caiam ao redor dEla. O muro que havia sido erguido entre a dureza real do mundo e o Coração amargurado de Maria, desmorona. As agitações crescentes de Seu martírio afligem-nA tanto mais, embora a torrente de Sua tranqüilidade interior continue a correr, sem alterar o seu curso.

Há muito a dizer sobre a maneira pela qual a segunda dor veio à Maria. Mas a parte nela coube a São José também foi extensa; ela perpassa todos os anos em que essa dor durou. José estava velho, e sua idade necessitava de repouso. Ele permanecia numa atmosfera de calma, o que parecia ser a melhor correspondência às graças com que fôra prevenido, e que lhe permitia progredir livremente, como a magnífica folhagem que, segundo os viajantes, cresce nas ilhas onde os ventos não reinam quase nunca. Sua vida era uma vida de tranqüilidade, tanto exterior quanto interior. A pressa, a precipitação e a falta de regularidade, lhe eram estranhas. Ele unia a modéstia virginal ao amor mais ardente. Era simples como Jacó, meditativo como Isaac, e levava uma vida de fé profunda, bem além da superfície das tempestades da alma, tal como Abraão. Ele parecia, pelo menos o pensamento nos vem naturalmente, ele parecia-se com Adão, cheio de doçura e de santidade, desfrutando, antes da queda, da pacífica familiaridade de Deus. Era uma flor que devia crescer em algum lugar situado fora da terra, ou ser retirada e transportada ao antigo Éden da inocência do homem. Oh! Como o Coração de Maria transbordava de amor e de admiração para com esse troféu das graças mais doces e suaves de Deus! Mas Ela vinha trazer-lhe a tempestade. Ela o jogaria em meio às confusões da vida, em meio a uma confusão tão grosseira, rude, precipitada, brutal, e veria, assim, seu espírito tão doce ser machucado, ferido, esgotado pela luta. Como convinha mal à sua idade a sede e o calor, o vento e a umidade [humidité] do deserto! De que espanto seus olhos não seriam tomados à vista das faces selvagens e ferozes dos árabes e da sombria expressão dos egípcios! E que línguas estranhas as deles! Maria sentia em Seu Coração cada uma dessas coisas, assim como muitas outras talvez até piores, a respeito das quais nada sabemos. Somente a vista de Jesus, somente o pensamento do perigo que o Menino corria, faziam-nA capaz de sofrê-lo. E depois, como uma flor transplantada a um novo clima, José resplandecia uma tal luz, de tão doce perfume, tanto de novas flores quanto de diferentes frutos. Sua alma era mais bela que nunca, e, com o clarão de sua beleza, crescia também o amor de Maria, e com esse amor, cada provação, cada ferida, cada incômodo de Seu amável velhinho, tornava-se-Lhe uma aflição mais viva e uma mágoa mais profunda que antes.

Mas Maria estava verdadeiramente envolvida em um círculo de dor. De José os Seus olhares passavam para Jesus. Sua união com Ele tornava-se um hábito sobrenatural cheio de preciosos resultados para Sua alma. Essa união tinha como conseqüência efeitos rápidos de santidade, ornando Maria de perfeições extraordinárias, operando constantemente o que a rude linguagem da teologia mística chama de transformação deífica [grifo do original]. Não podemos nos formar uma idéia justa do que isso era. Mas há momentos em que conhecemos em nossa alma um clarão passageiro do que a presença habitual do Santíssimo Sacramento faz por nós. Nós percebemos, então, que Ele não somente teve alguma ação sobre cada virtude e cada graça que Deus tenha nos dado, como também Ele nos muda, Ele realiza um trabalho em nossa natureza, nos impregna de sentimentos e instintos que não são deste mundo, acorda ou cria em nós faculdades às quais não podemos dar um nome, apenas podendo definir-lhes as funções. A maneira como um padre diz o Ofício ou a estranha rapidez de sua Missa são um enigma para aqueles que estão fora da Igreja. Eles são totalmente incapazes de compreender quanto é real a visão de Deus que o católico encontra no Santíssimo Sacramento; eles não podem compreender o quanto toda afetação de lentidão e de solenidade, toda pretensão ao efeito [sensível], numa palavra, toda preocupação com os outros ou consigo mesmo [nos modos litúrgicos], seria um puro esquecimento de Deus e do santo temor que toda criatura deve ter para com a Sua augusta presença sobre nossos altares. [La manière dont un prêtre dit l’office ou l’étrange rapidité de sa messe, sont une énigme pour ceux qui restent hors de l’Église. Ils sont tout à fait incapables de comprendre combien il y a de realité dans la vue de Dieu que le catholique trouve dans le Saint-Sacrement; ils ne peuvent comprendre combien de sa part toute affectation de lenteur et de solennité, toute prétention à l’effet, en une mot, toute préoccupation des autres ou de soi-même, serait un pur oubli de Dieu et du saint tremblement qui est dû par toute créature à son auguste présence sur nos autels.] Essa experiência pode nos dar uma vaga idéia do que a presença de Jesus produzia em Maria. Quanto Ela se tornara sensível aos sofrimentos de Jesus! A transformação que a presença dEle operava nEla acrescentava-Lhe, cada dia, uma nova susceptibilidade à Sua dor. Ela passava a perceber mesmo as pequenas coisas por Ele sofridas, talvez antes não percebidas. Pois, se Seu amor crescia, Suas luzes deviam crescer também, uma vez que, nas coisas divinas, a luz e o amor se correspondem inseparavelmente. Assim como mesmo em nossa medida rasteira, nossa ternura e percepção referente à majestade ofendida de Deus crescem junto com nosso progresso na santidade e a delicadeza mais refinada de consciência, assim também as faculdades que Maria possuía de padecer em Seus sentimentos para com Jesus, elevava-se cada dia a um degrau estonteante.

Mas isso não era tudo. Tanto quanto em Maria, havia também uma transformação em Jesus, e esta era-Lhe uma fonte a alimentar o rio de Suas dores. Jesus não era uma visão extática, mais ou menos como Sua presença agora no Santíssimo Sacramento, mas alguém que vivia, que agia, que crescia, que desenvolvia Seus atrativos, que se manifestava, e que, em Sua imutabilidade, mudava tanto que as vastas inteligências dos Anjos não se fatigavam jamais em Sua adoração para com Ele. Assim, o santo Infante espalhava constantemente uma luz nova, e desenvolvia sem cessar uma beleza nova. Era um tesouro inexprimível de encantos sobrenaturais. Parecia sempre que Maria já O havia conhecido totalmente e, todavia, Ela só começara a conhecê-lO. Em Seu amor para com Ele dava-se como que uma mistura de hábito e surpresa, em nada semelhante a alguma afeição terrestre; pois ainda que Ela pressentisse como por um instinto profético como Ele agiria em tal ou tal circunstância, Ela estava ao mesmo tempo certa de que, quando a ação se realizasse, Ele lhe acrescentaria algum traço inédito, alguma surpresa divina. É assim que, em Maria, as delícias do espanto se mesclavam sempre às do hábito. Suas faculdades de observação e a plenitude de Sua inteligência deviam também ser vivificadas pela rapidez e expansão de Seu amor. Nada Lhe escapava. Para Ela, nada carecia de significado. Se Ela via abismos cuja profundidade Lhe era impossível medir, ao menos se tornava Ela cada vez mais hábil em olhar-lhes dentro. Jesus era uma revelação, e, por conseguinte, Ele fazia nascer o conhecimento, tanto quanto a fé. Mesmo para nós, aprender sobre Nosso Senhor e crer nEle são duas coisas diferentes. Que lição a que nos ensina Jesus em si mesmo! É uma lição dividida em um milhão de ciências, uma lição para o estudo da qual a eternidade é como universidade onde os melhores dentre nós nunca acabarão o curso nem receberão jamais seus diplomas! Essa lição, Maria a aprendeu melhor do que o poderiam fazer os Anjos do céu. O valor da graça que Nosso Senhor revelava era infinito, o preço de Seus atos de cada dia era infinito, a expiação resultante de cada um de Seus menores sofrimentos era infinita, de tal modo que, em todos esses abismos infinitos da segunda dor, Maria encontrava três longas etapas, eu diria quase três eternidades, para conhecer a beleza de Jesus e para elevar Seu próprio amor ao nível de Sua ciência. Primeiro o deserto [na fuga], em seguida o Egito, depois novamente o deserto [no retorno]. E todas essas luzes acumuladas, essa sensibilidade, essa beleza, essas graças, esses atrativos, todas essas qualidades tão próprias a estimular o amor, não serviam senão para tornar mais afiada a espada de Simeão. O resultado de cada uma delas, o resultado de todas, o produto da combinação delas, era realmente uma imensidão de dor.

Há duas maneiras de combater a mágoa. Uma se encontra no retiro de nossos próprios lares, no secreto de nossos corações sofredores, com a presença de Deus em torno de nós, sem que nada venha nos distrair. Mas, mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, isso não é uma tarefa fácil. O círculo dos deveres domésticos é pesado e cheio de tédio; e a aflição não se tornará mais suportável por levar-nos a escolher esses espinhos; parecerá sempre que a cruz não nos é conveniente no caso ou onde nos encontramos, e sempre haverá alguma agravação particular que pareça justificar ao menos certo grau de impaciência. Mas o combate é muito mais rude quando nos é preciso reencontrar o inimigo, afrontar a presença e a vista dos homens, em meio a um público inflexível, receber nossa aflição das mãos dos nossos semelhantes e sentir o peso da malícia deles. Em semelhante caso, não é que nossas ocupações exteriores sejam uma distração desagradável para nossas mágoas; o que ocorre é que, simplesmente, nossa dor nos faz sentir que teríamos o direito de nos dispensarmos dos aborrecimentos dessas ocupações, e então o próprio trabalho exterior se torna aflição. Queremos evitar a pena. Tiramos do alcance de nossa tarefa tudo que possa ir ao se encontro. E temos de fazer o nosso melhor possível para que o sofrimento não nos apanhe em desvantagem, quando estamos distraídos em meio a uma multiplicidade de coisas por fazer e tendo de olhar para vários lados duma só vez. E isso não depende de nossa escolha. É uma simples necessidade. Dos dois combates que podemos empreender contra a dor, este é o mais penoso de suportar e aquele em que a vitória é menos provável. Em passando da primeira para a segunda dor, a aflição da Santa Virgem passa dum combate mais fácil para outro mais difícil, isso se a palavra combate pode combinar-se com uma tranqüilidade toda celestial. A nova aflição demandava obediência exterior, e não simples assentimento duma generosidade interior. Ela antes sofria no santuário de Sua alma; agora as fadigas pessoais, as privações exteriores e o rude trabalho entram em Sua dor. Aqueles que saibam apreciar a timidez [timidité] duma santidade extrema terão alguma idéia do que essa mudança por si mesma infligia à natureza delicada de nossa santa Mãe, desconsiderando-se, ainda, as outras circunstâncias agravantes.

Não é raro que as pessoas que começam a levar uma vida santa experimentem, embora a contragosto, uma espécie de desprezo para com as práticas exteriores da religião. Elas podem ser suficientemente instruídas para não cair em alguma opinião errônea a esse respeito, mas, apesar de tudo, o sentimento de que falamos persiste em manifestar-se nelas em várias pequenas circunstâncias. Os hábitos da piedade interior são relativamente novos para elas e, como elas têm uma percepção recente do pouco mérito da devoção exterior separada da interior, elas exageram então a importância das coisas interiores e as põem sob uma luz muito exclusiva. Há alguma coisa deliciosa, é a única expressão conveniente, em nossas primeiras experiências de união íntima com Nosso Senhor, algo que a fé não encontrava nas observâncias comuns e nas cerimônias do culto exterior da Igreja. Mas, quando a alma cresce em santidade, produz-se uma reação; a oração vocal retoma a importância que lhe é própria. Se vê que os sacramentos também são coisas interiores. O calendário da Igreja deixa, então, uma profunda impressão sobre nossa devoção. Os terços, os escapulários, as indulgências e as confrarias realizam um trabalho educativo [un travail d’apprentissage] em nossas almas, um trabalho interior e profundo. No final, para uma santidade eminente, as coisas exteriores são simplesmente vasos cheios até à borda, nos quais Jesus muda a água em vinho, e que se podem verter continuamente sobre a alma. Para um santo, uma simples rubrica possui em si tanta vida que o lança em êxtase ou o transforma, num instante, num santo maior ainda. Poderíamos citar, por exemplo, a conduta de Santo André Avelino na Semana Santa. Para um principiante inexperiente, é difícil compreender a devoção que Santa Teresa tinha pela água-benta. Pode-se compreender a sua doutrina da oração, da quietude, mais facilmente do que o seu recurso contínuo à água-benta e as grandes coisas por ela ditas dobre esta. De tudo isso resulta, para a segunda dor da Santa Virgem, uma particularidade que ninguém que não seja santo pode penetrar, e mesmo um santo não a poderia penetrar completamente, pois é preciso lembrar-nos que se tratava de Maria nesse caso. Queremos falar da privação das vantagens espirituais em meio ao deserto e no Egito. Lá não havia o Templo; quando muito, uma sinagoga. Lá não se ofereciam sacrifícios, a não ser aqueles que enchiam de horror e abominação a alma de Maria. Lá já havia em torno a Ela a atmosfera inefável da verdadeira religião; mas, pelo contrário, as trevas repelentes e a reunião desanimadora da mais abjeta incredulidade e do culto degradante dos mais vis animais. Para Maria, isso era uma desolação terrível. A eminência de Sua santidade não A motivava a se dispensar dos socorros ordinários da graça, mas antes, a se lhes apegar com uma operação mais inteligente. A santidade não Lhe ensinava a pôr-se acima das observâncias exteriores, nem a fazer delas o seu sustento, mas sim a lhes conferir todo o peso de Suas virtudes. Ela se sentia tanto menos capaz de se dispensar das coisas pequenas, quanto mais ricamente estava repleta das grandes. Ela estava prevenida mais claramente e mais profundamente que qualquer outra pessoa a respeito dessa grande visão dos santos, a de que, nas coisas espirituais, uma graça jamais substitui outra, e jamais cumpre a obra de outra. Uma piedade menos esclarecida não vê diferença entre suceder e substituir [grifo do original], e perde assim o respeito pelas coisas das quais não percebe mais o lado divino. Tal como a contemplação mais elevada encontra o seu caminho através dos tesouros de simples meditação que há acumulado, para, afinal, voltar quase à simplicidade indistinta da primeira oração de criança, assim nada há de mais estonteante do que ver como, em sua sublimidade, os santos voltam sempre à sábia pequenez e às trivialidades infantis de seus primeiros inícios. Os embaraços da espiritualidade são simplesmente os sintomas da imperfeição. [Les embarras de la spiritualité sont seulement les symptômes de l’imperfection.] Atravessamos o rio para chegar a Canaã. A profundidade da água é pequena; ela se torna mais profunda à medida que avançamos; mas depois se torna novamente pequena ao aproximar-nos do outro lado do rio, a sua margem celeste. Era, pois, certamente, um vivo sofrimento para Maria o ser privada das observâncias exteriores da religião. Seu espírito recordava com saudade as dependências do Templo, com suas multidões de adoradores; as festas antigas, que traziam cada uma, a seu turno, o espetáculo emocionante e delicioso do cerimonial da lei; a voz das antigas Escrituras hebraicas, que se fazia ouvir na cátedra do leitor da sinagoga. A presença de Jesus, em vez de substituir essas coisas para Maria, fazia antes com que Ela desejasse ainda mais ardentemente essas cerimônias que Ele mesmo, muitos anos antes de ser o Seu Menino, havia estabelecido e prescrito sobre o Monte Sinai. Não podemos apreciar justamente essa mágoa de Maria, mas devemos recordá-la. Para apreciá-la seria preciso ter a singular sensibilidade de Maria, e ter também, como Ela, uma viva necessidade das coisas de Deus, e uma presença visível de Jesus para mudar essa necessidade em fome devorante.

Um dia um viajante que vivera longo tempo entre as cenas e os brilhos da vida asiática, e nas orelhas do qual a lamúria musical da voz do muezzin, partindo da galeria do minaret e atravessando a cidade durante a noite ou ao brilho do dia, quase apagara nele a lembrança dos sinos cristãos, esse viajante, como dizíamos, se anima a seguir o curso do Danúbio, partindo do mar Negro, e a não parar até atingir as fronteiras da Transilvânia. Ele desembarca num vilarejo distante, ouve os sinos, dos quais o carrilhão estranhamente familiar domina o canto rústico; depois, vê um clérigo com uma cruz brilhante ao sol; depois, algumas bandeiras grosseiras, jovens vestidas de branco portando círios, um grupo de meninos com aspecto de cristãos, trazendo flores brancas nas mãos, e, enfim, um padre coberto duma pobre capa, marchando sob um solidéu mais pobre ainda, levando consigo Jesus, para abençoar as ruas do vilarejo na festa de Corpus Christi. A esse espetáculo, o coração do viajante se enche duma luz, duma emoção, duma agitação, e duma pena viva e doce, que nos dá uma idéia bem afastada da realidade, mas uma idéia, no entanto, do que Maria sofreu no Egito. Tal foi o efeito produzido nesse viajante pela primeira vista das coisas santas às portas da cristandade, quando ele acabava de se subtrair às influências das cenas estranhas da lei maometana. Ele via então o que havia perdido; Maria, no Egito, sentia o que estava perdendo.

Auxiliadora dos Cristãos
Mas não eram apenas Seus sentimentos religiosos que eram machucados pelo culto falso e odioso que A cercava. Ela chorava pelas almas que esse culto fazia se perderem, por essas almas que não conheciam a sabedoria mais perfeita, e das quais a ignorância era, até certo ponto, inocente, mas nas quais esse culto produzia a morte do sentido moral e viciava a consciência, tornando os seus julgamentos falsos e corrompendo-lhe a integridade. Era um sistema de encantamento bárbaro que trazia o povo antigo como por um fio, envolvendo-o em suas iniqüidades, de maneira que não podia escapar. Era uma organização vasta, completa e nacional, como um rio silencioso que envolvia o povo em suas trevas eternas, duma maneira tão irresistível quanto um tronco descendo o Nilo. E, no entanto, que gloriosa inteligência brilhava sobre as negras faces dum grande número deles! Que graças ocultas, que disposições à doçura e à bondade transpareciam nas vozes de muitos! E, durante todo esse tempo, Maria tinha em Seus braços, às margens do rio, Jesus, o Salvador do mundo, o amante mais terno das almas, que teria bebido todo inteiro o rio das almas, se elas tivessem-no deixado! Por que não lhes pregava Ele abertamente, Ele cujo desenvolvimento natural não Lhe fazia adquirir mais conhecimentos do que os que já possuía de outra maneira? Por que não deixava brilhar Sua luz sobre eles? Nessa demora, não há, na aparência, alguma coisa de cruel e de inexplicável, bem como, depois, na demora da Igreja em converter os pagãos? Não eram simplesmente todas essas almas do Egito que pesavam sobre o Coração de Maria como um pesadelo; era também a glória de Deus. Uma só palavra de Jesus podia reparar tudo aquilo, e essa palavra não foi pronunciada. [Une seule parole de Jésus pouvait réparer tout cela, et cette parole ne fut pas prononcée.] Se isso era penoso de se suportar para Maria, não o era, todavia, devido ao insólito da Vontade de Deus. Os quatro mil anos que Jesus tardou a vir já A haviam ensinado a não tentar compreender o mistério das demoras divinas. O que Lhe afligia era o destino dessa terra, que continha tão grande número de almas, essa imensa multidão que o lodo do Nilo alimentava e engordava para um fim tão pouco seguro.

As grandes coisas parecem pequenas perto daquelas que lhes são demasiadamente maiores. É assim nos elementos numerosos que compõem as dores de Maria. Circunstâncias, das quais cada uma renderia um verdadeiro poema trágico, ajuntam-se, duma maneira quase imperceptível, em torno das feridas principais da Santa Virgem, fazendo essas como que desaparecem, como envoltos por nuvens de tempestade. Mas não devemos esquecê-las. Deixemos as circunstâncias se acumularem tal como o fizeram no mistério atual. Há, com efeito, num exílio, sofrimentos que precisamos comentar aqui. Sofrimentos que descarregam sobre o coração toda a sua força; um fardo que se torna mais pesado à medida que cada ano que passa acrescenta seu peso àqueles que o precederam. Não é possível habituar-se a um exílio. Há sempre um fogo na alma, queimando-a sempre, causando feridas sempre renovadas, que não se podem curar. A pobreza é sempre difícil de suportar, mas onde ela é mais penosa, é numa terra estrangeira, na qual não temos direitos, nem mesmo o direito à simpatia. Então a terra nos sustenta, porque, afinal, lhe pisamos e nela andamos, mas isso é tudo o que ela faz por nós; ela nos porta como um camelo carregando sua carga, da qual é mais difícil se livrar do que guardar. É simplesmente porque o chão é mais misericordioso que os homens, que uma terra estrangeira não rejeita com impaciência de seus trigais o estrangeiro e o mendicante. Havia também alguma coisa de afrontoso e de inexprimível na solidão completa de Maria entre as pessoas de Seu próprio sexo. Ela estava bem mais solitária em meio à multidão de Heliópolis, do que Taís a Penitente, ou Maria do Egito, em seus retiros selvagens da silenciosa Tebaida. E depois, Ela tão frágil, tão fraca, tão desconhecida, tão jovem Mãe, flor tão delicada, sobre a qual os ventos violentos pouco deveriam soprar! Esse pensamento assusta; mas, dir-se-á, Deus estava com Ela. Sim, mas observai que Ele era mais fraco ainda do que Sua jovem Mãe. E quanto a José, sua doçura estava contra si, e, tão velho, tão doente, tão pouco habituado a se queixa, que proteção poderia ele oferecer contra a opressão desses bárbaros egípcios? O profeta chorava sobre a vinha de Sião, porque suas cercas de arbustos haviam sido arrancadas. Que ele diria, então, ao ver a Sagrada Família, esse paraíso vivente, desprovida de todo abrigo no Egito, e desprovida até esse ponto?

É-nos preciso passar a coisas maiores. Parece-nos nada haver de contrário às perfeições da Santa Virgem supormos que, em Sua segunda dor, o medo, que pertence à natureza humana, e que Nosso Senhor mesmo experimentará em Sua alma agonizante, tenha recebido o poder de exercer sua ação sobre Maria. A não ser assim, teríamos de no-lA figurar como uma criatura à parte, não pertencendo à família dos Anjos nem à dos homens, como uma glória de Deus não somente única, como de fato Ela o é por Sua dignidade e santidade, mas ainda afastada da esfera da humanidade. Teríamos de imaginar que os dons por Ela recebidos fizeram nEla o que a própria natureza divina não fez em Nosso Senhor, ou seja, teriam-nA feito deixar de ser mulher, enquanto que, apesar de Sua natureza divina, Jesus era realmente homem. Então Maria não seria mais um exemplo para nós, e a idéia da dor seria nEla uma coisa tão estranha e tão deslocada, que pareceria ficção [fictive] e sem realidade, uma simples doutrina simbólica ou um bela alegoria da Encarnação. Não se pode, pois, duvidar, de que o medo tenha sido um dos principais sofrimentos de Sua fuga para o Egito. Dificilmente acharíamos uma paixão que exerça sobre a alma o seu poder duma maneira mais tirânica que o medo, nem acharíamos uma impressão mental mais estreitamente ligada ao sofrimento físico. O medo nos toma como um espírito que vem de improviso e se lança sobre nós, sem que saibamos como, vindo de alguma caverna desconhecida. Não podemos nos preparar contra sua chegada, pois não sabemos quando virá. Não podemos resistir quando ele chega, pois, só ao tocar-nos, ele já se apodera de nós, e sua simples presença já constitui sua vitória. Ele cobre com sua sombra os céus sem nuvens, e tampa mesmo os raios do sol. Ele sopra através de nós como um vento que penetra e que gela nossas faculdades mais vitais; paralisa, quase, nosso poder de agir, de sorte que, sob sua influência, parecemo-nos com homens que vêem e ouvem, mas são incapazes de falar e se mover. Se o medo não fosse um sentimento eminentemente passageiro, que se produz em virtude de sua agitação mesma, ele nos faria perder toda a liberdade da vontade e, em seguida, as luzes da razão. Sua presença na alma é sempre acompanhada de uma perturbação pior que o sofrimento mesmo, e da qual a continuidade seria incompatível com a vida. É uma angústia tão dolorosa, que parece sempre ao ponto de se tornar intolerável. Não é um sofrimento; é uma tortura. É raro que a realidade dos males seja superior à espera terrível que os precedeu. A terra ainda não produziu uma dor, a justiça humana ainda não inventou um castigo, a respeito dos quais isso não seja verdadeiro.

Temos agora de nos representar os efeitos desse sentimento sobre a sensibilidade inexprimível da alma da Santa Virgem, e, ao mesmo tempo, em meio à Sua santidade incomparável. Sua união com Deus é sempre contínua; a tranqüilidade que resulta dessa união nunca é perturbada. O santuário é assaltado, mas não profanado. O medo habita suas muralhas, mas a barreira não é forçada. Maria sabia perfeitamente que o Calvário deveria vir, e sabia que ainda não seria agora. Ela sabia que Seu Menino não devia perecer pelas mãos de Herodes. Entretanto, o medo, sem obscurecer as luzes de Seu espírito, podia destruir nEla o sentimento de segurança. Pois, no medo, os pensamentos podem ser justos e judiciosos, mas permanecem isolados, estéreis, não levando à sua conclusão natural. Não é justamente senão o que o livro da Sabedoria diz do medo, que este é “o que perturba a alma que se crê abandonada de todo socorro, e quanto menos ela encontra alívio dentro de si, mais ela exagera os motivos de se atormentar, sem nem conhecê-los bem” (cap. XVII). Por outro lado, Nosso Senhor pode ter tido o Seu Coração velado para Maria. Ele não ia morrer, é verdade; mas que outros abismos de miséria podiam ser abertos aos pés mesmos de Maria! Há tantas coisas que não fazem morrer, mas são piores que a morte. Os sofrimentos possíveis são indizíveis, mesmo na sorte limitada do homem. A Mãe podia ser separada do Filho. Herodes podia tomá-lO e, a Seus olhos, dá-lO a uma outra: que seriam as trevas do Egito ou mesmo o eclipse do Calvário comparados a tão afrontosa separação? O conhecimento que Maria tinha do futuro não abrangia tudo, apesar de sua vasta extensão, ou, pelo menos, Ela podia estar na incerteza sobre o que sucederia. Poderiam ocorrer perigos imprevistos, como, depois, nos três de ausência [no Templo, aos doze anos]. Não poderia Ela, então, ter medo de que viesse algum deles?

Até quais extremidades uma santidade como a de Maria poderia experimentar o terror? Tremeria Ela à vista dos ladrões que atravessavam o deserto em seu isolamento? Quando o vento inquieto da noite agitava repentinamente os cimos das palmeiras ou as tranças das acácias, como um murmúrio indistinto de vozes humanas, Maria temeria o pior? Os olhos negros dos egípcios A assustariam, quando se fixavam sobre o Menino com um ar investigador? O medo A faria apressar-se em Seu caminho, enquanto aguçava o ouvido, desconfiada? Não teria Ela, mais de uma vez, apertado o Menino em Seu abraço, fazendo interiormente o voto de jamais se separar dEle? Sentiria Ela ressoar no ouvido de Seu espírito as lamentações das mães de Belém, ou então os gritos agudos e penetrantes dos pequenos inocentes correriam atrás dEla sobre os ventos do deserto? Vós o sabeis, ó nossa Mãe! Nós não devemos ousar dizê-lo. Mas quem poderia duvidar que o medo fizesse Maria provar os mais terríveis sofrimentos, transformando o deserto e o Egito em um Getsêmani por vários anos? Seguramente, isso foi a sombra das trevas egípcias que caiu sobre Ela e, embora à respeito de Maria não possamos aplicar à letra o que as Escrituras dizem das antigas trevas do Egito, no entanto elas nos dão uma idéia vaga e indefinida do que sofreu a Santa Virgem.

Estando então todos abatidos por um mesmo sono, nesta noite terrível que lhes sobreveio do mais profundo dos infernos, eles estavam assustados, por um lado, com esses espectros que lhes apareciam e, por outro, pelo desfalecimento mesmo de seus espíritos, pelos temores repentinos e desconhecidos dos quais eram surpreendidos. Se algum caía, permanecia preso, sem laços, nesta prisão de trevas. Pois, se um trabalhador, um pastor ou um homem que lavra o campo, fosse surpreendido, ele se encontrava então numa necessidade e num abandono inevitáveis, porque estavam todos ligados pelo mesmo grilhão das trevas. O vento que soprava, o concerto dos pássaros que cantavam alegremente nas copas das árvores, o murmúrio da água que corria com impetuosidade, o grande barulho que as pedras faziam ao cair, a correria dos animais que se jogavam para qualquer lado, os uivos das feras, ou os ecos que retiniam nas covas das montanhas; todas essas coisas, ao atingirem-lhes os ouvidos, faziam-nos morrer de medo. O resto do mundo era iluminado pela mais pura luz, e se ocupava em seu trabalho sem empecilho algum. Eles, apenas, estavam acabrunhados por essa profunda noite, imagem das trevas que lhes estavam reservadas, e eles tornavam-se então mais insuportáveis a si mesmos do que suas próprias trevas
(Sabedoria, cap. XVII, 13-20).

Mas a parte mais aflitiva da segunda dor de Maria fica ainda por dizer, e ninguém saberia dizê-la como convém. Não a compreenderíamos sem termos uma revelação do Coração de Maria; mas, mesmo então, não a poderíamos exprimir por palavras. Era uma mistura da pena mais viva, de sentimentos magoados, de uma aflição tão grande que parecia impossível, de horror que deseja não crer no que vê; e, ao mesmo tempo, Maria sente o esmagamento simultâneo de todos os amores de Seu Coração Imaculado. Esse tormento provinha de que, nessa segunda dor, Maria via claramente a raiva dos homens contra Jesus. Infante cheio de beleza, que fazia de Sua carne como que um manto das grandezas de Deus! Houve, jamais, algo mais atraente e menos detestável do que esse bendito Infante? Por que os homens se levantam assim, pois, contra Ele? Por que os olhares dos reis investigam Sua inocente obscuridade como linces ferozes, e por que se alteram eles na busca de Seu Sangue, como se se tratasse duma presa para seu apetite selvagem? Inocente, fraco, silencioso, suplicante e tão belo! E os homens O caçam pelos esconderijos, como se fosse um monstro cruel, tirânico, sanguinário, como se sentissem por Ele a repugnância que despertam as grandes iniqüidades e os crimes cometidos à traição! Maria sabia quanto Jesus era belo, e sabia, por conseqüência, quanto era inexprimível o sacrilégio desse cruel exílio, dessa perseguição homicida que só não conseguiu seu intento porque Deus subtraiu-lhe a Vítima. Maria sabia igualmente que Jesus era Deus, que Ele era o Criador vindo ao meio de Suas criaturas; e, embora ainda não tendo intervindo nem falado aos homens, mas somente os olhado com Sua doce face, eles já se atormentam de inquietação; eles O julgam um fardo, embora Aquela que O leva através do deserto possa atestar que Ele é mais leve do que o ar, ou, pelo menos, Seu amor maternal A faz sentir assim; enfim, eles O forçam a fugir antes mesmo que pudesse andar. Tal era o acolhimento que Deus recebia depois de quatro mil anos! Céu misericordioso! O amor divino não é, realmente, uma coisa incrível?

Que amor poderia ir mais longe?
Todas as afeições desse Coração maternal estavam feridas ao mesmo tempo. Se os homens tivessem simplesmente evitado Jesus e se mantido longe dEle, Ela já teria provado um sofrimento intolerável. Se eles passassem perto dEle com indiferença, como se Ele não representasse interesse algum para eles, como se Ele fosse um homem vulgar, uma mera unidade a mais, uma unidade pobre e vulgar na população do mundo, isso já teria causado em Maria a mais viva ferida. Ver os homens desconhecer Jesus, desprezá-lO, não apreciá-lO, já seria para o Coração de Maria um espinho que nada poderia arrancar. Mas Jesus era odiado, e especialmente pelo povo que Ele mais amava dentre todos aqueles que veio salvar. Ela, sim, amava a Jesus com muitos amores, visto que O amava em conseqüência de vários direitos e sob vários títulos. E foi ferida distinta e cruelmente em cada um desses amores. Ela era a criatura e a Mãe de Jesus. Ela O amava com a afeição natural mais viva, pois O havia portado em Seu seio. Seu amor crescia maravilhosamente na medida em que se desenvolvia a beleza de Jesus e à medida que O conhecia melhor. Ela O amava com um amor sobrenatural, não somente por causa da santidade de que Ele estava repleto, mas ainda por Sua própria santidade, que se atirava para a de Jesus. Ela O amava como o Salvador e o Redentor do mundo. Ela amava com uma adoração perfeita a Sua natureza divina e a Pessoa do Verbo eterno. Que amor poderia ir mais longe? Mas Ela amava também, com um entusiasmo que Lhe constituía uma segunda vida, a glória de Deus, a exaltação dEle por Suas criaturas, e a honra da majestade divina. Ela amava a Santíssima Trindade com um amor maior que o de todos os Santos, com complacência, congratulação, desejo, condolência, imitação, estima. Ora, Jesus era o verdadeiro objetivo ao qual tendiam todas as glórias de Deus, o troféu ao qual elas estavam suspensas, a fonte donde brotavam, o alimento único que poderia sustentá-las, o preço igual ao seu valor, o meio, o único meio pelo qual Maria poderia amá-las como desejava. Não havia uma só coisa cara ao coração de Deus, que não fosse ultrajada e ferida por essa tentativa contra a vida de Jesus, por esse ódio contra o Filho que Deus havia enviado. E as inúmeras feridas do amor eterno pesavam sobre o amor ardente de Maria, terríveis como os estigmas dos Santos.
Isso não era tudo. Maria amava os homens. Nem os esposos, nem as mães jamais amaram como Ela amava. Missionário algum jamais ardeu de tanto amor às almas. Ela tinha no Coração todos os interesses dos homens, os interesses de cada um deles. Ela teria querido morrer para salvar o menor dentre eles, se o sacrifício limitado de uma simples criatura pudesse merecer-lhe a salvação. [Elle eût voulu mourir pour sauver le moindre d’entre eux, si le sacrifice limité d’une simple créature eût pu mériter leur salut.] Por amor a eles, bem como por amor a Deus, Ela teria suportado mil torturas para impedir o cometimento dum só pecado. Mas, por que tantas palavras? Ela lhes havia de entregar Jesus. Já estava decidido. Virtualmente, já O havia entregue. Oh! Que mesmo então os homens A ferissem em Seu amor pago com ingratidão, desdenhado, rejeitado! Ela tremia ao ver quais abismos de trevas, qual separação de Deus manifestava aquele ódio contra Jesus, e uma espécie de santo horror passava por Ela diante dessa manifestação tão terrível do poder e da malícia dos espíritos malignos. Eles não sabiam, ainda, que Jesus era Deus, mas seus instintos [angélicos] os lançavam em torno à Sua graça e santidade por uma espécie de atração, que eles não compreendiam, mas que os deixava furiosos. [Ils ne savaient pas encore que Jésus fût Dieu, mais leurs instincts les attiraient autour de sa grâce et de sa sainteté par une sorte d’aimant qu’ils ne comprenaient pas, et qui, cependant, les rendait furieux.] E os homens mesmos, os homens dos quais o Verbo assumira a natureza, os homens pelos quais Ele iria morrer, os homens dos quais Maria se tornaria a Mãe, e mesmo as tribos escolhidas de Israel, estavam como que possuídos por esses maus espíritos, [étaient comme possédés de ces mauvais esprits,] deixavam-se guiar por eles e lhes obedeciam, sem saber quanto mal com isso faziam. Oh! Não sentimos nós como, do fundo do mais amargurado dos corações, a Mãe de misericórdia antecipava a prece doce e onipotente de Seu Menino: “Pai, perdoa-lhes; eles não sabem o que fazem”?

A segunda dor da Santa Virgem, como já o dissemos, não foi um mistério passageiro. Não foi uma ação apenas, mas sim abarcou um longo espaço de tempo, vários anos mesmo. Durante todos esses anos, Maria teve de suportar todas essas penas de que falamos. Depois dos sete anos no Egito, que haviam acrescido, dia após dia, a ferida em Seu exilado Coração, essa dor foi uma dupla dor, pois o Retorno foi uma espécie de eco da Fuga. A mesma rota acabrunhante para percorrer, as mesmas fadigas, as mesmas privações e os mesmos vários perigos. O medo, sim, era menor, pois a ameaça à vida do Menino já passara, embora aparecessem outros temores menos importantes. O Retorno teve algumas circunstâncias agravantes diferentes da Fuga. A idade de Jesus constituía uma causa de particular dificuldade para Maria e José. Em Seu oitavo ano, Ele ainda era muito pequeno para a caminhada, mas, ao mesmo tempo, já era muito grande e pesado para ser carregado nos braços. Seriam obrigados a conseguir algum animal de carga, o que agravaria as fadigas de José no deserto [para achar água e comida ao animal], ou então teriam de dividir por turnos o Seu precioso fardo, quando este permitisse que as conseqüências naturais da fadiga, ou as feridas causadas pela areia quente, ou as plantas espinhosas do deserto, exercem sobre Ele sua ação e Lhe impedissem de continuar a caminhar. A idade agora ainda mais avançada de José era também, no Retorno, um detalhe que Maria não esquecia nem por um instante. O trabalho o havia curvado, ao passo que os anos, sobretudo os últimos anos de inquietação, haviam deixado sua marca na veneranda face de José. Ele se fatigava muito, pois suas forças estavam esgotadas; e Jesus ajuda menos aqueles que estão perto dEle a carregar a cruz, do que aqueles que estão longe. [Et Jésus aide moins ceux qui sont près de lui à porter leur croix qu’il n’aide ceux qui sont plus éloignés.] A idade de Jesus trazia também à Maria, como de ordinário, novos motivos para O amar e um crescimento contínuo de Seu antigo amor, e tudo isso aumentava-Lhe as angústias. Ademais, Ela e Jesus estavam então [ao voltarem para Jerusalém], no caminho do Calvário, para o qual Seus olhares se voltavam. Esse pensamento poderia deixá-lOs durante todo esse tempo do Retorno? E, sobre as fronteiras da Terra Santa, o temor os surpreende de novo [ao saberem que Arquelau reinava no lugar de seu pai]; afastar-se-ão de Sião e voltarão para o retiro de Nazaré. A Escritura diz: Não há paz para os ímpios. Vendo o mundo, porém, somos tentados a crer que é antes para os bons que não há paz.

Dessas particularidades da segunda dor podemos agora passar às disposições com as quais a Santa Virgem a sofreu. Pode-se tirar uma conclusão de tudo o que já foi dito. Mas há três pontos sobre os quais devemos especialmente dirigir nossa atenção. O primeiro é a absorção generosa de Maria nos sofrimentos dos outros. Parece que o Seu Coração está posto no coração dos outros, para aí sentir, amar, sofrer e ser torturado. Quando passamos em revista os incidentes dessa segunda dor, não podemos jamais deixar de recordar o quanto Maria sofreu sede e fome, o quanto padeceu com o vento, o quanto foi privada do sono, o quanto machucou Seus pés, quanto teve de suportar fadigas do corpo e do espírito. São sofrimentos que nós, Seus filhos, não podemos esquecer. Mas é preciso considerar também os outros assuntos que prendiam a Sua atenção e A faziam chorar. Suas dolorosas simpatias estavam sempre presentes. Ora elas se voltavam para José, ora se concentravam sobre Jesus. Elas se estendiam como humildes reparações sobre a majestade de Deus, ou então se derramavam sobre a terra, atingindo todas as almas humanas de cada geração com um banho de lágrimas e de eficaz compaixão. As simpatias de Maria eram para todos, exceto para Seus próprios sofrimentos. Eram para cada um dos outros, mas não para Ela mesma. Para com os outros, essas simpatias pareciam nascer sem esforço, produzir-se naturalmente nEla, porque Ela agia com tanta graça, que a graça parecia ser Sua natureza. Tal como a lua reflete a luz do sol e embeleza a terra sem o menor esforço, assim Maria reflete Deus, assim Ela brilha e ilumina sem esforço, quase sem nem o notar, como se Lhe pertencesse naturalmente o ser luminosa e bela, e não houvesse nada de surpreendente nisso.

Outra disposição de Maria nessa segunda dor foi a Sua viva sensibilidade pelos interesses de Deus feridos pelo pecado. Esta é como que um novo sentido que a santidade desenvolve na alma; e mais nós avançamos na santidade, mais ela se torna sutil. O alcance de visão da alma torna-se mais extenso, ao mesmo tempo em que suas percepções tornam-se mais exatas e mais detalhadas. Seu ardor aumenta quando a graça cresce, e, por uma conseqüência natural, seu poder de nos fazer sofrer cresce também. Nos grandes Santos, esse sentido novo torna-se uma verdadeira paixão e consome-lhes a vida. Entretanto, não é possível estabelecer sequer uma comparação entre essa sensibilidade desenvolvida nos Santos, e aquela que existia na Mãe de Deus. Ela estava lançada num círculo divino e levava uma vida divina. [Elle était attirée dans un cercle divin et menait une vie divine.] Ela tinha com a Majestade divina uma espécie de união, uma unidade espiritual que Lhe dava um direito de tomar parte nos negócios de Deus, o direito de interessar-Se unicamente pelos interesses dEle, uma espécie de participação real na sensibilidade dessa glória, tal qual não a poderia ter nenhuma outra criatura. Maria é uma pessoa de casa e, por conseqüência, Ela sente de uma maneira toda diferente da sentida por quem é de fora, mesmo pelos que são caros e próximos. A prece de Maria não é uma simples intercessão; é, antes, como que uma jurisdição sobre o Sagrado Coração e sobre a Vontade de Deus, o que faz de Sua prece uma coisa diferente da intercessão dos Santos. Todos estes trabalharam, em união com Jesus, para multiplicar os frutos de Sua Paixão; mas Maria teve uma cooperação indefinível na redenção do mundo, tal que a cooperação dos Santos não se lhe pode comparar, assim como não se compara a simpatia destes pela Paixão de Nosso Senhor, com a verdadeira Compaixão da Santa Virgem. Se os sofrimentos de São Paulo em sua carne “completavam o que faltava aos sofrimentos de Cristo, em favor de Seu Corpo, que é a Igreja” (Col II, 24), que dizer então das dores de Maria? Essas considerações, se não podem dar à nossa pesada [pesanteur] espiritualidade uma idéia justa da sensibilidade da Santa Virgem para com a glória de Deus, nos deixam pelo menos aptos a, quando nos espantarmos da sublimidade desse instinto nos Santos, recordarmo-nos de que a sensibilidade de Maria se elevava a uma tal altura, que mesmo os Santos não podem fazer idéia.

Mesmo para nós, no fundo dos vales onde a busca misericordiosa da graça nos descobriu, há uma inexprimível tristeza em ver como Deus é excluído de Sua própria criação. Consideramos nestas páginas o mistério da fuga do Criador para longe de Suas criaturas. Não haverá algo de terrível também na fuga das criaturas para longe do Criador, fuga da qual somos continuamente testemunhas? Quando a fé nos abre os olhos, que visão do mundo ela nos apresenta! Por toda a parte Deus persegue com Seu amor as Suas criaturas, Suas culpadas criaturas; mas não é para puni-las, e sim para salvá-las. Não há no mundo nenhuma casa, nenhum asilo secreto de pobreza, nenhum refúgio do pecado, nenhum lugar indigno para tão alta Majestade, onde Deus não siga Suas criaturas e não as constranja, quase, a receber Seus imensos dons. Mais rápida do que o clarão, mais poderosa do que o oceano, mais universal do que o ar, Sua compaixão se expande e se multiplica com magnificência sobre todo o mundo que Ele há criado. Por toda a parte, porém, os homens se esforçam por escapar a essa generosidade, a essa misericordiosa e terna perseguição. Parece que o grande objetivo de suas vidas seja evitar a Deus, que o tempo seja uma repetida lembrança da necessidade da presença de Deus na eternidade, o que Lhe faria não ter o direito de intervir também no tempo; e parece que o espaço do mundo tenha sido dado às criaturas para que pudessem se manter afastadas de seu Criador. Mesmo as crianças fogem com todas as forças para longe de Deus, como se compreendessem essa questão tão bem como os homens feitos. Deus fala, pede, suplica, grita, mas eles fogem sempre. [Dieu parle, il prie, il supplie, il crie, mais ils courent toujours.] Ele redobra a claridade dos raios de sol que lhes envia, a fim de lhes ganhar o coração para o excesso de Sua indulgência paternal; mas eles fogem. Ele envia Sua luz sobre as sombras e trevas dos homens, para torná-los sensatos e sábios; mas eles fogem. Grandes graças são jogadas sobre suas almas como pedras que uma funda lança com rapidez, e eles tombam. Mas, num instante, reerguem-se e continuam sua fuga. Ou, se Deus as alcança então, por estarem muito feridas para se reerguerem do chão, eles O deixam apenas lavar-lhes o sangue e curar-lhes as feridas e beijar-lhes ternamente a fronte, e já recomeçam sua fuga. Deus, no entanto, não se deixa vencer em Seus desejos; Ele se esconderá na água de um sacramento e fará Sua doce prole de infantes antes que comecem a usar a razão. Muito bem; mas, em seguida, é preciso que Ele as faça morrer se as quer guardar; senão, antes mesmo de poderem correr, já estarão fugindo para longe dEle. E o que é esse quadro comparado à visão que, sem cessar, se apresentava ante os olhos de nossa Santa Mãe?

Mas observemos o mundo em torno a nós e vejamos qual aspecto ele apresenta. Se, à essa vista, nosso fraco amor já se irrita, que então deve ter sofrido Maria? Pois o que aí irrita nossa fraqueza deve ter sido para Ela a dor mais profunda e mais imensa. Deus vem ao encontro do mundo por Ele criado, e o mundo não se deixa encontrar; esconde-se em imensas profundezas longe de Deus. Deus vem sob os trajes duma misericórdia incrível em suas maravilhas, mas Sua beleza parece não ter atrativos para o mundo. Deus se antecipa; força o mundo a tomar uma atitude; e o que este faz é manter-se frio diante dos olhos mesmos de Deus. Deus poderia ter outros mundos, mais férteis, mais acessíveis para Ele do que este. Nos trópicos espirituais onde moram os Anjos, Ele seria bem acolhido; mas Ele não quer vir senão aqui: este mundo é como o pólo setentrional de Seu universo. E, no fim, Deus há vertido Seu Sangue sobre este mundo sem conseguir derreter-lhe o gelo. Este mundo é ingovernável, inviável, inabitável para Deus; Ele não pode fazer nada; não pode mais do que fazer Seu sol brilhar mais do que aqueles gelos, ordenar à lua que brilhe em sua pálida beleza, ou encher as longas noites [polares] com clarões duma aurora [boreal] da qual os esquimós, enterrados em suas tocas, não desdenharão admirar os esplendores. A única diferença é que o pólo material cumpre a sua função, que é a de produzir gelo sob todas as formas possíveis, enquanto que nós, os homens, estamos tão acostumados à nossa própria frieza, que não sabemos o quanto somos frios, e imaginamo-nos estar na zona temperada do universo criado por Deus.

Apesar de Deus vir a este mundo, as coisas não melhoraram. É triste de pensar e até ao céu parece incrível, mas quantos homens há, neste mundo, que estão separados de Deus ao ponto de ser necessário quase um milagre para que a graça se insinue em suas almas! Considerai esta infinidade de bons começos, de piedosas intenções, de santos desejos, de lutas zelosas, de aspirações ardentes, e vede com qual tirania as preocupações da vida triunfam sobre os interesses de Deus. Vede as almas que são retidas longe dEle pelas obrigações de família; elas acabam precisando viver longe dos meios da graça, ou são jogadas em meio a maus exemplos, ou obrigadas a tomarem parte em distrações contrárias aos seus gostos, ou postas numa alternativa, seja de julgar seus parentes, seja de desconsiderar sua sensibilidade para com Deus, ou então são engajadas em casamentos mal escolhidos, ou forçadas a se exporem às tentadoras ambições mundanas, ou, enfim, sua vocação religiosa é maltratada. Deus não deve poder agir à Sua maneira; nem querê-lo. De Sua parte, não fará um milagre, e essas almas se perderão. Quantos, ainda, são apartados de Deus pelos negócios de dinheiro? A religião dos órfãos é posta em perigo por executores testamentários que não tem fé; fortunas são deixadas sob condições tais que, sem uma graça heróica impedem a conversão. [Nota: nosso autor inglês está se referindo, aqui, aos anglicanos que deixavam fortunas como herança, mas sob a condição de que os herdeiros nunca se fizessem católicos...] O lugar de habitação fica fixado pela necessidade financeira, mesmo que ele traga prejuízo espiritual; as questões de educação são decididas duma maneira prejudicial por motivos pecuniários, bem como a escolha duma profissão. E a falta de dinheiro também é uma barreira para muitas almas, apesar de julgarmos que elas fariam uso dessa liberdade para o serviço de Deus; mesmo os arranjos de lugar para morar acabam separando as almas de Deus. Estas se deparam com a necessidade de viver durante uma parte do ano num endereço onde não podem receber regularmente os sacramentos, ou então são obrigadas a conviver com pessoas de outra crença, ou obrigadas a renunciarem a seus hábitos de obras de misericórdia. Quantas pessoas são separadas de Deus pelas conseqüências temporais de algum desastre! As famílias se dispersam; as almas são aprisionadas em ocupações que não lhes convêm e em empregos desfavoráveis, do que lhes resulta uma série de dificuldades religiosas, às quais é realmente impossível escapar. Pode-se dizer que, apesar de tudo, a excelência da religião é interior. Mas, a quantas almas esse espírito interior é dado? Seguramente, essa não é uma das graças ordinárias de Deus. [Assurément, ce n’est pas une des grâces ordinaires de Dieu.] Outras, ainda, são separadas de Deus por medidas irreparáveis tomadas por elas mesmas, culpavelmente, ou por outros. Parece que uma fixidez eterna se insinua em certas decisões temporais. Então as almas não podem fazer mais nada por si mesmas. Já não podem dar tudo a Deus, mesmo que o quisessem, a menos que se lhes comunique uma dessas graças extraordinárias dos Santos mais avançados na vida mística. Necessitamos recordar aqui, para nosso consolo, que se há essas medidas irreparáveis na vida temporal, por outro lado nada há de irremediável na vida espiritual. Quem poderia viver esta se fosse o contrário? O poder, também, que os homens têm de afastar de Deus os seus semelhantes é assustador. Que exercício para um espírito ardente, dotado de um vivo sentido da justiça e um amor direito e sincero pelas almas, o ter de trabalhar por elas sob a pressão dum grande sistema público, da organização e das instituições dum país que não tem a fé! O ter de ver uma alma suspensa sobre a borda do precipício da grande questão eternal, notando que a mais ordinária benevolência e a mais pequena bondade a poderiam salvar, e não poder pôr em obra nem uma nem outra! Tudo isso são como facas a penetrarem na carne, causando intoleráveis dores. Não temos o direito de fazer um apelo à equidade; na realidade, pode ser que a equidade não esteja visível senão do nosso ponto de vista. Pode ser que obtenhamos justiça, mas se a pedirmos a título de privilégio e favor. Por amor aos pobres de Cristo, insistamos junto de Deus para que Ele multiplique e prolongue nossa paciência! Assim, no mundo inteiro – em todas as classes, mas sobretudo nas mais elevadas – a criação é, por assim dizer, separada de Deus, e a bondade divina não se pode exercer, a menos que Ele derrogue Suas próprias leis e apele para Sua Onipotência. Há em certas circunstâncias uma tirania que assemelha-se quase a uma necessidade de pecar. Foi preciso uma definição da fé para nos assegurar que uma tal necessidade, felizmente, é impossível. É uma verdade que todos sentimos, e a todos nos machuca vivamente. Ora essa tirania nos abate, ora nos irrita, segundo ela age sobre as desigualdades de nossa frágil graça. Multiplicai tudo isso até que faltem as cifras, misturai tudo isso até que a massa encha o espaço e se estende mais além até, e então tereis uma idéia dos sentimentos singulares da Santa Virgem para com a honra da divina Majestade.

Há ainda na Santa Virgem outra disposição que devemos considerar com atenção. Sua caridade para com os pecadores era proporcional ao Seu horror ao pecado. Enquanto por um lado se entristecia pelo amor de Deus desprezado e pela magra ceifa de glória que Ele iria recolher, Ela não experimentava nenhum sentimento de amargura contra os pecadores. Ela não se encolerizava com as faltas deles, mas sim sofria por amor a eles, à causa das conseqüências de faltas deles. Não os condenava em Seu Coração; chorava-os, somente. O pecado era claro e odioso a Seus olhos, quando Ela o via se elevar contra a honra de Deus; mas, quando Ela olhava o pecador, o horror se fundia então num dilúvio de compaixão. Seu zelo não tinha ímpetos de vingar, com julgamentos assustadores e castigos proporcionais, o ultraje feito à Majestade divina; Ela queria antes reparar o ultraje pela conversão do pecador. Ela cria melhor secundar os interesses da justiça de Deus em favorecendo o exercício de Sua misericórdia. Há, em verdade, uma espécie de respeito devido aos pecadores, quando os consideramos, não em seus pecados, mas como tendo pecado [isto é, como caídos pelo caminho] e como objetos duma solicitude divina [particular]. É a manifestação desse sentimento nos homens apostólicos que atira os pecadores para eles e os conduz à conversão. O devotamento de Nosso Senhor para com os pecadores enche de um sentimento particular os corações de Seus servidores. E quando os pecadores se arrependem, a marca da divina predileção na grande graça que eles recebem é uma coisa mais digna de admiração, de respeito e de amor, do que o pecado o é de ódio. Em todas as instituições reformadoras, é a falta de um respeito sobrenatural para com os pecadores que é a causa de insucesso, e é a abundância desse respeito que é a causa do sucesso. [Dans toutes les institutions réformatrices, c’est le manque d’un respect surnaturel pour les pécheurs qui est la cause de l’insuccès, et c’est l’abondance de ce respect qui est la cause du succès.] Quando Nosso Senhor tenta converter, é sempre por meio de olhares de bondade, por palavras de amor, por uma indulgência mesma que parece aproximar-se do relaxamento. Ele não converteria repelindo. Se Ele fustiga Herodes e os fariseus é porque não se dignava tentar convertê-los; deixa-os tranqüilos, e por isso lhes fala severamente. [(...) par une indulgence même qui paraissait approcher du relâchement. Il ne convertissait pas en rebutant. S’il rebuta Hérode et les pharisiens, c’est qu’il ne daignait pas essayer de les convertir; il les laissa tranquilles, et c’est pour cela qu’il leur parla sévèrement.] Tais eram os sentimentos da Santa Virgem ao ver o pecado que Sua segunda dor punha diante dEla. Sem cólera contra os homens, Ela os amava e tinha tanta compaixão deles, que parecia vê-los antes como infelizes do que como culpados. Seu amor crescia em proporção aos pecados deles, assim como a medida da vida de Nosso Senhor parece ter sido a plenitude da iniqüidade do mundo. Elevassem eles os seus pecados em um degrau, e o amor dEla crescia também. Pode-se dizer que nada há de mais singular nos instintos da santidade do que a maneira pela qual um coração santificado considera os pecadores. Isso é o que atesta mais infalivelmente do que qualquer outra coisa uma secreta união com Jesus, uma união secreta e terna com Deus, uma justa inteligência e como que um feliz contato com o Sagrado Coração. São sempre os Santos contemplativos os que mais têm amado os pecadores, mais até do que os Santos ativos, que hão empregado suas vidas em convertê-los. Não seria essa uma boa razão para a necessidade do elemento contemplativo na formação de um apóstolo completo?

Mas a dor que consideramos contém ainda muitas outras lições para nós. Com efeito, a permanência no Egito é uma figura perfeita da maneira pela qual Deus, Nosso Senhor, a Fé [com letra maiúscula no original], e os Santos, se encontram em meio ao mundo. Lá, a vida entre as coisas comuns é tornada maravilhosa pelo espírito interior; lá, a companhia de Maria e de José; lá, as três irmãs evangélicas: o trabalho, a pobreza e o desprendimento; lá, a misteriosa realidade, à qual os homens não dão valor algum; lá, o exílio, e um exílio no Egito; lá, o amor de Deus em Sua suprema soberania; enfim, lá está Nosso Senhor, no mundo, oculto como um pequeno menino, assim como Deus é invisível em Sua criação, apesar de Suas perfeições infinitas; assim como Ele é invisível em Sua Igreja e na Santa Sé, apesar de todos os Seus triunfos; assim como Ele é invisível no Santíssimo Sacramento, apesar de toda a luminosidade teológica escrita sobre esse assunto. Assim também a Fé em meio aos interesses contrastantes e às grandezas da civilização moderna, apesar de suas velhas conquistas históricas e de sua propagação de cada dia. Assim são os Santos em meio às obscuridades da vida, e a publicidade não os pode descobrir, apesar dos milagres que operam. Eles estão todos no mundo como pequenas crianças. Nós mesmos entramos também nessa figura. Lá, o grande rio Nilo, atravessando como um sonho o antigo e tranqüilo Egito; lá, as pirâmides, os monumentos da grandeza pagã; lá, os desertos de areia, os campos de rico limo, que a inundação renova todos os anos, as copas das palmeiras, a vida bizarra do bazar oriental, e, depois, Jesus, Maria e José, em algum lugar. A alegoria é completa. Tal é o mundo, nossa terra natal. Deus permanece escondido, e todos nós não passamos de estrangeiros, embora nascidos no mesmo solo que os outros; pois a graça nos dá uma feição tão singular que nos faz parecer estrangeiros. Nos esforçamos pacientemente por cumprir a obra de Deus, e contamos os anos. Virá um que será o último, e que nos conduzirá para a pátria, e nos lançará aos pés de Deus, e assim como fomos totalmente dEle no exílio, Ele será todo para nós em nosso eterno lar. Ele será... Ó misericórdia infinita! Perdoai-me essa expressão, pois não sois todo para nós desde já?

Outra lição contém essa alegoria, mas é preciso ter coração para compreendê-la. Requer aprendermos a simpatizar com Jesus, sobretudo considerado nos sofrimentos que nós mesmos Lhe causamos. A religião é um amor pessoal para com Deus, e é nossa obediência que atesta esse amor. O amor é o que dá valor e significação à alma. Para serem verdadeiramente religiosas, nossas almas devem viver numa atmosfera particular que lhes seja apropriada; uma atmosfera encantada [atmosphère enchantée], na qual o mundo não possa respirar, onde, por conseqüência, ele não possa adentrar. E é preciso que também nós já não possamos respirar fora duma atmosfera de prece. É preciso que a alma traga em si um mundo de esperanças e temores, uma partilha particular de gostos e simpatias, de instintos e pressentimentos que lhe sejam próprios, de atrações e repulsões que lhe pertençam exclusivamente. Não lhe basta crer num grande número de doutrinas ou guardar certos mandamentos. Estas coisas são essenciais, mas não são tudo; elas são a carne e o sangue, ao passo que o amor é a alma mesma. Ora, o principal meio de criar essa atmosfera encantada em torno a nós, é a devoção aos mistérios de Nosso Senhor. A Santa Virgem é santificada nesta dor por Sua simpatia para com Jesus. A Venerável Joana de Jesus e Maria, franciscana, meditando sobre a fuga de Nosso Senhor para o Egito, ouviu de repente um grande barulho como de homens armados que corriam e se chocavam até, perseguindo alguém; pouco depois, ela viu um lindo Menino, todo palpitante de fadiga, que corria rapidamente para ela e gritava: “Joana! Socorra-me e esconda-me! Eu sou Jesus de Nazaré, e busco escapar dos pecadores que querem me matar, e que me perseguem como outrora Herodes. Eu vos suplico: salvai-me!” A meta mais importante que devemos ter em mira é chegarmos a trazer continuamente no pensamento os mistérios de Nosso Senhor, principalmente a Sua Paixão e a Sua Infância. Guardemo-nos de pensar nesses mistérios como histórias do passado, capazes apenas de nos provocarem impressões poéticas e sentimentais. Devemos meditar sobre eles como se fossem viventes, como se estivessem se passando diante de nossos olhos, como se fossemos nós mesmos participantes da história. Tal a diferença entre os mistérios do Verbo Encarnado, no Novo Testamento, e as gloriosas manifestações de Deus no Antigo Testamento: estas últimas são nossas lições, e aqueles primeiros são nossa vida. Eles não foram escritos para reluzir apenas; eles vivem, eles mostram-se cheios de atrativos, eles dão força, eles contêm graças, eles transformam. A vitalidade da Encarnação os penetra. Eis a razão secreta pela qual a heresia tem uma preferência pelo Antigo Testamento: porque este convém melhor ao seu temperamento. Aqueles que não crêem no Santíssimo Sacramento, e que destronam Maria, não compreenderam o sentido da Encarnação. Para eles, o Evangelho é uma bela história, ou pouco mais que isso. Seria a mesma coisa que a conquista de Canaã, o reinado de Davi ou o patriotismo dos profetas. Eis porque o entusiasmo que os católicos sentem pelos fatos do Evangelho, os hereges o experimentam pela história do Antigo Testamento. Mas, para os católicos, é mais do que entusiasmo: é a vida de sua religião, o respiro de sua santidade, a presença sem fim e a visão de seu Salvador bem-amado. Assim, por uma meditação assídua, por um amor que se aflige ou que se rejubila, nossa devoção segue seu caminho nos mistérios de Jesus, nos assimilando a eles, nos fazendo viver neles, sentir com eles, até que sua simples característica histórica seja absorvida por inteiro na realidade de um culto, e que o Coração de Jesus bata, por assim dizer, em nosso peito, como uma outra vida, melhor e sobrenatural.

Outra lição que essa dor nos ensina é a de que o sofrimento, quando Deus o quer, é melhor até do que as vantagens espirituais exteriores. Foi permitido à Santa Verônica de Binasco, agostiniana, acompanhar, em espírito, a Jesus e Maria, em Sua fuga para o Egito, e, ao término da fuga, Nosso Senhor lhe disse: “Minha filha, viste quantas fadigas tivemos de padecer nesta contrariedade; aprenda, pois, que ninguém recebe graças sem sofrer”. Sim, isso podemos compreendê-lo. Mas quando o sofrimento se opõe aos próprios meios da graça, quando sua presença acarreta a perda de nossos auxílios espirituais exteriores, pode parecer o contrário. Submeter-se, então, com alegria, ao sofrimento, requer algo mais que uma submissão ordinária. É preciso uma grande fé para aceitar que o sofrimento, por ser a Vontade de Deus, vale mais para nós do que a continuação de nossas práticas espirituais. Sermos piedosos é a questão de nossa salvação eterna, e a experiência nos tem amplamente demonstrado a importância da regularidade em nossos exercícios espirituais. Um dia santificado, que é senão a conseqüência legítima de uma manhã passada com Deus? Muitas pessoas apóiam a sua vida inteira sobre a Missa quotidiana, e esta é que lhes faz caminhar como é preciso até ao fim. E haverá sobre a terra um ser mais desprevenido que uma alma a qual, após um longo hábito de comungar freqüentemente, de súbito se vê privada disso por muito tempo? Por outro lado, quantos são os que vemos melhorar com o sofrimento? Não se tornam antes mais duros ainda? Guilloré disse que a doença derruba [espiritualmente] mais pessoas do que santifica. É uma palavra bem dura; mas com bastante verdade para nos encher de extrema tristeza. O Cardeal de Bérulle, falando dos sofrimentos interiores e das provações do espírito, diz que tinha conhecido muitas almas eminentes, e que destas, apenas uma não retrocedera sob a influência das referidas penas. Entretanto, apesar de todas essas palavras e experiências terríveis, nós devemos acolher o sofrimento, da parte de Deus, como melhor que as horas de prece, melhor que os sacrifícios de cada dia, melhor que os sacramentos celestes. Podemos então olhar essas coisas com desejo e saudade, mas sem faltar com a submissão à Vontade de Deus. É uma dura lição a aprender. Quem não se lembra da primeira vez que passou por ela? Como parecia inquietante! As coisas ordinárias pareciam ininteligíveis. A consciência se via com novos negócios a resolver acerca de um grande número de questões. Jamais uma direção espiritual nos foi mais necessária do que nesse momento em que, talvez, dela tenhamos sido privados. Dizemos que nosso sofrimento era uma doença. De quantas coisas nossa dor nos dispensaria? Seria suficiente para dispensar-nos de tudo isso? Então é que estamos mais provados e mais necessitados de socorro, e parece que os meios da graça para conservarmos a força interior se diminuem. Certas partes de nosso ser que, na saúde, nos pareciam cheias de força e de graça, então são postas à prova, como molas que se movem para todos os lados. É um tempo penoso. As dores amontoam-se sobre um homem afligido, como bestas tímidas que não ousam atacar até que a presa tenha sido ferida. Assim, tivemos de suportar mais provas justamente no tempo em que nossos meios de força para resistir estavam em penúria. Foi uma aflitiva lição, aprendida no medo e na incerteza, fecunda em aborrecimentos e lágrimas. Mas aprendemos, e se agora ainda estamos feridos por pecados veniais, pelo menos nossa desconfiança de nós mesmos há crescido. Fomos levados para mais perto de Deus; nos tornamos mais verdadeiros, porque mais interiores, e sentimos em nós um aumento de força, porque a graça foi melhor estabelecida em nós.

A conduta da Santa Virgem em Sua segunda dor nos ensina, ainda, que é quando mais sofremos em nós mesmos, que mais devemos buscar socorrer os outros em seus males. Esse é o meio de ganhar as graças particulares do sofrimento. A graça e a natureza têm, quase sempre, desígnios opostos. Eis porque Moisés, que tinha um caráter o mais violento, veio a tornar-se o mais doce dos homens. Assim, nossa aflição nos encerra naturalmente em nós mesmos e nos concentra sobre ela, ao passo que a graça nos leva a sermos mais controlados porque estamos sofrendo, a sairmos de nós mesmos e a derramarmos sobre os outros, como uma libação diante de Deus, toda a ternura e piedade que a natureza gostaria que reservássemos para nós mesmos. Se nos esquecemos de nós mesmos quando somos afligidos, daí resulta um enobrecimento do coração e como uma dilatação de todas as nossas faculdades; e fazemos então uma coisa tão particularmente agradável a Deus que, se cuidamos de agir por motivo sobrenatural, para imitar Nosso Senhor, Ele parece nos recompensar instantaneamente com as graças mais magníficas. Assentar-nos junto ao leito de um pobre enfermo, quando nós mesmos estamos abatidos interiormente pela doença, quando nosso pulso está agitado, quando nossa cabeça borbulha e a dor dá às nossas palavras a confusão que resulta ordinariamente da falta de atenção; ou ainda, escutar durante horas as mágoas leves dum coração enfermo, enquanto que nós mesmos gememos secretamente sob um fardo bem mais pesado; ou espalhar a suavidade e a luz pelo acento de nossa voz, por nossos olhares, nossas maneiras, por nosso sorriso sobre aqueles que dependem de nós, quando graves preocupações atormentam-nos secretamente o coração, quando tristes temores, quando previsões inquietantes e suspeitas atravessam o nosso espírito como espectros odiosos: tais são os grandes lances [coups de filet] do comércio da graça. Eles fazem chegar serenamente ao porto os navios que vêm lá das Índias celestes, carregados de riquezas desconhecidas e raridades estrangeiras. Uma hora de tal obra iguala sempre um mês de prece – e quem não conhece o valor de um mês de prece? Por outro lado, é a falta desse esforço de abnegação que faz com que a dor santifique geralmente muito menos do que os princípios cristãos fariam esperar. Quando sofremos, parece que nos valemos do sofrimento como de uma espécie de dispensa do exercício da caridade. Cremos, então, poder legitimamente amar-nos a nós mesmos. Pensamos que, então, devemos mais receber do que dar. Mas, na realidade, não há um tempo em que possamos, legitimamente, amar-nos a nós mesmos, pois, como diz São Paulo: “O Cristo não buscou a Sua própria satisfação”. Se há um momento onde seja permitido não amar os outros, este só pode ser o momento da morte, porque então nosso amor é devido somente a Deus. O “eu” não tem nenhuma parte no amor. Quando o amor toca o “eu”, ele torna-se um dever ou uma indignidade. É verdade que a aflição nos conduz à solidão, mas essa não será uma solidão egoísta e desprovida de caridade. Ela nos guia para longe do mundo, considerado como teatro da mundanidade, mas não para longe do mundo como campo do amor mútuo e do devotamento. Quando os Santos guardam secretas as suas mágoas, é, sem dúvida, porque o amor ama os segredos que não são conhecidos mais que por si e por seu objeto – e o amor divino é o mais tímido e mais recatado de todos os amores. Os Santos temiam que Deus, em Seus ternos ciúmes, não gostasse que outros os conhecessem; eles temiam que a simpatia dos outros despetalasse essa flor celeste que é mais difícil guardar longamente quando não é desconhecida. Podemos estar seguros, todavia, de que a caridade também era uma das razões dessa discrição. Eles não queriam espalhar a dor pelo mundo, que já a possui em demasia. Não queriam propagar o seu contágio. E, se o sofrimento oculto é mais duro de suportar que o sofrimento revelado aos outros, não é claro o quanto eram eles ambiciosos de sofrer? Tanto quanto dependesse deles, suas dores particulares não haveriam nunca de suprimir um só sorriso sobre a face da terra. O peregrino fatigado suspira ao ter de subir uma colina escarpada e inclinada, já estando prestes a desfalecer de cansaço. É então que, ao pobre afligido, curvado sob seu fardo, é preciso mostrar Jesus e Maria em Suas dores, e dizer-lhe que deve sofrer como Eles. O apostolado ativo, alegre, tranqüilo, discreto, que exercemos sobre os outros, deve ser um sinal invariável de nosso martírio.

A fuga para o Egito nos ensina também que não devemos discutir os caminhos de Deus, seja em nossos próprios sofrimentos, seja nas penas daqueles que amamos. Deus poderia poupar Maria de muitas maneiras. Quase cada circunstância de Sua segunda dor parecia agravada sem necessidade. Mesmo sem milagres, quantas consolações poderiam Lhe ser concedidas! Mas nos teríamos surpreendido se a Onipotência tivesse intervindo para fazer milagres nesse caso? Há, nas pessoas religiosas, alguma coisa muito difícil de definir, e que se parece com a irreverência [sic] sem o ser em efeito, seguramente. As pessoas que têm o hábito da prece, sem atender com muita exatidão e recolhimento às outras ações do dia, de maneira que as saturaria com o espírito de prece, incorrem, involuntariamente, numa espécie de familiaridade não inteiramente respeitosa para com Deus. Elas pensam até que, já que oram a Deus mais do que os outros, devem saber também mais sobre Ele do que os outros. No entanto, isso de modo algum é assim. A oração não é tudo na espiritualidade; ela não é, em si mesma, sequer a parte mais sólida da devoção. A oração necessita de operações posteriores para adquirir solidez. Há homens virtuosos, nos quais a oração é, realmente, a parte menos sólida da espiritualidade. Há exercícios mais interiores do que a prece, e nos quais a alma aprende mais de Deus e aprende mais vivamente. Não que essas coisas possam sobreviver à descontinuação da prece ou existir sem ela: mas não são preces. As pessoas, nas quais a oração é uma prática espiritual quase exclusiva, se estabelecem numa espécie de intimidade com Deus e, sobretudo se suas orações são orações sentimentais, elas se acostumam a pensar em Deus e nelas ao mesmo tempo, não só em Deus, e a pensar em Deus nelas de preferência a Deus em si mesmo. Os resultados desse hábito se revelam nos tempos de aflição, e particularmente nos tempos de provação interior. A submissão dessas pessoas não é senão momentânea. Elas quererão entreter Deus com as suas dores, a fim de que estas O persuadam a intervir. Seria preciso que Deus as mimasse. Elas aceitam a cruz que Deus tratou com elas de lhes impor, mas recusam-na quando vem sem terem sido consultadas. Ao menos satisfazem a natureza chorando diante de Deus, e insistindo duma maneira assaz livre e veemente que Ele lhes conceda graças novas para poderem carregar o novo fardo. Todavia, discutir os caminhos de Deus é perder a candura infantil da santidade. Os homens não têm o direito de assaltar Deus, nem mesmo com a impetuosidade de suas preces: devem, isto sim, adorá-lO. De outra forma, o encanto da submissão desaparece neles, e perdem todo direito a uma união maior com Deus. As águas da graça perdem sua profundidade; o espírito de prece torna-se fraco, titubeia, se inclina. Tudo isso porque, em suas preces, estão acostumados a serem algo diante de Deus, em vez de serem nada. É triste ver quantas pessoas piedosas estão dispostas a essa irreverência para com Deus. Não poderíamos atribuir a essa disposição o pequeno número de Santos?

Mas, aí mesmo, não deixa de haver alguma consolação. Deus conhece nossa fraqueza; pensamos que ninguém pode nos compreender melhor do que nós mesmos, mas Deus nos conhece infinitamente melhor; Ele exerce, a nosso respeito, a mais incrível indulgência e a mais inimaginável tolerância. Pior para nós, se ousamos nos desculpar a nós mesmos naquilo em que Deus não nos desculpa! Mas temos ainda outra lição para aprender. Passamos a maior parte da vida, por assim dizer, na Terra Santa, na tranqüilidade de nossa casa; vivemos, seja na cidade santa, seja nas dependências do Templo, seja no piedoso lar de Nazaré, ou perto das águas azuis das margens do tranqüilo lago de Genesaré. Mas, alguma vez, será preciso descer ao Egito, para comprar o trigo salutar da tribulação, que é o melhor mantimento de nossas almas. Às vezes temos de fugir para longe da presença dos homens ou das maquinações dos demônios. Sabemos que, em qualquer lugar onde habitemos, temos sempre a Jesus conosco. Para Ele não há nenhum tempo, nenhum lugar que seja inconveniente. Não há trevas das quais Ele não seja a luz, nem luz da qual Ele não seja o impactante esplendor. Oh! Será possível que uma verdade tão doce de se recordar seja tão esquecida?! E, no entanto, quem não a esquece, quem não a esquece sempre? Maria poderia esquecer Jesus, quando era Ela que O trazia nos braços? Por que nós O esquecemos? Por que nos afastamos de uma tal companhia? Como podemos ficar tão longe dEle, e nos voltar tão raramente para Ele? Quantos pesados fardos o pensamento de Jesus tornaria mais leves! Temos uma liberdade teimosa, que nos desagrada a nós mesmos, que deixa após si o abatimento, e que seria doce se estivesse retida cativa e se sentíssemos os braços de Jesus nos segurando. Há calafrios em nosso coração que já não nos provariam se sentíssemos Jesus repousar docemente sobre ele. Há uma solidão que faz apelo à tentação para se distrair, e que a companhia de Jesus mudaria em entretenimento irreprovável, em cântico e em alegria. É fácil afastar Jesus, se O deixamos correr atrás de nós sobre a areia e se nos esquecemos de Sua presença; mas, se O trazemos nos braços, como o fazem Maria e o amor, seria preciso muita coragem e muita maldade para depositar este nosso precioso fardo sobre a areia, e O afastar de nós voluntariamente. Ele está sempre conosco, e sempre como um Menino, em parte para que nosso fardo seja mais leve, em parte para que O amemos mais facilmente, e em parte para que a pequenez de Jesus esteja mais em proporção com a nossa. Não há mais do que um só verdadeiro símbolo da alma cristã: nas trevas e na claridade, sobre as bordas bem-amadas do Jordão ou sobre a margem do sombrio Nilo, distingue-se realmente, e para sempre, uma Senhora e Seu Menino.

Tal a segunda dor, a fuga para o Egito. Para quem esse mistério não terá sido uma devoção da infância? A quantas piedosas imaginações ele não se terá misturado em boa hora? Há sido uma norma de vida para nós: foi a poesia com a prece, uma prece cuja realidade foi aumentada por sua própria poesia. Ah! Esse mistério nos recorda o passado, também as lágrimas passadas; nos faz mesmo como que rever nossos caros defuntos. Lembranças infantis, precoces começos da preocupação com Deus, flores que hão gerado frutos da graça, um amor divino, tão terno, e distintos fatos do aprendizado sobre Jesus. Todas essas lembranças, iluminadas pela suave luz de nossa inocente infância, se reúnem em torno a esse belo mistério de Jesus e de Maria. Nos evoca aqueles tempos onde parecia que Jesus e nós éramos um só, e Sua Mãe e a nossa se confundiam indistintamente numa só forma, e falavam com uma só e a mesma voz. E depois encontramos o pôr do sol na solidão, o grande círculo que dardeja seus últimos raios no horizonte deserto, e do qual a luz se reflete nos olhos de José; encontramos Jesus dormindo no colo de Sua Mãe, o disco da lua no céu, o poço onde a água cintila, a palmeira que suspira, e a noite, que respira pesadamente sobre as areias em fogo. Mas os mortos não voltam mais. Havia, antigamente, no quadro, figuras que faltam agora. Os anos passados não voltam. Um por um, os homens e as coisas desaparecem. Só Deus não falta jamais.

(Próximo capítulo a ser traduzido: “Os três dias de ausência”)

PS.: Grifos meus.