Sermão da Primeira Dominga do Advento (1650)
PADRE ANTÓNIO VIEIRA
Pregado na Capela Real, no ano de 1650
Obras Escolhidas, vol. XII,
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1954
Tunc videbunt filium hominis venientem
in nubibus coeli cum potestate magna et
majestate.—S.Lucas, XXI.
I
Abrasado finalmente o Mundo e reduzido a um mar de cinzas tudo o que o esquecimento deste dia edificou sobre a terra... (Dou princípio a este sermão sem princípio, porque já disse Quintiliano que as grandes ações não hão mister exórdio: elas per si mesmas, ou supõem a atenção ou conciliam. Também passo em silêncio a narração portentosa dos sinais que precederão ao juízo, porque esta parte do Evangelho pertence aos que hão-de ser vivos naquele tempo, e não a nós; e o dia de hoje é muito de tratar cada um só do que Ihe pertence). Abrasado, pois, o Mundo, e consumido pela violência do fogo o que a sabedoria dos homens e o esquecimento deste dia levantou e edificou na terra; quando já não se verão nesse formoso e dilatado mapa senão umas poucas cinzas, relíquias de sua grandeza e desengano de nossa vaidade, «soará no ar uma trombeta» espantosa, não metafórica, mas verdadeira (que isso quer dizer a repetição de São Paulo: Canet enim tuba; e obedecendo aos impérios daquela voz o Céu, o Inferno, o Purgatório o Limbo, o mar, a terra, abrir-se-ão em um momento as sepulturas e aparecerão no Mundo os mortos vivos.
Parece-vos muito, que a voz de uma trombeta haja de achar obediência nos mortos? Ora reparai em outro milagre maior, e não vos parecerá grande este. Entrai pelos desertos do Egito, da Tebaida da Palestina; penetrai o mais interior e retirado daquelas soledades. Que é o que vedes? Naquela cova vereis metido um Hilarião, naquela outra um Macário, na outra mais apartada um Pacómio; aqui um Paulo, ali um Jerónimo, acolá um Arsénio; da outra parte, uma Maria Egipcíaca, uma Thais, uma Pelágia, uma Teodora. Homens, mulheres, que é isto? Quem vos trouxe a esse estado? Quem vos antecipou a morte? Quem vos amortalhou nesses cilícios? Quem vos enterrou em vida? Quem vos meteu nessas sepulturas? Quem? Responderá por todos São Jerónimo: Semper mihi videtur insonare tuba illa terribilis: surgite mortui, venite ad judicim. Sabeis quem nos vestiu destas mortalhas, sabeis quem nos fechou nestas sepulturas?__«A lembrança daquela trombeta temerosa que há-de soar no último dia: levantai-vos, mortos, e vinde a juizo». Pois se a voz desta trombeta só imaginada, (pesai bem a consequência) se a voz desta trombeta só imaginada, bastou para enterrar os vivos, que muito que, quando soar verdadeiramente, seja poderosa para desenterrar os mortos?
O meu espanto não é este. O que me espanta, e o que deve assombrar a todos, é que haja de bastar esta trombeta para ressuscitar os mortos, e que não baste para espertar os mortais! Credes, mortais, que há-de haver juízo? Uma de duas é certa: ou o não credes, ou o não tendes. Virá o dia final, e então sentirá nossa insensibilidade sem remédio o que agora pudera ser com proveito. Quanto melhor fora chorar agora e arrepender agora, como faziam aqueles e aquelas penitentes do ermo, do que chorar e arrepender depois, quando para as lágrimas não há-de haver misericórdia, nem para os arrependimentos perdão. Agora vivemos como queremos; e ainda mal, porque depois havemos de ressuscitar como não quiséramos.
II
Grandes coisas e lastimosamente grandes haverá que ver e considerar naquele acto da ressurreição universal! Mas entre todas as considerações a que me parece mais própria deste lugar e mais digna de sentimento, é esta. E quanta gente bem nascida se verá naquele dia mal ressuscitada! Entre a ressurreição natural e a sobrenatural há uma grande diferença: que na ressurreição natural cada um ressuscita como nasce; na ressurreição sobrenatural, cada um ressuscita como vive; na ressurreição natural nasce Pedro e ressuscita Pedro; na ressurreição sobrenatural nasce pescador, e ressuscita príncipe: Sedebitis in regeneratione judicantes duodecim tribus Israel. Oh que grande consolação esta para aqueles a quem não alcançou a fortuna dos altos nascimentos! Bem me parecia a mim que não podia faltar Deus a dar uma grande satisfação no dia do juízo à desigualdade com que nascem os homens, sendo todos da mesma natureza. Não se faz agravo na desigualdade do nascer, a quem se deu a eleição de ressuscitar. A ressurreição é um segundo nascimento com alvedrio.
Tanta propriedade considerou Job neste segundo nascimento, que até outro pai, outra mãe disse que tínhamos na sepultura: Putredini dixi: pater meus es tu; mater mea et soror mea, vermibus. Temos outro pai e outra mãe na sepultura em que jazem nossos ossos, porque ali somos outra vez gerados, de ali saímos outra vez nascidos. Notai agora: Statutum est hominibus semel mori: «Quis Deus que morrêssemos uma só vez», e que nascêssemos duas, porque, como o morrer bem dependia de nosso alvedrio, bastava uma só morte; mas como o nascer bem não estava na nossa mão, eram necessários dois nascimentos, para que pudéssemos emendar no segundo tudo o que nos faltasse no primeiro. Bem pudera Deus fazer que nascessem os homens todos iguais, mas ordenou sua providência, que houvesse no Mundo esta mal sofrida desigualdade, para que a mesma dor do primeiro nascimento nos excitasse à melhoria do segundo.
Homens humildes e desprezados do povo, boa nova! Se a natureza ou a fortuna foi escassa convosco no nascimento, sabei que ainda haveis de nascer outra vez, e tão honradamente como quiserdes; então emendareis a natureza, então vos vingareis da fortuna.
Que maior vingança da fortuna que as mudanças tão notáveis, que se verão naquele dia! Virão naquele dia as almas do grande e do pequeno buscar seus corpos à sepultura, e talvez à mesma Igreja: e que sucederá pela maior parte? O pequeno achará seus ossos em um adro sem pedra nem letreiro, e ressuscitará tão ilustre como as estrelas. O grande, pelo contrário, achará seu corpo embalsamado em caixas de pórfiro, aos ombros de leões, ou elefantes de mármore, com soberbos e magníficos epitáfios, e ressuscitará mais vil que a mesma vileza. Oh que metamorfose tão triste, mas que verdadeira! Vede se há-de dar Deus boa satisfação aos homens da desigualdade com que hoje nascem.
O ser bem nascido, que é uma vaidade que se acaba com a vida, é verdade que o não pôs Deus na nossa mão; mas o ser bem ressuscitado, que é aquela nobreza que há-de durar por toda a eternidade, essa deixou Deus no alvedrio de cada um. No nascimento somos filhos de nossos pais, na ressurreição seremos filhos de nossas obras. E que seja mal ressuscitado por culpa sua quem foi bem nascido sem merecimento seu! Lástima grande. Ressuscitar bem sobre haver nascido mal, é emendar a fortuna; ressuscitar mal sobre haver nascido bem, é pior que degenerar da natureza. Que ressuscite bem David sobre nascer de Jessé, grande glória do filho de um pastor; mas que ressuscite mal Absalão sobre nascer de David, grande afronta do filho de um rei! Se os homens se prezam tanto de ser bem nascidos, como fazem tão pouco caso de ser bem ressuscitados? Nenhuma cousa trazem na boca os grandes mais ordinàriamente, que as obrigações com que nasceram. E aposto eu que mui poucos sabem quais são estas obrígações. Nascer bem é obrigacão de ressuscitar melhor. Estas são as obrigações com que nascestes.
O mais bem nascido homem que houve, nem pode haver, foi Cristo; ninguém teve melhor pai, nem melhor mãe; e foi notar Santo Agostinho que, se Cristo nasceu bem, ressuscitou melhor: Gloriosior est ista ,nativitas, quam illa: illa cortus mortale genuit, ista redidit immortale. Cristo, diz Santo Agostinho, «nasceu mais nobremente no segundo nascimento que no primeiro: no primeiro nascimento nasceu mortal e passível; no segundo, que foi a sua ressurreição, nasceu impassível e imortal» Eis aqui as obrigações dos bem nascidos- nascerem a segunda vez melhor do que nasceram a primeira. Se Deus pusera na mão do homem o nascer, quem houvera, por bom que fosse, que não se fizesse muito melhor?
Pois este é o caso em que estamos. Se havemos de tornar a nascer, porque não trabalharemos muito por nascer muito honradamente? Não nascer honrado no primeiro nascimento, tem a desculpa de que «Deus nos fez» Ipse fecit nos, não nascer honrado no segundo, nenhuma desculpa tem: tem a glória de sermos nós os que nos fizemos: Ipsi nos. Que glória será naquele dia para um homem poder tomar para si em melhor sentido o elogio do grande Baptista: Inter natos mulierum non surrexit major:«Entre os nascidos das mulheres nenhum ressuscitou maior». Ser o maior dos nascidos, em quanto nascido, é pequeno louvor e de pouca dura; ser o maior dos nascidos, em quanto ressuscitado, isso é verdadeiramente o ser maior. Na nossa mão está, se o quisermos ser. Nesta vida o mais venturoso pode nascer filho do rei; na outra vida todos os que quiserem podem nascer filhos do mesmo Deus: Dedit eis potestatem filios Dei fieri. E que não sejam isto considerações, senão verdade e Fé católica! Bendito seja aquele Senhor, que é nossa ressurreição e nossa vida: Ego sum resurrectio et vita.
III
Unidas as almas aos corpos e restituidos os homens à sua antiga inteireza, os bem ressuscitados alegres, os mal ressuscitados tristes, começarão a caminhar todos para o lugar do juízo. Será aquela a vez primeira em que o género humano se verá a si mesmo, porque se ajuntarão ali os que são, os que foram, os que hão-de ser, e todos pararão no vale de Josafat. Se o dia não fora de tanto cuidado, muito seria para ver os homens grandes de todas as idades juntos. Mas vejo que me estão perguntando, como é possível que uma multidão tão excessiva como a de todo gênero humano, os homens que se continuaram desde o princíplo até agora, e os que se irão multiplicando sucessivamente até o fim do Mundo; como é possível que aquele número inumerável, aquela multidão quase infinita de homens caiba em um vale? A dúvida é boa, queira Deus que o seja a resposta. Primeiramente digo que nisto de lugares há grande engano: cabe muito mais nos lugares do que nós cuidamos.
No primeiro dia da criação, criou Deus o Céu e a Terra e os elementos, e é certo em boa filosofia, que não ficou nenhum vácuo no Mundo, tudo estava cheio. Com isto ser assim, e parecer que não havia já lugar para caber mais nada, ao terceiro dia vieram as ervas, as plantas, e as árvores; e com serem tantas em número e tão grandes, couberam todas. Ao quarto dia veio o Sol, e sendo aquele imenso planeta cento e sessenta e seis vezes maior que a Terra, coube também o Sol; vieram no mesmo dia as estrelas tantas mil, e cada uma de tantas mil léguas, e couberam as estrelas. Ao quinto dia vieram as aves ao ar, e couberam as aves; vieram os peixes ao mar, e com haver neles tantos monstros de disforme grandeza, couberam os peixes. No sexto dia vieram os animais tantos e tão grandes à Terra, e couteram os animais: finalmente veio o homem, e foi o homem o primeiro que começou a não caber; mas se não coube no Paraiso, coube fora dele. De sorte que, como dizia; nisto de lugares vai grande engano: cabe neles muito mais do que nos parece. E senão, passemos a um exemplo moral, e vejamo-lo em qualquer lugar da república. O dia é do juízo, seja o lugar de um julgador.
Antigamente em um lugar destes que é o que cabia? Cabia o doutor com os seus textos e umas poucas de postilhas, muito usadas, e por isso muito honradas. Cabia mais uma mula mal pensada, se a casa estava muito longe do Limoeiro. Cabiam os filhos honestamente vestidos; mas a pé e com a arte debaixo do braço. Cabia a mulher com poucas jóias, e as criadas, se passavam da unidade, não chegavam ao plural dos gregos. Isto é o que cabia naquele lugar antigamente; e feitas boas contas, parece que não podia caber mais. Andaram os anos, o lugar não cresceu, e tem mostrado a experiência que é muito mais sem comparação o que cabe no mesmo lugar. Primeiramente cabem umas casas, ou pacos, que os não tinham tão grandes os condes do outro tempo; cabe uma livraria de Estado, tamanha como a vaticana, e talvez com os livros tão fechados como ela os tem; cabe um coche com quatro mulas, cabem pajens, cabem lacaios, cabem escudeiros; cabe a mulher em quarto apartado, com donas, com aias e com todos os outros arremedos da fidalguia; cabem os filhos com cavalos e criados, e talvez com o jogo e com outras mocidades de preço; cabem as filhas maiores com dotes e casamentos de mais de marca, as segundas nos mosteiros com grossas tenças; cabem tapeçarias, cabem baixelas, cabem comendas, cabem benefícios, cabem moios de renda; e sobretudo cabem umas mãos muito lavadas e uma consciência muito pura, e infinitas outras cousas, que só na memória e no entendimento não cabem. Não é isto assim? Lá nessas terras por onde eu agora andei, assim é. Pois se tudo isto cabe em um lugar tão pequeno, que grande serviços fazemos nós à Fé em crer que caberemos todos no vale de Josafat? Havemos de caber todos, e se vierem outros tantos mais, para todos há de haver vale e milagre.
De mais desta razão geral que há da parte do lugar, há outras duas da parte das pessoas; uma da parte dos bons, outra da parte dos maus. Os bons poderão caber ali em muito pouco lugar, porque terão o dote da subtileza. Entre os quatro dotes gloriosos há um que se chama subtileza, o qual comunica tal propriedade aos corpos dos bem-aventurados, que todos quantos se hão-de achar no dia do juízo podem caber neste lugar onde eu estou, sem me tirarem dele. Cá no Mundo também há este dote da subtileza, mas com mui diferentes propriedades. A subtileza do Céu introduz a um sem afastar a outro; as subtilezas do Mundo, todo seu cuidado é afastar os outros para se introduzir a si. Por isso não há lugar que dure nem lugar que baste. Muito é que Jacob e Esaú não coubessem em uma casa; mais é que Lot e Abraão não coubessem em uma cidade; muito mais é que Saul e David não coubessem em um reino; mas o que excede toda a admiração é que Caim e Abel não coubessem em todo o Mundo. E porque não cabiam dois homens em tão imenso logar? Pior é a causa que o caso. Caim não cabia com Abel, porque Abel cabia com Deus. Em um homem cabendo com seu Senhor, logo os outros não cabem com ele. Alguma vez será isto soberba dos Abéis, mas ordinàriamente é inveja dos Cains. Se é certo que com a morte se acaba a inveja, fàcilmente caberemos todos no Dia do Juízo. Quereis caber todos? Não acrescenteis lugares, diminuí invejas. Este é o dote da subtileza dos bons.
Da parte dos maus também não há-de haver dificuldade em caber no vale; porque ainda que os maus são tantos, e hoje tão grandes e tão inchados, naquele dia hão-de estar todos muito pequeninos, que no tempo do Dilúvio coubessem na arca de Noé todos os animais do Mundo em suas espécies, crê-o a Fé, porque o diz a Escritura; mas não o compreende o entendimento porque o não alcança a razão. Como pode ser que coubessem em tão pequeno lugar tantos animais, tão grandes e tão feros? O leão, para quem toda a Líbia era pouca campanha; a águia, para quem todo o ar era pouca esfera; O touro, que não cabia na praça; O tigre, que não cabia no bosque; o elefante, que não cabia em si mesmo.
De mais desta razão geral que há da parte do lugar, há outras duas da parte das pessoas; uma da parte dos bons, outra da parte dos maus. Os bons poderão caber ali em muito pouco lugar, porque terão o dote da subtileza. Entre os quatro dotes gloriosos há um que se chama subtileza, o qual comunica tal propriedade aos corpos dos bem-aventurados, que todos quantos se hão-de achar no dia do juízo podem caber neste lugar onde eu estou, sem me tirarem dele. Cá no Mundo também há este dote da subtileza, mas com mui diferentes propriedades. A subtileza do Céu introduz a um sem afastar a outro; as subtilezas do Mundo, todo seu cuidado é afastar os outros para se introduzir a si. Por isso não há lugar que dure nem lugar que baste. Muito é que Jacob e Esaú não coubessem em uma casa; mais é que Lot e Abraão não coubessem em uma cidade; muito mais é que Saul e David não coubessem em um reino; mas o que excede toda a admiração é que Caim e Abel não coubessem em todo o Mundo. E porque não cabiam dois homens em tão imenso logar? Pior é a causa que o caso. Caim não cabia com Abel, porque Abel cabia com Deus. Em um homem cabendo com seu Senhor, logo os outros não cabem com ele. Alguma vez será isto soberba dos Abéis, mas ordinàriamente é inveja dos Cains. Se é certo que com a morte se acaba a inveja, fàcilmente caberemos todos no Dia do Juízo. Quereis caber todos? Não acrescenteis lugares, diminuí invejas. Este é o dote da subtileza dos bons.
Da parte dos maus também não há-de haver dificuldade em caber no vale; porque ainda que os maus são tantos, e hoje tão grandes e tão inchados, naquele dia hão-de estar todos muito pequeninos, que no tempo do Dilúvio coubessem na arca de Noé todos os animais do Mundo em suas espécies, crê-o a Fé, porque o diz a Escritura; mas não o compreende o entendimento porque o não alcança a razão. Como pode ser que coubessem em tão pequeno lugar tantos animais, tão grandes e tão feros? O leão, para quem toda a Líbia era pouca campanha; a águia, para quem todo o ar era pouca esfera; O touro, que não cabia na praça; O tigre, que não cabia no bosque; o elefante, que não cabia em si mesmo.
Que todos estes animais e tantos outros de igual fereza e grandeza coubessem juntos em uma arca tão pequena?! Sim, cabiam todos, porque, ainda que a arca era pequena, a tempestade era grande. Alagava Deus naquele tempo a terra com dilúvio universal, que foi a maior calamidade que padeceu o Mundo; e nos tempos dos grandes trabalhos e calamidades até o instinto faz encolher os animais, quanto mais a razão aos homens! Caberão os homens no vale de Josafat, assim como couberam os animais na arca de Noé: Sicut fuit in diebus Noe, sic erit in consummatione saculi. Diz o texto que só com os sinais do fim do Mundo hão-de andar todos os homens secos e mirrados: Arescentibus hominibus pra timore: Se aos homens os há de apertar tanto o receio, quanto os estreitará o juízo! Oh como nos encolheremos todos naquele dia! Oh como estarão pequenos ali os maiores gigantes! A maior maravilha do Dia do Juízo, não é haver de caber todo o Mundo em todo o vale de Josafat; a maravilha maior será que caberão então em uma pequena parte do vale muitos que não cabiam em todo o Mundo. Um Nabucodonosor, um Alexandre Magno, um Júlio César, para quem era estreita a redondeza da Terra, caberão ali em um cantinho.
Uma das cousas notáveis que diz Cristo do Dia do Juízo é que «cairão as estrelas do céu» . StelIæ cadent de cæelo. Se dermos vista aos matemáticos, hão-de achar grande dificuldade neste texto (eu Ihes darei a razão natural dele, quando m'a peçam). Todas as estrelas, menos duas, são maiores que a Terra, e algumas há que são quarenta, oitenta e cento e dez vezes maiores. Pois se as estrelas são maiores que a terra, como hão-de cair e caber cá em baixo? Hão-de caber, porque hão-de cair. Não sabeis que os levantados e os caídos não têm a mesma medida? Pois assim Ihes há-de suceder às estrelas. Agora que estão levantadas, ocupam grandes espaços do Céu; como estiverem caídas, hão-de caber em poucos palmos da Terra. Não há cousa que ocupe menor lugar que um caído. A Terra, em comparação do Céu, é um ponto; o centro, em comparação da Terra, é outro ponto; e Lúcifer, que levantado não cabia no Céu, caído cabe no centro da Terra. Ah Lucíferes do Mundo! Aqueles que levantados nas asas da prosperidade humana em nenhum lugar cabeis hoje, caídos e derrubados naquele dia, cabereis em muito pouco lugar. Estaremos todos ali encolhidos e sumidos dentro em nós mesmos cuidando na conta que havemos de dar a Deus; e quando não houvera outra razão, esta só bastava para não faltar lugar a ninguém. Dêem os homens em cuidar na conta que hão-de dar a Deus, e eu vos prometo que sobejem lugares. O que importa é que o lugar seja bom, que quanto é lugar, vale de Josafat haverá para todos.
IV
Presente enfim no vale todo o gênero humano, correr-se-ão as cortinas do Céu, e aparecerá o Supremo Juiz sobre um trono de resplandecentes nuvens, acompanhado de todas as hierarquias dos anjos, e muito mais de Sua própria Majestade. A primeira coisa que fará será mandar apartar os maus dos bons; e os ministros desta execução serão os anjos: Exibunt angeli, et separabunt malos de medio justorum. Para se entender melhor esta separação havemos de supor com o Profeta Zacarias que, antes dela, não hão-de estar os homens ali juntos confusamente; mas para maior grandeza e distinção do acto, hão-de estar repartidos todos por seus estados: Familia et familia seorsum. A uma parte hão-de estar os papas; a outra os imperadores; a outra os reis; a outra os bispos; a outra os religiosos; e assim dos demais estados do Mundo. Separados todos por esta ordem, conforme o lugar que tiveram nesta vida, então se começará a segunda separação, segundo o estado que hão-de ter na outra, e que há-de durar para sempre.
Sairão pois os anjos; vede que suspensão e que tremor será o dos corações dos homens naquela hora! Sairão os anjos e irão primeiramente ao lugar dos papas. Et separabunt (faz horror só imaginar, que em uma dignidade tão divina e em homens eleitos pelo Espírito Santo há-de haver também que separar). Et separabunt malos de medio justorum: «E separarão os pontífices maus de entre os pontífices bons». Eu bem creio que serão muito raros os que se hão-de condenar; mas haver de dar conta a Deus de todas as almas do Mundo, é um peso tão imenso que não será maravilha que, sendo homens, levasse alguns ao Profundo. Todos nesta vida se chamaram padres santos; mas o Dia do Juízo mostrará que a santidade não consiste no nome, senão nas obras. Nesta vida beatíssimos, na outra malaventurados. Oh que grande miséria!
Sairão após estes outros anjos e irão ao lugar dos bispos e arcebispos: Et separabunt malos de medio justorum. Lá vai aquele porque não deu esmolas; aquele porque enriqueceu os parentes com o património de Cristo; aquele porque, tendo uma esposa, procurou outra melhor dotada; aquele porque faltou com o pasto da doutrina a suas ovelhas; aquele porque proveu as igrejas nos que não tinham mais merecimento que o de serem seus criados; aquele porque na sua diocese morreram tantas almas sem sacramentos; aquele por não residir; aquele por simonias; aquele por irregularidades; aquele por falta de exemplo da vida, e também algum por falta da ciência necessária; empregando o tempo e o estudo em divertimentos, ou da corte e não de prelado, ou do campo e não de pastor.
Sairão após estes outros anjos e irão ao lugar dos bispos e arcebispos: Et separabunt malos de medio justorum. Lá vai aquele porque não deu esmolas; aquele porque enriqueceu os parentes com o património de Cristo; aquele porque, tendo uma esposa, procurou outra melhor dotada; aquele porque faltou com o pasto da doutrina a suas ovelhas; aquele porque proveu as igrejas nos que não tinham mais merecimento que o de serem seus criados; aquele porque na sua diocese morreram tantas almas sem sacramentos; aquele por não residir; aquele por simonias; aquele por irregularidades; aquele por falta de exemplo da vida, e também algum por falta da ciência necessária; empregando o tempo e o estudo em divertimentos, ou da corte e não de prelado, ou do campo e não de pastor.
Valha-me Deus, que confusão tão grande! Mas que alegres e que satisfeitos estarão neste passo, um São Bernardino de Sena, um São Boaventura, um São Domingos, um São Bernardo, e muitos outros varões santos e sesudos, que quando Ihes ofereceram as mitras, não quiseram subir à alteza da dignidade, porque reconheceram a do precipicio. Pelo contrário que tais levarão os corações aqueles miseráveis condenados? Quantas vezes dirão dentro em si mesmos e a vozes: Maldito seja o dia em que nos elegeram e maldito quem nos elegeu! Maldito seja o dia em que nos confirmaram, e maldito quem nos confirmou! Se um homem mal pode dar conta de sua alma, como a dará boa de tantas? Se este peso deu em terra com os maiores atlantes da Igreja, quem não temerá e fugirá dele?
Grande desconsolação é hoje para as igrejas de Portugal não terem bispos; mas pode ser que no dia do juízo seja grande consolação para os bispos de Portugal não chegarem a ter igrejas. De um sacerdote que não quis aceitar um bispado, conta São Jerónimo que, aparecendo depois da morte a um seu tio religioso que assim Iho aconselhara, lhe disse estas palavras: Gratias, Pater, tibi refero ex dissuasione episcopatus: «Dou-vos, Padre, muitas graças porque me persuadistes que não aceitasse aquele bispado»; nam scito quia nunc essem de numero damnatorum si fuissem de numero episcoporum: «Porque sabereis que hoje havia eu de ser do número dos condenados, se então fora do número dos bispos».
Oh quantos sem saberem o que fazem, debaixo do nonte lustroso de uma mitra, andam feitos pretendentes de sua condenação! A este e a muitos outros que não quiseram aceitar bispados, revelou Deus que se haviam de condenar, se chegassem a ser bispos. E quem vos disse a vós que estáveis privilegiados desta condicional? De chegardes a ser bispo, pode ser que não dependa a salvação de outras almas; e de não chegardes a o ser, pode ser que dependa a salvação da vossa. O mais seguro é encolher os ombros e deixar governar a Deus.
Do lugar dos bispos passarão os anjos ao lugar dos religiosos; e entrando naquela multidão infinita das ordens regulares, sem embargo de resplandecerem nelas como sóis as maiores santidades do Mundo, contudo haverá muito que separar; começarão por Judas: Et separabunt malos de medio justorum. Não o digo por me tocar; mas por todas as razões me parece que será este o mais triste espectáculo do Dia do Juízo. Que vão os homens ao Inferno pelo caminho do Inferno, desgraça é, mas não é maravilha; porém ir ao Inferno pelo caminho do Céu, é a maior de todas as misérias Que o rico avarento, vestindo púrpuras e holandas e gastando a vida em banquetes, seja sepultado nos fogos eternos, por seu preço leva o Inferno: Recepisti bona in vita tua; mas que o religioso, amortalhado em um saco, com os seus jejuns, com as suas penitencias, com a sua clausura, com a sua vontade sujeita a outrem, por ter os olhos nas migalhas dos do Mundo, como Lázaro, vá parar nas mesmas penas! Brava desaventura!
O secular distraído, que lhe não veio nunca à memória a conta que havia de dar a Deus, que a não dê boa e se perca, não podia parar noutra cousa o seu descuido; mas que o mesmo religioso que por estes púlpitos vos vem pregar o juízo, possa ser e haja de ser um dos condenados daquele dia! Triste estado é o nosso, se nos não salvamos. Mas de aqui podeis vós também inferir que se isto passa no porto, que será no pego! Se nós (falo dos melhores que eu) se nós, sobre tanto meditar na outra vida, nos perdemos, o vosso descuido e o vosso esquecimento, onde vos há-de levar? Se as Cartuxas, se os Buçacos, se as Arrábidas hão-de tremer no Dia do Juízo, as cortes e vossa corte em que estado se achará?
Em todos os estados da corte haverá mais que separar que em nenhuns outros. Mas deixando por agora os demais, em que cada um se pode pregar a si mesmo: chegarão finalmente os anjos ao lugar dos reis. Não se verão ali sitiais, nem outros aparatos de majestade, mas todos sós, e acompanhados sòmente de suas obras, estarão em pé, como réus. Conhecer-se-ão distintamente quais foram os reis de cada reino: quais os de Hungria, quais os de França, quais os de Inglaterra, quais os de Castela, quais os de Portugal. E desta maneira irão os anjos tirando de cada coroa aqueles que foram maus reis: Et separabun malos de medio justorum. Espero eu em Deus que neste dia há-de ser o nosso reino singular entre os do Mundo, e que só dele não hão-de achar os anjos que apartar. Se eu estudara só pelo meu desejo e pela minha esperança, assim o havia de crer; mas quando leio as Escrituras, acho muito que temer e muito que duvidar. Dos reis, como dos outros homens, nós não sabemos quais se salvam nem quais se perdem. Só uma nação houve antigamente, da qual nos consta do texto sagrado quantos foram os reis que se salvaram e quantos os que se perderam. Tremo de o dizer, mas é bem que se saiba distintamente: No povo hebreu, em tempo que era povo de Deus, houve tres reinos: o primeiro foi o reino das Doze Tribos; teve três reis e durou cento e vinte anos; o segundo foi o reino de Judá; teve vinte reis e durou trezentos e noventa e quatro anos o terceiro foi o reino de Israel; teve dezenove reis, e durou duzentos e quarenta e dois anos. Saibamos agora quantos reis foram os que se salvaram e quantos os que se perderam nestes reinos.
No reino das Doze Tribos, de três reis perdeu-se Saul, salvou-se David, de Salomão não se sabe. No reino de Judá, de vinte reis salvaram-se cinco, perderam-se treze, de dois é incerto. No reino de Israel, nem estas tão pequenas excepções teve a desgraça; foram os reis dezenove e todos os dezenove se condenaram. No Dia do Juízo não se poderá cumprir neste reino o Separabunt malos de medio justorum: chegarão os anjos ali não terão que separar, levarão a todos. Oh desgraçados ceptrós! Oh desgraçadas coroas! Oh desgraçados pais! Oh desgraçada descendência! Desde Jeroboão a Oseas dezenove reis coroados: dezenove reis condenados.
Pois por certo que não foi por falta de doutrina nem de auxílios: tinham estes reis conhecimento do verdadeiro Deus; tinham um povo, que era o povo escolhido de Deus, tinham templo, tinham sacerdotes, tinham sacrifícios, viam milagres, ouviam profecias, recebiam favores do Céu, e quando era necessário, não lhes faltavam também castigos; e nada disto bastou. Muito arriscada coisa deve ser o reinar, pois em tantos tempos e em tantos reis, se salvam, ou tão poucos, ou nenhum.
Julguem lá agora os príncipes quais serão as causas disto, que Deus não é injusto. Examinem mais escrupulosamente suas consciências, e olhem a quem as comunicam; considerem muito de vagar as suas obrigações, que são muito mais estreitas do que ordinàriamente cuidam; inquiram muito de propósito sobre os danos públicos e particulares de seus vassalos, e vejam, pondo de parte todo o afecto, se suas orações ou suas omissões podem ser a causa; persuadam-se que hão-de aparecer como qualquer outro homem diante do tribunal da Justiça Divina, onde se Ihes há-de pedir rigorosíssima conta, dia por dia e hora por hora, de quanto fizeram e de quanto o deixaram de fazer. Cuide finalmente e pese, convém, cada um dos príncipes, quão grande desaventura e confusão sua será naquele cadafalso universal do Dia do Juízo, se depois de tanta majestade e adoração nesta vida, vier um anjo e o tomar pela mão, e o tirar para sempre do número dos que se hão-de salvar: Separabunt malos de medio justorum.
Por este modo se irá continuando a separação dos maus em todos os estados do Mundo; e naqueles em que por razão do sangue e do amor é mais natural a união, será mais lastimoso o apartamento. Verdadeiramente, todas as outras circunstâncias daquele ato terão muito de rigorosas, esta parecerá cruel. Apartar-se-ão ali os pais dos filhos: irá para uma parte Abraão e para outra Ismael; apartar-se-ão os irmãos dos irmãos: irá para uma parte Jacob e para outra Esaú; apartar-se-ão as mulheres dos maridos: irá para uma parte Ester e para outra Assuero; apartar-se-ão os amigos dos amigos: (seja o exemplo incerto, já que há tão poucos de verdadeira amizade) irá para uma parte Jónatas e para outra David. Assim se apartarão para nunca mais os que se amam nesta vida e os que tinham tantas razões para se amarem também na outra.
Para nunca mais! Oh! que lastimosa palavra! Se apartar-se de uma terra para outra terra, com esperança de se tornar a ver, causa tanta dor nos que se amam; se apartar-se desta vida para a outra vida, com probabilidade de se verem eternamente, é um transe tão rigoroso; que dor será apartarem-se para nunca mais, com certeza de se não verem em quanto Deus for Deus, aqueles a que a natureza e o amor tinham feito quase a mesma coisa! Certo que tem assaz duro coração quem só pelo não meter nestes apertos não ama a Deus com todo ele.
VI
Feita a separação dos maus e bons, e sossegados os prantos daquele último apartamento que serão tão grandes como a multidão e tão lastimosos como a causa, posto todo o juízo em silêncio e suspensão, começará a se fazer o exame das culpas. Neste passo me havia eu de descer do púlpito, e subir a ele... Quem? Não um anjo, não um profeta, não um apóstolo, mas algum dos condenados do Inferno, como queria o rico avarento que viesse pregar a seus irmãos. Delicta quis intelligit? Quem há neste Mundo que entenda nem conheça os pecados? Isto dizia David, aquele Profeta tão alumiado do Céu. Só um condenado do Inferno, só quem foi julgado por Deus, só quem assistiu ao rigor daquele tribunal tremendo, só quem viu o exame inexcrutável com que ali se penetram e se apuram as consciências, só quem viu a anatomia tão miúda, tão delicada, tão exquisita, que ali se faz do menor pecado e da menor circunstância, só quem viu a sutileza não imaginada com que ali se pesam átomos, se medem instantes, se partem indivisíveis; só este, e nem ainda este bastantemente, poderá declarar o que naquele dia há-de ser.
Muitas vezes me resolvi a deixar totalmente este ponto, contentando-me com confessar que não sei nem me atrevo a falar nele; porque ninguém possa dizer no Dia do Juízo que eu o enganei. Mas como a matéria é tão importante e a principal obrigação deste dia, já que se não pode dizer tudo, nem parte, ao menos quisera que Deus me ajudasse a vos meter hoje na alma dois escrúpulos, que me parecem os mais necessários ao auditório a quem falo: pecados de omissão e pecados de consequência. Estes são os dois escrúpulos que vos quisera hoje advertir e intimar da parte de Deus.
Sabei, Cristãos, sabei príncipes, sabei ministros, que se vos há-de pedir estreita conta do que fizestes, mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão-de condenar muitos; pelo que não fizeram, todos. As culpas por que se condenam os réus são as que se contêm nos relatórios das sentenças: lede agora o relatório da sentença do Dia do Juízo e notai o que diz: Discedite a me, maledicti in ignem æternum: «Ide, malditos, ao fogo eterno».—E porque?—Non dedistis mihi manducare non dedistis mihi potum, non collegistis me, non cooperuistis me, non visitastis me. Cinco cargos, e todos omissões: «porque não destes de comer, porque não destes de beber, porque não recolhestes, porque não visitastes, porque não vestistes». Em suma, que os pecados que ùltimamente hão-de levar os condenados ao Inferno, são os pecados de omissão.
Não se espantem os doutos de uma proposiçao tão universal como esta; porque assim é verdadeira em todo o rigor da teologia. O último pecado e a última disposição por que se hão-de condenar os precitos, é a impenitência final; e a impenitência final é pecado de omissão. Vede que coisas são omissões, e não vos espantareis do que digo. Por uma omissão perde-se uma inspiração, por uma inspiração perde-se um auxílio, por um auxílio perde-se uma contrição, por uma contricão perde-se uma alma; dai conta a Deus de uma alma, por uma omissão.
Desçamos a exemplos mais públicos. Por uma omissão perde-se uma maré, por uma maré perde-se urna viagem, por uma viagem perde-se uma armada, por uma armada perde-se um estado. Dai conta a Deus de uma Índia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. Por uma omissão perde-se um aviso, por um aviso perde-se uma ocasião, por uma ocasião perde-se um negócio, por um negócio perde-se um reino. Dai conta a Deus de tantas casas, dai conta a Deus de tantas vidas, dai conta a Deus de tantas fazendas, dai conta a Deus de tantas honras, por uma omissão. Oh que arriscada salvação! Oh que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros. Está o príncipe, está o ministro divertido, sem fazer má obra, sem dizer má palavra, sem ter mau nem bom pensamento; e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omissão, está cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do Mundo em muitos anos. O salteador na charneca com um tiro mata um homem; o príncipe e o ministro com uma omissão, mata de um golpe uma monarquia. Estes são os escrúpulos de que se não faz nenhum escrúpulo; por isso mesmo são as omissões os mais perigosos de todos os pecados.
A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete e com mais dificuldade se conhece; e o que fàcilmente se comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não fazendo; e pecado que nunca é má obra, e algumas vezes pode ser obra boa, ainda os muito escrupulosos vivem muito arriscados em este pecado. Estava o Profeta Elias em um deserto metido em uma cova, aparece-lhe Deus e diz-lhe: Quid hic agis, Elia? « E bem Elias, vós aqui? » — Aqui, Senhor! Pois aonde estou eu? Não estou metido em uma cova? Não estou retirado do Mundo? Não estou sepultado em vida? Quid hic agis? E que faço eu? Não me estou disciplinando, não estou jejuando, não estou contemplando e orando a Deus?—Assim era. Pois se Elias estava fazendo penitência em uma cova, como o repreende Deus e lho estranha tanto? Porque ainda que eram boas obras as que fazia, eram melhores as que deixava de fazer. O que fazia era devoção, o que deixava de fazer era obrigação. Tinha Deus feito a Elias profeta do povo de Israel, tinha-lhe dado ofício público; e estar Elias no deserto quando havia de andar na corte; estar metido em uma cova, quando havia de aparecer na praça; estar contemplando no Céu, quando havia de estar emendando a terra, era muito grande culpa.
A razão é fácil, porque no que fazia Elias salvava a sua alma; no que deixava de fazer perdiam-se muitas. Não digo bem: no que fazia Elias, parecia que salvava a sua alma; no que deixava de fazer, perdia a sua e as dos outros: as dos outros, porque faltava à doutrina; a sua, porque faltava à obrigação. É muito bom exemplo este para a corte e para os ministros que tomam a ocupação por escusa da salvação. Dizem que não tratam de suas almas, porque se não podem retirar. Retirado estava Elias e perdia se; mandam-no vir para a corte para que se salve. Não deixe o ministro de fazer o que tem de obrigação, e pode ser que se salve melhor em um conselho, que em um deserto. Tome por disciplina a diligência, tome por cilício o zelo, tome por contempla,cão o cuidado e tome por abstinência o não tomar, e ele se salvará.
Mas porque se perdem tantos? Os menos maus perdem-se pelo que fazem, que estes são os menos maus; os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, que estes são os piores: por omissões, por negligências, por descuidos, por desatenções, por divertimentos, por vagares, por dilações, por eternidades. Eis aqui um pecado de que não fazem escrúpulo os ministros, e um pecado por que se perdem muitos. Mas percam-se eles embora, já que assim o querem; o mal é que se perdem a si e perdem a todos, mas de todos hão-de dar conta a Deus.
Uma das cousas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram no mês que vem o que se havia de fazer no passado; porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje; porque fizeram depois, o que se havia de fazer agora; porque fizeram logo, o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão-de ser as consciências dos que governam, em matérias de momento. O ministro que não faz grande escrúpulo de momentos não anda em bom estado: a fazenda pode-se restituir; a fama, ainda que mal, também se restitui, o tempo não tem restituição alguma.
E a que mandamento pertencem estes pecados do tempo? Pertencem ao sétimo; porque ao sétimo mandamento pertencem os danos que se fazem ao próximo e à república, e a uma república não se lhe pode fazer maior dano que furtar-lhe instantes. Ah omissões, ah vagares, ladrões do tempo! Não haverá uma justiça exemplar para estes ladrões? Não haverá quem ponha um libelo contra os vagares? Não haverá quem enforque estes ladrões do tempo, estes salteadores da ocasião, estes destruidores da república? Mas porque na Ordenação não há pena contra estes delinquentes e porque eles às vezes se acolhem a sagrado, por isso a sentença do Dia do Juízo há-de cair principalmente sobre as omissões.
Muitas vezes me resolvi a deixar totalmente este ponto, contentando-me com confessar que não sei nem me atrevo a falar nele; porque ninguém possa dizer no Dia do Juízo que eu o enganei. Mas como a matéria é tão importante e a principal obrigação deste dia, já que se não pode dizer tudo, nem parte, ao menos quisera que Deus me ajudasse a vos meter hoje na alma dois escrúpulos, que me parecem os mais necessários ao auditório a quem falo: pecados de omissão e pecados de consequência. Estes são os dois escrúpulos que vos quisera hoje advertir e intimar da parte de Deus.
Sabei, Cristãos, sabei príncipes, sabei ministros, que se vos há-de pedir estreita conta do que fizestes, mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão-de condenar muitos; pelo que não fizeram, todos. As culpas por que se condenam os réus são as que se contêm nos relatórios das sentenças: lede agora o relatório da sentença do Dia do Juízo e notai o que diz: Discedite a me, maledicti in ignem æternum: «Ide, malditos, ao fogo eterno».—E porque?—Non dedistis mihi manducare non dedistis mihi potum, non collegistis me, non cooperuistis me, non visitastis me. Cinco cargos, e todos omissões: «porque não destes de comer, porque não destes de beber, porque não recolhestes, porque não visitastes, porque não vestistes». Em suma, que os pecados que ùltimamente hão-de levar os condenados ao Inferno, são os pecados de omissão.
Não se espantem os doutos de uma proposiçao tão universal como esta; porque assim é verdadeira em todo o rigor da teologia. O último pecado e a última disposição por que se hão-de condenar os precitos, é a impenitência final; e a impenitência final é pecado de omissão. Vede que coisas são omissões, e não vos espantareis do que digo. Por uma omissão perde-se uma inspiração, por uma inspiração perde-se um auxílio, por um auxílio perde-se uma contrição, por uma contricão perde-se uma alma; dai conta a Deus de uma alma, por uma omissão.
Desçamos a exemplos mais públicos. Por uma omissão perde-se uma maré, por uma maré perde-se urna viagem, por uma viagem perde-se uma armada, por uma armada perde-se um estado. Dai conta a Deus de uma Índia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. Por uma omissão perde-se um aviso, por um aviso perde-se uma ocasião, por uma ocasião perde-se um negócio, por um negócio perde-se um reino. Dai conta a Deus de tantas casas, dai conta a Deus de tantas vidas, dai conta a Deus de tantas fazendas, dai conta a Deus de tantas honras, por uma omissão. Oh que arriscada salvação! Oh que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros. Está o príncipe, está o ministro divertido, sem fazer má obra, sem dizer má palavra, sem ter mau nem bom pensamento; e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omissão, está cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do Mundo em muitos anos. O salteador na charneca com um tiro mata um homem; o príncipe e o ministro com uma omissão, mata de um golpe uma monarquia. Estes são os escrúpulos de que se não faz nenhum escrúpulo; por isso mesmo são as omissões os mais perigosos de todos os pecados.
A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete e com mais dificuldade se conhece; e o que fàcilmente se comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não fazendo; e pecado que nunca é má obra, e algumas vezes pode ser obra boa, ainda os muito escrupulosos vivem muito arriscados em este pecado. Estava o Profeta Elias em um deserto metido em uma cova, aparece-lhe Deus e diz-lhe: Quid hic agis, Elia? « E bem Elias, vós aqui? » — Aqui, Senhor! Pois aonde estou eu? Não estou metido em uma cova? Não estou retirado do Mundo? Não estou sepultado em vida? Quid hic agis? E que faço eu? Não me estou disciplinando, não estou jejuando, não estou contemplando e orando a Deus?—Assim era. Pois se Elias estava fazendo penitência em uma cova, como o repreende Deus e lho estranha tanto? Porque ainda que eram boas obras as que fazia, eram melhores as que deixava de fazer. O que fazia era devoção, o que deixava de fazer era obrigação. Tinha Deus feito a Elias profeta do povo de Israel, tinha-lhe dado ofício público; e estar Elias no deserto quando havia de andar na corte; estar metido em uma cova, quando havia de aparecer na praça; estar contemplando no Céu, quando havia de estar emendando a terra, era muito grande culpa.
A razão é fácil, porque no que fazia Elias salvava a sua alma; no que deixava de fazer perdiam-se muitas. Não digo bem: no que fazia Elias, parecia que salvava a sua alma; no que deixava de fazer, perdia a sua e as dos outros: as dos outros, porque faltava à doutrina; a sua, porque faltava à obrigação. É muito bom exemplo este para a corte e para os ministros que tomam a ocupação por escusa da salvação. Dizem que não tratam de suas almas, porque se não podem retirar. Retirado estava Elias e perdia se; mandam-no vir para a corte para que se salve. Não deixe o ministro de fazer o que tem de obrigação, e pode ser que se salve melhor em um conselho, que em um deserto. Tome por disciplina a diligência, tome por cilício o zelo, tome por contempla,cão o cuidado e tome por abstinência o não tomar, e ele se salvará.
Mas porque se perdem tantos? Os menos maus perdem-se pelo que fazem, que estes são os menos maus; os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, que estes são os piores: por omissões, por negligências, por descuidos, por desatenções, por divertimentos, por vagares, por dilações, por eternidades. Eis aqui um pecado de que não fazem escrúpulo os ministros, e um pecado por que se perdem muitos. Mas percam-se eles embora, já que assim o querem; o mal é que se perdem a si e perdem a todos, mas de todos hão-de dar conta a Deus.
Uma das cousas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram no mês que vem o que se havia de fazer no passado; porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje; porque fizeram depois, o que se havia de fazer agora; porque fizeram logo, o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão-de ser as consciências dos que governam, em matérias de momento. O ministro que não faz grande escrúpulo de momentos não anda em bom estado: a fazenda pode-se restituir; a fama, ainda que mal, também se restitui, o tempo não tem restituição alguma.
E a que mandamento pertencem estes pecados do tempo? Pertencem ao sétimo; porque ao sétimo mandamento pertencem os danos que se fazem ao próximo e à república, e a uma república não se lhe pode fazer maior dano que furtar-lhe instantes. Ah omissões, ah vagares, ladrões do tempo! Não haverá uma justiça exemplar para estes ladrões? Não haverá quem ponha um libelo contra os vagares? Não haverá quem enforque estes ladrões do tempo, estes salteadores da ocasião, estes destruidores da república? Mas porque na Ordenação não há pena contra estes delinquentes e porque eles às vezes se acolhem a sagrado, por isso a sentença do Dia do Juízo há-de cair principalmente sobre as omissões.
VII
Pecados de consequência é o segundo escrúpulo. Há uns pecados que acabam em si mesmos; ha outros que, depois de acabados, ainda duram em suas consequências. Dizia Job a Deus: Vestigia pedum meorum considerasti: «Considerastes, Senhor, as pegadas de meus pés». Não diz que Ihe considerou os passos, senão as pegadas; porque os passos passam, as pegadas ficam. O que fica dos pecados, é o que Deus mais particularmente examina. Não só se nos há-de pedir conta dos passos, senão das pegadas. Não só se nos há-de pedir conta dos pecados, senão das consequências. Oh que terrível conta será esta! Converteu Cristo, Senhor nosso, a Zaqueu, que era um mercante rico, e as resoluções de sua conversão foram estas: Ecce dimidium bonorum meorum do pauperibus et si quid aliquem defraudavi, reddo quadruplum: «Senhor, eu dou a metade de meus bens aos pobres, e da outra metade pagarei quatro vezes em dobro tudo o que houver tomado».
Aqui reparo: as leis da justa restituição mandam que se pague o alheio em tanta quantidade como se tomou. Pois porque quer Zaqueu que da sua fazenda se paguem e se acrescentem três tantos mais: Et si quid aliquem defraudavi reddo quadruplun? Se para a restituição basta uma parte, as outras três a que fim se dão? Eu o direi: dá-se uma parte para satisfação do pecado, as outras três para satisfação das consequências. Entrou Zaqueu em exame escrupuloso de sua consciência sobre o que tinha roubado, e fez estas contas: Se eu não roubara a Fulano, tivera ele a sua fazenda; se a tivera, não perdera o que perdeu, aquirira o que não aquiriu, não padecera o que padeceu. Ah sim! Pois para que a minha satisfação seja igual à minha culpa, dê-se a cada um quatro vezes tanto como lhe eu houver defraudado. Com a primeira parte se pagará o que Ihe tomei, com a segunda o que perdeu, com a terceira o que não aquiriu, com a quarta o que padeceu.
Eis aqui o que fez Zaqueu. E que se seguiu daqui? Hodie salus huic domui facta est.: «hoje se pôs em estado de salvação esta casa». E se a casa de Zaqueu, para se pôr em estado de salvação, paga três vezes mais do que tomou, em que estado de salvação estarão tantas casas de Portugal, onde se deve tanto, e se gasta tanto, e se esperdiça tanto, e nenhuma coisa se paga? Ora o caso é que muita gente deve de se condenar. Porque na vida poucos pagam, na hora da morte os mais escrupulosos mandam pagar o capital; das consequências, nem na vida, nem na morte há quem faça caso.
E se isto passa na justiça comutativa, onde enfim há número, há peso e há medida; que será na distributiva e na vendicativa? Se isto lhe sucede à justiça na mão das balanças, que será na mão da espada? Quais serão as consequências de um voto injusto em um tribunal? Quais serão as consequências de um voto apaixonado em um conselho? Ajude-me Deus a saber-vo-las representar, pois é matéria tão oculta e de tanta importância.
Consulta-se em um conselho o lugar de um vice-rei, de um general, de um governador, de um prelado, de um ministro superior da fazenda ou justiça. E que sucede? Vota o conselheiro no parente, porque é parente; vota no amigo, porque é amigo; vota no recomendado, porque é recomendado; os mais dignos e os mais beneméritos, porque não têm amizade, nem parentesco, nem valia, ficam de fora. Acontece isto muitas vezes? Queira Deus que alguma vez deixe de ser assim. Agora quisera eu perguntar ao conselheiro que deu este voto e que o assinou, se lhe remordeu a consciência ou se soube o que fazia? Homem cego, homem precipitado, sabes o que fazes? Sabes o que firmas? Sabes que, ainda que o pecado que cometeste contra o juramento de teu cargo seja um só, as consequências que dele se seguem são infinitas e maiores que o mesmo pecado? Sabes que com essa pena te escreves réu de todos os males que fizer, que consentir, e que não estorvar esse homem indigno por quem votaste, e de todos os que deles se seguirem até o fim do Mundo? Oh grande miséria! Miserável é a república onde há tais votos, miseráveis são os povos onde se mandam ministros feitos por tais eleições; mas os conselheiros que neles votaram são os mais miseráveis de todos: os outros levam o proveito, eles ficam com os encargos. Ide comigo.
Se o que elegestes furta (não o ponhamos em condicional, porque claro está que há-de furtar) furta o que elegestes, e furta por si e por todos os seus, como costumam os semelhantes; e Deus há-vos de pedir a conta a vós, porque o vosso voto foi causa de todos aqueles roubos. Prove o que elegestes os ofícios de paz e guerra, nos que têm mais que peitar, deixando os que merecem e os que serviram; e vós haveis de dar a conta a Deus; porque o vosso voto foi causa de todas aquelas injustiças. Oprime o que elegestes os pobres choram as viúvas, padecem os órfãos, clamam os inocentes; e Deus vos há-de condenar a vós, porque o vosso voto foi causa de todas aquelas opressões, de todas aquelas tiranias. Matam-se os homens no governo dos que elegestes, arruínam-se as casas, desonram-se as famílias, vive-se como em Turquia; e vós o haveis de ir pagar ao Inferno, porque o vosso voto foi causa de todos aqueles homicídios, de todas aquelas afrontas, de todos aqueles escandalos. Quebram-se as imunidades da Igreja, maltratam-se os ministros do Evangelho, impedem-se as conversões da Gentilidade para a propagacão da Fé; e vós haveis de penar por isso eternamente, porque o vosso voto foi causa de todos aqueles sacrilégios, de todas aquelas impiedades e da perda irreparável de tantos milhares de almas. Estas são as consequências da parte do indigno que elegestes.
E da parte dos beneméritos que deixastes de fora, quais serão? Ficarem os mesmos beneméritos sem o prémio devido a seus serviços; ficarem seus filhos e netos sem remédio e sem honra, depois de seus pais e avós lho terem ganhado com o sangue, porque vós lh'a tirastes; ficar a república mal servida, os bons escandalizados, os príncipes murmurados, o governo odiado, o mesmo conselho em que assistis ou presidis, infamado, o merecimento sem esperança, o prémio sem justi,ca, o descontentamento com culpa, Deus ofendido, o Rei enganado, a Pátria destruída.
São pesadas e pesadíssimas consequências estas? Pois todas elas nascem daquele voto ou daquela eleição de que vós porventura ficastes sem escrúpulo e de que recebestes as graças (e talvez a propina) com muita alegria. Dir-me-eis que não advertistes tais coisas. Boa escusa para um conselheiro sábio! Se o não advertistes, pecastes, porque o devêreis advertir. Tomara poder confirmar tudo o que tenho dito em particular com exemplos das Escrituras; mas bastara por todos um, que em matérias de pecados de consequência é verdadeiramente formidável.
Matou Caim a Abel, e diz a Escritura, conforme o texto onginal: Vox sanguinum fratris tui clamantium ad me: «Caim, a voz dos sangues de teu irmão Abel está bradando a mim». Notável dizer! O sangue de Abel era um, como era um o mesmo Abel morto. Pois se Abel morto e o sangue de Abel derramado era um, como diz Deus que clamaram contra Caim muitos sangues? Vox sanguinum? Declarou o mistério o Parafraste caldaico temerosamente: Vox sanguinum generationum, quæ futuræ erant de fatre tuo, clamat ad me: Se Caim não matara a Abel, haviam de nascer de Abel quase tantas outras gerações como nasceram de Adão, com que dobradamente se propagasse o género humano; e o sangue ou sangues de todos estes homens que haviam de nascer de Abel, e não nasceram, eram os que clamaram a Deus e pediam vingança contra Caim; porque, matando Caim e arrancando da terra a árvore de que eles haviam de nascer, o mesmo dano lhes fez que se os matara. De sorte que Caim parecia homicida de um só homem, e era homicida de um género humano; o pecado era um, as consequências infinitas.
Pois se Deus castiga nos pecados até as consequências possíveis; e os possíveis hão-de aparecer e ressuscitar no dia do juízo contra vós, não porque foram, nem porque deixaram de ser, senão porque haviam de ser; se os possíveis têm sangue e vozes que clamam ao Céu, que clamores serão os do verdadeiro sangue derramado de verdadeiras veias? Que vozes serão, as de verdadeiras lágrimas, choradas de verdadeiros olhos? Que gemidos serão os de verdadéira dor, saldos de verdadeiros corações? Que serão as viudezas, as orfandades, os desamparos? Que serão as opressões, as destruições, as tiranias? E que serão as consequências de tudo isto, multiplicadas em tantas pessoas, continuada em tantas idades e propagadas em tantas descendências, ou futuras ou possíveis, até o fim do mundo! Há quem faça escrúpulo disto?
E se isto passa na justiça comutativa, onde enfim há número, há peso e há medida; que será na distributiva e na vendicativa? Se isto lhe sucede à justiça na mão das balanças, que será na mão da espada? Quais serão as consequências de um voto injusto em um tribunal? Quais serão as consequências de um voto apaixonado em um conselho? Ajude-me Deus a saber-vo-las representar, pois é matéria tão oculta e de tanta importância.
Consulta-se em um conselho o lugar de um vice-rei, de um general, de um governador, de um prelado, de um ministro superior da fazenda ou justiça. E que sucede? Vota o conselheiro no parente, porque é parente; vota no amigo, porque é amigo; vota no recomendado, porque é recomendado; os mais dignos e os mais beneméritos, porque não têm amizade, nem parentesco, nem valia, ficam de fora. Acontece isto muitas vezes? Queira Deus que alguma vez deixe de ser assim. Agora quisera eu perguntar ao conselheiro que deu este voto e que o assinou, se lhe remordeu a consciência ou se soube o que fazia? Homem cego, homem precipitado, sabes o que fazes? Sabes o que firmas? Sabes que, ainda que o pecado que cometeste contra o juramento de teu cargo seja um só, as consequências que dele se seguem são infinitas e maiores que o mesmo pecado? Sabes que com essa pena te escreves réu de todos os males que fizer, que consentir, e que não estorvar esse homem indigno por quem votaste, e de todos os que deles se seguirem até o fim do Mundo? Oh grande miséria! Miserável é a república onde há tais votos, miseráveis são os povos onde se mandam ministros feitos por tais eleições; mas os conselheiros que neles votaram são os mais miseráveis de todos: os outros levam o proveito, eles ficam com os encargos. Ide comigo.
Se o que elegestes furta (não o ponhamos em condicional, porque claro está que há-de furtar) furta o que elegestes, e furta por si e por todos os seus, como costumam os semelhantes; e Deus há-vos de pedir a conta a vós, porque o vosso voto foi causa de todos aqueles roubos. Prove o que elegestes os ofícios de paz e guerra, nos que têm mais que peitar, deixando os que merecem e os que serviram; e vós haveis de dar a conta a Deus; porque o vosso voto foi causa de todas aquelas injustiças. Oprime o que elegestes os pobres choram as viúvas, padecem os órfãos, clamam os inocentes; e Deus vos há-de condenar a vós, porque o vosso voto foi causa de todas aquelas opressões, de todas aquelas tiranias. Matam-se os homens no governo dos que elegestes, arruínam-se as casas, desonram-se as famílias, vive-se como em Turquia; e vós o haveis de ir pagar ao Inferno, porque o vosso voto foi causa de todos aqueles homicídios, de todas aquelas afrontas, de todos aqueles escandalos. Quebram-se as imunidades da Igreja, maltratam-se os ministros do Evangelho, impedem-se as conversões da Gentilidade para a propagacão da Fé; e vós haveis de penar por isso eternamente, porque o vosso voto foi causa de todos aqueles sacrilégios, de todas aquelas impiedades e da perda irreparável de tantos milhares de almas. Estas são as consequências da parte do indigno que elegestes.
E da parte dos beneméritos que deixastes de fora, quais serão? Ficarem os mesmos beneméritos sem o prémio devido a seus serviços; ficarem seus filhos e netos sem remédio e sem honra, depois de seus pais e avós lho terem ganhado com o sangue, porque vós lh'a tirastes; ficar a república mal servida, os bons escandalizados, os príncipes murmurados, o governo odiado, o mesmo conselho em que assistis ou presidis, infamado, o merecimento sem esperança, o prémio sem justi,ca, o descontentamento com culpa, Deus ofendido, o Rei enganado, a Pátria destruída.
São pesadas e pesadíssimas consequências estas? Pois todas elas nascem daquele voto ou daquela eleição de que vós porventura ficastes sem escrúpulo e de que recebestes as graças (e talvez a propina) com muita alegria. Dir-me-eis que não advertistes tais coisas. Boa escusa para um conselheiro sábio! Se o não advertistes, pecastes, porque o devêreis advertir. Tomara poder confirmar tudo o que tenho dito em particular com exemplos das Escrituras; mas bastara por todos um, que em matérias de pecados de consequência é verdadeiramente formidável.
Matou Caim a Abel, e diz a Escritura, conforme o texto onginal: Vox sanguinum fratris tui clamantium ad me: «Caim, a voz dos sangues de teu irmão Abel está bradando a mim». Notável dizer! O sangue de Abel era um, como era um o mesmo Abel morto. Pois se Abel morto e o sangue de Abel derramado era um, como diz Deus que clamaram contra Caim muitos sangues? Vox sanguinum? Declarou o mistério o Parafraste caldaico temerosamente: Vox sanguinum generationum, quæ futuræ erant de fatre tuo, clamat ad me: Se Caim não matara a Abel, haviam de nascer de Abel quase tantas outras gerações como nasceram de Adão, com que dobradamente se propagasse o género humano; e o sangue ou sangues de todos estes homens que haviam de nascer de Abel, e não nasceram, eram os que clamaram a Deus e pediam vingança contra Caim; porque, matando Caim e arrancando da terra a árvore de que eles haviam de nascer, o mesmo dano lhes fez que se os matara. De sorte que Caim parecia homicida de um só homem, e era homicida de um género humano; o pecado era um, as consequências infinitas.
Pois se Deus castiga nos pecados até as consequências possíveis; e os possíveis hão-de aparecer e ressuscitar no dia do juízo contra vós, não porque foram, nem porque deixaram de ser, senão porque haviam de ser; se os possíveis têm sangue e vozes que clamam ao Céu, que clamores serão os do verdadeiro sangue derramado de verdadeiras veias? Que vozes serão, as de verdadeiras lágrimas, choradas de verdadeiros olhos? Que gemidos serão os de verdadéira dor, saldos de verdadeiros corações? Que serão as viudezas, as orfandades, os desamparos? Que serão as opressões, as destruições, as tiranias? E que serão as consequências de tudo isto, multiplicadas em tantas pessoas, continuada em tantas idades e propagadas em tantas descendências, ou futuras ou possíveis, até o fim do mundo! Há quem faça escrúpulo disto?
Agora entendereis com quanta razão disse São João Crisóstomo: Miror, an fieri possit ut aliquis ex rectoribus sit salvus. É uma das mais notáveis sentenças que se acham escritas nos Santos Padres. Torno a repeti-la: Miror, an fieri possit, ut aliquis ex rectoribus sit salvus: «Admiro-me (diz o grande Crisóstomo) e cheio de espanto considero comigo: se será possível que algum dos que governam se salve!» Esta proposição, e a suposição em que ela se funda, está julgada comummente por hipérbole e encarecimento retórico. Eu, contudo, digo que não é hipérbole nem encarecimento senão verdade moralmente universal em todo o rigor teológico. Impossível moral chamam os teólogos àquilo que muito dificultosamente pode ser e que nunca ou quase nunca sucede.
Neste sentido disse São Paulo: Impossibile est, eos qui semel illuminati et prolapsi sunt, renovari ad poenitentiam. E no mesmo sentido disse Cristo, Senhor nosso: Facilius est camelum per foramen acus transire, quam divitem intrare in regnum coelorum. Donde os Apóstolos tiraram a mesma admiração que São João Crisóstomo, e inferiram a mesma impossibilidade: Auditis autem his, discipuli mirabantur valde, dicentes: quis ergo poterit salvus esse? E o Senhor confirmou a sua ilação, dizendo que «humanamente era impossível, como eles diziam, mas que para Deus tudo é possível»: Apud homines hoc impossibile est.: apud Deum autem omnia possibilia sunt, que foi o mesmo que distinguir o impossível moral e humano, do impossível absoluto, que até em respeito da omnipotência divina não é possível. E como os que governam, pelas obrigações de seus mesmos ofícios e pelas omissões que neles cometem, e pelos danos que por vários modos causam a tantos, os quais danos não param ali, mas se continuam e multiplicam em suas consequências, têm tão dificultosa a salvação, por isso São Crisóstomo, falando lisa, sincera e moralmente, sem encarecimento nem hipérbole, disse que ele se admirava muito e não podia entender como era possível que algum dos que governam se salve: Miror, an fieri possit, ut aliquis ex rectoribus sit salvus.
E para que nós nos não admiremos, e os que governam ou desejam governar tenham tanto medo dos seus ofícios como dos seus desejos, reduzindo a verdade desta sentença à evidência da prática, argumento assim:
Neste sentido disse São Paulo: Impossibile est, eos qui semel illuminati et prolapsi sunt, renovari ad poenitentiam. E no mesmo sentido disse Cristo, Senhor nosso: Facilius est camelum per foramen acus transire, quam divitem intrare in regnum coelorum. Donde os Apóstolos tiraram a mesma admiração que São João Crisóstomo, e inferiram a mesma impossibilidade: Auditis autem his, discipuli mirabantur valde, dicentes: quis ergo poterit salvus esse? E o Senhor confirmou a sua ilação, dizendo que «humanamente era impossível, como eles diziam, mas que para Deus tudo é possível»: Apud homines hoc impossibile est.: apud Deum autem omnia possibilia sunt, que foi o mesmo que distinguir o impossível moral e humano, do impossível absoluto, que até em respeito da omnipotência divina não é possível. E como os que governam, pelas obrigações de seus mesmos ofícios e pelas omissões que neles cometem, e pelos danos que por vários modos causam a tantos, os quais danos não param ali, mas se continuam e multiplicam em suas consequências, têm tão dificultosa a salvação, por isso São Crisóstomo, falando lisa, sincera e moralmente, sem encarecimento nem hipérbole, disse que ele se admirava muito e não podia entender como era possível que algum dos que governam se salve: Miror, an fieri possit, ut aliquis ex rectoribus sit salvus.
E para que nós nos não admiremos, e os que governam ou desejam governar tenham tanto medo dos seus ofícios como dos seus desejos, reduzindo a verdade desta sentença à evidência da prática, argumento assim:
Todo o homem que é causa gravemente culpável de algum dano grave, se o não restitui quando pode, não se pode salvar; todos ou quase todos os que governam, são causas gravemente culpáveis de graves danos, e nenhum ou quase nenhum restitui o que pode; logo, nenhum ou quase nenhum dos que governam se pode salvar. Colhe bem a consequência? Pois ainda mal, porque a segunda premissa, de que só se podia duvidar, está tão provada na experiência. Eu vi governar muitos, e vi morrer muitos; nenhum vi governar que não fosse causa culpável de muitos danos; nenhum vi morrer que restituísse o que podia. Sou obrigado, secundum praesentem justitiam, a crer que todos estão no Inferno. Assim o creio dos mortos, assim o temo dos vivos.
VIII
Pedida e tomada a conta a todo o género humano, olhará o Senhor para a mão direita, e com o rosto cheio de glória e alegria, dirá aos bons: Venite benedicti Patris mei, possidete paratum vobis regnum à constitutione mundi. «Vinde, benditos de meu Pai, e possuí o Reino que vos está aparelhado desde o princípio do Mundo!» Quem serão os venturosos sobre que há-de cair esta ditosa sentença? Bendito seja Deus, que todos os que estamos presentes o podemos ser, se quisermos. Como se darão então por bem empregados todos os trabalhos da vida, e quão verdadeiramente parecerá então jugo suave a Lei de Cristo, que hoje julgamos por dificultosa e pesada! Mas ainda mal, porque muitos dos que aqui estamos... Não me atrevo a o dizer; entendei-o vós. Multi sunt vocati, pauci vero electi. Arcta via est, quae ducit ad vitam, et pauci sunt, qui inveniunt eam. Voltando-se depois o Senhor... (não digo bem) não se voltando o Senhor para a mão esquerda, com rosto severo e não compassivo (o que me não atrevera eu a crer, se o não disseram as Escrituras), dirá desta maneira para os maus: Discedite a me, muledicti, in ignem æternum, qui paratus est diabolo, et angelis ejus: «Ide, malditos, ao fogo eterno, que estava aparelhado, não para vós, senão para o Demónio e seus anjos» ; mas já que assim o quisestes, ide. Abriu-se a terra, caíram todos, tornou-se a cerrar para toda a eternidade. Eternidade! eternidade! eternidade!
(Retirado do site Literatura brasileira)
PS: Grifos meus
(Retirado do site Literatura brasileira)
PS: Grifos meus