sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

II - A AGONIA NO JARDIM

II - A AGONIA NO JARDIM


Torrentes iniquitatis conturbaverunt me.


As iniqüidades do mundo inteiro, como rios transbordados, precipitaram-se no mar do Meu coração.

O ideal do Amor, enfim, contente, repleto de venturas, satisfeito, eis a Agonia no Jardim: o primeiro, o maior e o mais misterioso dos episódios da Paixão.

O primeiro, porque na ordem do tempo, de modo exterior e visível, ele a começa; o maior, porque ele reitera todas as imolações do Homem-Deus, desde o primeiro vagido do Presépio até ao derradeiro gemido do Calvário; o mais misterioso, não só porque ele antecipa todos os sofrimentos corporais da vítima, mas também porque, onde os olhos da carne não vêem mais que uma luta, um combate, uma agonia, os olhos iluminados da fé contemplam a suprema ventura do Amor.

Eu vos disse anteriormente que, obra de Deus, a Cruz é a obra prima da alegria.

Obra de Deus neste sentido: conquanto os opróbrios, as ignomínias, os sofrimentos todos de Jesus Cristo fossem resultado da perversidade judaica, verdadeiros pecados do povo deicida, o Filho de Deus ab-oeterno aceitou-os, ab-oeterno resolveu tirar da iniqüidade a Sua glória, convertendo em instrumentos de Seu triunfo as humilhações da Sua Paixão.

Foi voluntariamente que Jesus Cristo Se sacrificou: oblatus est quia ipse voluit.

Sob este ponto de vista, portanto, a Cruz é obra de Deus, e obra prima da Alegria, porque Deus é uma imensa alegria, que se comunica a todas as Suas criações, e, pois comunicou-Se também à humanidade santa do Verbo, perfeitamente feliz e bem-aventurado em todos os instantes da Sua existência terrestre.

A Agonia no Jardim não foi por isso, apesar de todos os sofrimentos, menor que a suprema ventura do Amor.

O Amor! Ele é a seiva do universo; a energia atrativa de toda a criação; circula no ramo vive na flor, no pássaro, no inseto; produz e perpetua a vida.

Diz um antigo hino grego: “O Eterno disse ao Amor: que tudo se organize; e tudo se organizou!

Se no mundo físico o amor é o pólo da criação; no mundo moral é a alma do gozo, a vida da alegria. Sem dúvida, na sua verdade e pureza, o amor é raro, como é raro o gênio, raro o heroísmo, rara a formosura, raro tudo que se aproxima da perfeição. Ainda assim, na vida ele é para nós o tipo supremo da felicidade.

Falando do espírito das trevas, dizia a maior contemplativa do nosso tempo, Teresa de Jesus: “desgraçado! Ele não ama!” Eis como que o sinete da desgraça: - não amar.

Não há no céu, nem na terra, diz o livro da Imitação, coisa mais doce, mais forte, mais sublime, mais ampla, mais deliciosa, mais completa nem melhor que o Amor.

Esse amor de que nos fala o sublime poema monástico nasceu de Deus e não pode, como o mesmo poema acrescenta, descansar senão em Deus, elevando-se acima de todas as criaturas.

Não obstante, quaisquer que sejam as vicissitudes e imperfeições da humanidade, são muitas na terra as venturas do amor satisfeito: impossível seria o enumerá-las.

Vede: gozar, possuir uma alma, mesmo na ordem da natureza; mas é sublime! O que será possuí-la na ordem sacramental, divina?! Perguntai-o a ardente felicidade do coração juvenil, recebendo junto ao altar, das próprias mãos de Deus, um coração que para todo o sempre se engasta no seu!

Apertar em seus braços, revestido de sua carne, palpitante de seu sangue, o primeiro fruto de suas entranhas: que ventura! Perguntai-o a mãe fascinada pelos encantos do seu recém-nascido.

Imortalizar na ciência, na arte, na poesia ou na religião – uma idéia que aprendeu a verdade, um pensamento que atingiu o belo, uma inspiração que traduziu o amor, uma palavra que revelou Deus: que inefável ventura! Perguntai-o ao sábio, ao artista, ao poeta, ao apóstolo. Libertar uma raça, regenerar um povo, reconstruir uma pátria: que ventura tão grande! Perguntai-o ao filósofo, ao estadista, ao guerreiro.

Pois bem: a alegria de todas as almas humanas, o prazer de todos os corações satisfeitos, a delícia de todos os amores: amor maternal, amor conjugal, amor fraternal, amor da pátria ou da humanidade; todas as venturas do gozo mais requintado: - o das lágrimas que os Santos derramaram nos seus delíquios, o da pureza que as virgens sentiram no seu corpo imaculado, o do sangue que os mártires derramaram em testemunho da verdade, - todas as venturas do coração humano reunidas são infinitamente menores que a ventura de Nosso Senhor na agonia do Jardim.

É aqui, na verdade, que Ele exteriormente, com inflamada caridade e intrépido valor, dá começo à Sua Paixão. É aqui que a parte inferior da Sua natureza parece inválida por indizível tristeza; e os açoites, os opróbrios, as bofetadas, as zombarias, as blasfêmias, a morte de Cruz – tudo isso que Lhe iam dar os Judeus com tanta vivacidade  o penetra que Ele já suporta todos esses males, e geme, e treme, e perde as cores e as forças, e como que se Lhes esgota a vida.

Ei-lO prostrado, com a face em terra, em agonia!

Trinta e três anos passaram sobre a Sua cabeça. É agora um homem em toda a força da idade.

Muitas vezes mostrou-Se fatigado. Fatigado quando, junto ao poço de Jacob, pedia à Samaritana um pouco dessa água, que Ele próprio criou.

Fatigado quando, nos dias do Seu penoso ministério público, refugiava-Se entre os rochedos.

Nunca, porém, tão fatigado como agora em que uma santa impaciência O domina: a de não poder esperar algumas horas o Seu desejado sacrifício.

Dentro de poucas horas, Ele será batido, flagelado, coberto de ignomínias, crucificado; o Seu sangue será derramado como água.

Ele, portanto, crucifica-Se a Si próprio, num martírio mais misterioso que o do Calvário. Antecipa a Sua Paixão. Reveste-Se de todos os pecados tão numerosos, variados e enormes de todos os homens. Cobre-se deste medonho vestuário que O inflama e queima como uma túnica de fogo.

Treme, todo penetrado do mais horrível dos terrores.

Todos os crimes do espírito; todos os crimes do coração; todos os crimes dos sentidos; todas as loucuras do mundo; todas as orgias da humanidade; o orgulho de todas as inteligências; a luxúria de todas as imaginações; todas as aberrações da ciência; todas as profanações da arte; todos os adultérios da poesia; todos os sacrilégios de todas as religiões, a ambição dos despostas; a tirania dos governos; os atentados da política; as iniqüidades da justiça; os abusos da filosofia; as violações da Moral; todos os escândalos do mundo; as abominações de Sodoma e Gomorra; as prostituições de Babilônia; as bachanais da Grécia; a ambição, a loucura, as crueldades de Roma; a idolatria de todos os povos pagãos; as perversidades da nação judaica; as iniqüidades de todos os povos modernos; as perfídias de todas as monarquias; as mentiras de todas as repúblicas; a hipocrisia das democracias; as imposturas da liberdade – todo este peso enorme oprime a cabeça de Jesus Cristo na Agonia do Jardim, enche de confusão a Sua alma e de amarguras o Seu coração!

É assim, desfigurado, que a Justiça Eterna O contempla, como Holocausto vivo que se Lhe oferece pelos crimes de todas as pátrias, também da nossa: - de todos os pecados privados de públicos do Brasil, das iniqüidades de seus magistrados, do ateísmo político de seus estadistas, das apostasias de seus governos, do paganismo das suas escolas, da irreligião prática de seus lares, da impiedade dos seus parlamentares, do ceticismo de seus jornais, da ignorância religiosa dos seus mestres, da apatia e dos sacrilégios dos seus padres, do seu repúdio oficial da fé católica; de todas as loucuras do espírito revolucionário que invadiu as plagas de Santa Cruz e não deixou entre a monarquia e a república solução de continuidade!...

Onde, me perguntareis agora, numa agonia tão grande que não há, para exprimi-la, nas línguas humanas, termos nem frases; onde ver a ventura de Jesus Cristo?! Por todos os poros de Sua carne desfiam gotas de sangue que inundam a Sua fronte, banham as Suas faces, molham os Seus cabelos, cobrem os Seus olhos, enchem a Sua boca, maculam as Suas barbas, tingem o Seu vestuário, e avermelham mesmo as oliveiras do Jardim!

Que agonia dolorosa e profunda!
Que sofrimento inaudito!

Pois bem: onde os olhos da carne vêem a fraqueza, os olhos da razão, iluminada pela fé, vêem a força. Esta luta, diz S. Ambrósio, não é a luta de Jesus Cristo no temor da Sua Paixão; mas no desejo inflamado de no-la aplicar. É a luta entre dois atributos de Sua própria natureza divina: a justiça e a misericórdia. A Justiça, que representa o Pai, parece dizer, inflexível a Jesus Cristo: “Separa a tua causa da dos pecadores; deixa-Me derramar a Minha cólera sobre a posteridade proscrita de um pai culpado”. Mas a Misericórdia, que representa o Filho, parece responder ao Pai: “Não, nunca! Eu não deixarei de combater, de sofrer, de chorar até que os pecadores sejam postos no Meu lugar, sejam perdoados em Mim. Eu aceito sobre os Meus ombros o peso das suas faltas; Eu incorporo-os todos; Eu me revisto do opróbrio de todos os pecados; Eia, corram todos eles; entrem como torrentes transbordadas, no mar do Meu coração. Como todos os rios se precipitam no mar, as iniqüidades no mundo inteiro precipitem-se sobre a Minha alma; e, assim como o mar absorve todas as águas, que o Meu coração afogue todos os pecados.”

E a justiça emudece! A misericórdia triunfa! Oh! suprema ventura do Amor.
Era isto o que Ele desejava desde o presépio.

A Sua agonia não é, portanto, dizem os padres da Igreja, uma luta entre o espírito e a carne, entre a vontade divina e a vontade humana. Não é uma repugnância pelo sofrimento: é uma santa impaciência do amor.

Qual de vós, se pudésseis, para verdes a pessoa que amais, não transformareis em olhos todos os membros de vosso corpo?!

Dois olhos também não bastaram a Jesus Cristo, diz um ilustre doutor, para chorar a desventura possível dos que Ele ama: transformou em olhos todos os poros do Seu corpo, pelos quais, transformadas em sangue, correram as Suas lágrimas!

Mas, se é assim que Jesus Cristo nos ama, ao ponto de se revestir dos nossos pecados, como Seus próprios; sofrer as humilhações deles; experimentar o desgosto e o terror que eles inspiram e a contrição correspondente à sua enormidade; que loucura não é a nossa se desprezamos tamanho amor?!

Ele tomou a responsabilidade da pena; mas não a malícia da falta.

Tomou a superfície, a aparência, mas não a natureza, a substância do pecado, que não perverteu a Sua vontade, nem maculou a Sua inocência.

É preciso, portanto, que nos associemos às Suas lágrimas e às Suas dores; que demos a nossa o suplemento da Sua contrição.

Se a simples aparência do pecado tornou-Lhe tão severa a justiça do Pai, que severidade não merece em nós a realidade do pecado?!

Se, portanto, desde mistério não tiramos como ensino o ódio do pecado, e o desejo de repará-lo pelos méritos de Jesus Cristo, de nenhum proveito nos pode ser a Sua mediação.

Esta foi a mais heróica que o Amor nos podia dar. Para resgatar o mundo, Deus não precisava derramar o Seu sangue; podia fazê-lo por uma infinidade de meios que não alcança a nossa imaginação. Entretanto, a efusão de Seu sangue pareceu-Lhe o meio mais condigno da Misericórdia, e o mais capaz também de enternecer os nossos corações. Ainda mais: uma vez decretado que a redenção se fizesse pelo sangue, uma gota, sem dúvida, do sangue divino bastava, pelo seu mérito infinito, para remir este e todos os mundos possíveis. Que digo eu?! Uma gota de sangue?! Bastava uma lágrima, um suspiro, um gemido, uma simples súplica de Jesus Cristo. Entretanto, derrama-o com prodigalidade, em diversas e abundantes efusões: na Circuncisão, que foi como que a impaciência do precioso Sangue; na Agonia, que foi a antecipação da Paixão; na Flagelação, que foi o sangue de Deus dado em espetáculo à cidade e ao povo; na Coroação de espinhos, que foi o tributo pago pela cabeça divina aos pensamentos inefáveis da salvação; no Caminho do Calvário, que foi os esposais do Precioso Sangue com a Cruz; no Calvário, que foi o Seu consórcio; na abertura do Sagrado Coração, que foi o testemunho póstumo do amor de Jesus Cristo, derramando Seu sangue ainda depois de morto

Ora, como diz brilhante teólogo, não há superfluidade, nem ornamentos vãos nas obras de Deus. Se Ele, portanto, derramou o Seu sangue com tanta prodigalidade, é que a nossa condição o exigia, e neste sentido o Precioso Sangue, tão necessário à onipotência divina para salvar o mundo, o era, entretanto, a Sua misericórdia, e a nossa miséria, tão enorme que foi preciso o Precioso Sangue, como um oceano transbordado, alagasse o mundo e viesse até as nossas almas por esses sagrados canais que se chamam os sacramentos: o Batismo, que não é senão o precioso Sangue dando a uma gota d’agua o poder de operar uma revolução espiritual maior que todas as criações do mundo material; a Penitência, que não é senão a aplicação autêntica do Precioso Sangue sobre a cabeça do pecador arrependido; o Matrimônio, que não é senão a figura do casamento do precioso Sangue com a Igreja; a Confirmação, que não é senão o vigor do precioso Sangue comunicado pelo Espírito Santo; a Extrema-Unção, que não é senão o Precioso Sangue  dando ao óleo o poder de fortificar o moribundo; a Ordem, que não é senão o coração terrestre, o vaso que guarda o precioso sangue; a Eucaristia, que não é senão a ubiqüidade do Precioso Sangue, multiplicado em milhares de hóstias e milhares de cálices!

E que seria o mundo sem o sangue de Jesus Cristo?

O mundo seria insuportável, a vida sem esperança, as desgraças sem consolação.

Quaisquer que sejam as pretensões da ciência; qualquer que seja a presunção do espírito moderno; é o sangue de Jesus Cristo que detém suspensa sobre o mundo a cólera divina; que permite ainda a humanidade, no meio de tantos erros, calamidades e tristezas, algumas felicidades no seu exílio.

Vinde; vinde vós todos, espíritos modernos, inchados da vossa filantropia, que pretendeis dar aos homens testemunhos ainda não vistos de fraternidade, sempre prometida, nunca realizada pelas vossas ciências, pelas vossas filosofias, pelas vossas políticas; vinde ver, vinde aprender na Agonia do Jardim como se ama a humanidade.

E vós também, falsos profetas, Messias impostores do século 19, que prometeis aos povos novas religiões, e os quereis convencer de que eles devem esperar maiores e melhores provas de amor de Deus; vinde ver na Agonia do Jardim se o amor de Jesus Cristo pode ser excedido!

Vinde vós todos, também, espíritos modernos, que na tragédia, no drama, no romance, na música, na pintura ou escultura, tendes alimentado a ardente ambição de ver realizado na terra o ideal do Amor; vinde – vinde vê-lO realizado na Agonia do Jardim!

Tudo o que a imaginação pode conceber; tudo o que o coração pode desejar; tudo o que a alma humana pode sonhar – ei-lo realizado!

Todas as ciências, todas as literaturas, todas as artes não podem traduzir um ideal igual.

A Agonia no Jardim é a última palavra do amor.

É o sacrifício completo, não imposto por uma força exterior, pelas prevaricações da justiça, pela crueldade dos judeus, pela brutalidade dos carrascos, mas pela própria vontade da vítima.

É a vitima sacrificada pelo gládio inflamado do Seu próprio amor.

Jesus Cristo tinha dito que o Seu sacrifício seria voluntário: voluntarie sacrificabo tibi.

Pois bem; o que no Calvário, diz um padre, poderia parecer resultado de vontade exterior, no Jardim mostra-se como o resultado da própria vontade de Jesus Cristo.

Ali, nem tormentos, nem golpes, nem feridas.

A traição de Judas, a injustiça de Pilatos, a crueldade dos carrascos não têm parte no sacrifício. Nenhum delito desonra tão grande sacramento; nenhuma infâmia macula uma oferenda tão pura; nenhuma boca escarnece tão divina imolação.

O amor é a Sua própria vitima, o Seu próprio altar, o Seu próprio pontífice.

E o sacrifício de Jesus Cristo é completo; porque Sua vontade é o instrumento que Lhe abre as veias, Sua santidade é o altar onde corre o sangue, e o amor é o pontífice que O oferece ao Pai!

 (A Paixão, pelo Padre Júlio Maria de Lombaerde, Cruzada da Boa Imprensa - Rio, ano de 1937)

PS: Grifos meus.