CAPÍTULO III: “MANTELLATE”
As Irmãs da Penitência da Ordem Terceira de São Domingos tiveram origem numa irmandade de leigos que São Domingos tinha fundado e a que chamara a ‘Milícia de Jesus Cristo’. Além de se comprometerem a rezar certas orações em vez dos Ofícios diários que os monges liam – muitos leigos não sabiam ler – os Irmãos deviam também defender os bens da Igreja. Durante os anos em que os hereges tinham estado no poder no sul da França e no norte da Itália, uma grande quantidade de terras da Igreja tinha passado para as mãos de leigos, que dispunham delas como se as tivessem realmente recebido por herança legal. São Domingos escolheu uma vida de extrema pobreza para a primeira Ordem, de freiras contemplativas, e para a segunda Ordem, de frades pregadores. Mas a pobreza das catedrais, igrejas, abadias e conventos, que tinham sido saqueados, tornara-se um obstáculo para o trabalho de bispos e padres, o que acontecia igualmente com a atividade caritativa e evangelizadora das velhas fundações monásticas. Um dos objetivos da Milícia era tentar reconquistar para a Igreja o que lhe pertencia por direito.
A maior parte destes Irmãos eram homens casados e, por isso, de acordo com as leis católicas sobre o casamento, não podiam professar sem o consentimento das esposas; estas deviam, pois, comprometer-se a nunca oporem obstáculos à ação a empreender pelos maridos. Desta maneira, a Ordem Terceira viria a consistir principalmente em casais que viviam juntos numa vida de semi-reclusão no mundo, mas não do mundo. Como sinal de estarem ligados à Ordem dos Dominicanos, tinham de usar roupas das mesmas cores, branco e preto, mas não havia nada regulamentado quanto ao feitio das mesmas.
Para finais do século XIII, a Ordem começou a perder o seu caráter de milícia, mas continuou a ser chamada a Ordem Terceira dos Irmãos e Irmãs da Penitência de São Domingos.
Quando ficavam viúvas, as Irmãs dedicavam o resto da sua vida inteiramente ao serviço de Deus; permaneciam nas suas próprias casas, mas vivendo como freiras. Não tinham igrejas e oratórios próprios, costumavam reunir-se numa capela escolhida, se possível numa igreja pertencente aos frades pregadores. Aqui tomavam parte na Missa e oravam juntas. Quando, algum tempo depois, lhes deram um traje especial – vestida de lã branca, véu branco e capa preta – passaram a ser chamadas Le Mantellate – as Irmãs do Manto.
Em Sena havia muitas Mantellate. Mulheres casadas e viúvas de todas as categorias sociais pertenciam a esta congregação, e costumavam reunir-se numa capela chamada Capella della Volte. Desde a infância Catarina tinha especial consideração por São Domingos e gostava de se escapulir de casa, de manhã muito cedo, para ir à Missa na igreja do alto da colina, por trás de sua casa, pelo que deve ter visto centenas de vezes as Mantellate reunidas em devoção. Sua cunhada Lisa, e uma tia já viúva, que era irmã de Jacopo, pertenciam também à Irmandade. Nessa altura, quando a família fazia tudo o que podia para que esta filha impossível se portasse como uma moça normal, mandando-a daqui para ali, escadas acima e escadas abaixo todo o dia, enquanto se exasperavam com a sua obstinação, vendo-a paciente e obediente em tudo, exceto naquilo que significava mais que tudo para eles – a alma de Catarina ardia naquele desejo que tinha despertado nela vagamente quando ainda era uma criança: o de se tornar uma mantellate. E todos os dias rezava ao seu Amado para que lhe concedesse esta graça.
Um noite, esta serva do Senhor sonhou que via diante de si muitos veneráveis patriarcas e padres de ordens monásticas, e entre eles encontrava-se São Domingos – reconheceu-o logo pelo belo lírio branco que tinha na mão. Todos estes santos lhe disseram para escolher uma Ordem à qual pertencer, de maneira a servir ao Senhor melhor do que até aí. Catarina imediatamente se virou para São Domingos, e ele veio ao seu encontro. Mostrou-lhe um traje igual aos usados pelas Irmãs da Penitência, e disse-lhe: “Querida filha, tem coragem. Nada receies, porque com certeza virás a usar este hábito, como é teu desejo”. Catarina chorou de alegria e agradeceu ao Senhor e a São Domingos, e acordou banhada em lágrimas.
Agora, que Deus tinha dado a saber à Sua serva qual a Sua Vontade, Catarina tinha certeza de que Cristo a ajudaria. Dirigiu-se aos pais e contou-lhes a razão da sua incompreensível resistência aos planos que eles tinham feito para o seu futuro. Fez isto no próprio dia a seguir ao sonho.
“Já vos tinha dado a entender isto tantas vezes, que seria fácil os senhores compreenderem, mas, pelo respeito que devo aos meus pais, tal como Deus manda, nunca tinha dito nada antes. Este silêncio, porém, tinha de acabar; por isso quis abrir-lhes o coração e confessar que tomei uma resolução, não há pouco tempo, porque já a tinha tomado quando era ainda criança, e que sempre tenho me mantido fiel a esta resolução. Na infância, prometi ao meu Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, e à Sua bendita Mãe, que me conservaria sempre virgem; não foi uma criancice, mas motivos sérios me levaram a isso. Prometi-lhes, pois, que nunca arranjaria outro marido. E agora que, pela graça de Deus, cheguei à idade da razão, essa decisão está ainda enraizada no meu coração. Seria mais fácil derreter uma pedra do que tirarem-me esta santa resolução do meu peito. Só perderão tempo se o quiserem fazer. Aconselho-os, portanto, a acabar com essas negociações sobre o meu casamento, porque nisto nunca poderei obedecer-lhes; devo obediência antes a Deus do que aos homens. Se me quiserem continuarem a ter cá em casa, ficarei como criada dos senhores e com alegria farei tudo o que puder para ajudá-los. Mas se me expulsarem por causa da minha decisão, assim seja: isso não modificará, de maneira alguma, o meu coração. Tenho um Noivo que é tão rico e poderoso que não me deixará passar necessidades, pois me dará certamente tudo quanto eu precisar”.
Quando Catarina acabou de falar, todos irromperam em lamentações; soluçava, choravam, e ninguém podia falar. Olharam para esta moça, que tinha sido sempre tão moderada e de falas mansas, e que agora se lhes dirigia com tal atrevimento e seriedade, e compreenderam que ela preferiria abandonar a casa dos pais a quebrar o seu voto. Não havia qualquer esperança de lhe arranjarem um bom casamento. Por isso os Benincasa choravam cada vez mais.
Mas o pai, Jacopo, em breve dominou a emoção. Quando o conseguiu, não ficou muito surpreendido. E respondeu-lhe com ternura e afabilidade: “Minha querida filha, longe de nós a idéia de irmos, de qualquer maneira, contra a Vontade de Deus, e foi d’Ele que recebeste esse propósito. Compreendemos que não foste levada pelo egoísmo próprio da juventude, mas pela graça de Deus. Mantém a tua promessa e vive como o Espírito Santo te diz que vivas. Nunca mais te importunaremos nas tuas orações e devoções, nem tentaremos afastar-te do teu trabalho sagrado. Mas reza firmemente por nós para que possamos ser dignos do Noivo que tu escolheste tão nova”. E voltou-se para a mulher e os filhos e disse: “A partir de agora, ninguém tratará mal nem aborrecerá a minha filha adorada, nem tentará levantar-lhe obstáculos. Que ela sirva o seu Noivo em completa liberdade e que reze por nós com sinceridade. Nunca lhe poderíamos ter arranjado um casamento tão honroso; por isso não nos queixemos de, em vez de um mortal, recebermos o Deus imortal feito homem”.
Os irmãos mantinham-se pesarosos e Lapa chorava alto. Mas Catarina, intimamente, agradeceu ao seu Noivo vitorioso, que assim a tinha levado ao triunfo, e agradeceu aos pais o mais humildemente possível.
Deixaram-na ter o seu próprio quarto – uma pequena divisão no primeiro andar. À semelhança de muitas outras casas de Sena, a dos Benincasa fora construída contra uma colina, de maneira que o quarto de Catarina, nas traseiras, estava de fato ao nível da estreita viela que corria por trás do edifício. O quarto tinha apenas dez pés por dezesseis. Uns degraus de pedras conduziam a uma pequena janela, provavelmente gradeada, como costumavam ser as janelas do rés-do-chão. Algumas imagens de santos, uma arca onde guardava os seus pertences, uma cama de madeira com um cepo a fazer de almofada – eis toda a sua mobília. Catarina sentava-se nesta cama quando meditava, ajoelhava-se nela para rezar, e deitava-se, toda vestida com a túnica de lã, para dormir. Durante algum tempo usou uma camisola de pêlos. Mas era sempre meticulosa em se conservar limpa – como Santa Teresa de Ávila, havia apenas uma forma de disciplina corporal que nunca praticou: a imundície e a piolhice, que tantos santos do sexo masculino apreciavam como remédio contra o orgulho. Mais tarde, trocou a camisola de pêlos por uma fina cadeia de ferro que apertava fortemente à volta do corpo até lhe cortar a carne. Usou sempre esta cadeia até à altura em que o seu confessor lhe ordenou que a pusesse de lado, o que só aconteceu quase no fim da vida, quando já se encontrava muito fraca.
Não nos custa acreditar quando, mais tarde, ela disse a Frei Raimundo que o sacrifício que mais lhe custara, quando nova, era o do sono. Ao princípio, passava toda a noite em orações e conversas com seu Noivo, e só quando tocava a Matinas nos mosteiros é que se deitava para dormir um bocado. Mas, algum tempo depois, a alma triunfou sobre as exigências do corpo, até que conseguiu agüentar-se só com meia hora de sono, e mesmo isto, algumas vezes, dia sim, dia não. Como a sua vida ‘estava no Céu’, pensava que o tempo que gastava a dormir era desperdiçado.
Durante muito tempo recusou-se a beber vinho, que era, para os italianos, não só bebida, mas alimento, desde há séculos. Primeiro, misturava um pouco de vinho na água que bebia – apenas o necessário para lhe dar cor – a fim de não ofender os outros à mesa. Há alguns também que já não comia carne; mais tarde diria a Raimundo que o próprio cheiro da carne lhe desagradava. Mas não nos surpreendemos que Lapa se lamentasse e chegasse a praguejar, quando Catarina afastava o bom pão da sua dieta, querendo comer apenas vegetais, e mesmo estes só em pequena quantidade. Quando Raimundo escreveu o seu livro sobre a vida de Santa Catarina, tinha bons motivos para realçar o fato de ela praticar um espírito de sacrifício tão rigoroso como nunca se tinha ouvido desde o tempo dos anacoretas, e não num deserto, mas no lar duma grande e abastada família da classe média.
A fim de imitar o seu pai espiritual, São Domingos, Catarina aplicava-se disciplinas – batendo-se com a cadeia de ferro – três vezes por dia: uma pelos seus próprios pecados, outra pelos pecados de todos os homens, e a última pelas almas do Purgatório. Muitas vezes o sangue corria-lhe pelas costas: como diz Raimundo, ela dava ao Salvador “o sangue pelo Sangue”.
Ainda a pobre mãe mal tivera tempo para se acostumar à idéia de a filha favorita nuca vir a ser noiva ou mãe, quando soube das incompreensíveis torturas que Catarina aplicava a si própria. “Oh, minha filha, minha filha, tu morres, tu matas-te. Oh, quem me roubou a minha filha? Quem me deu este desgosto?” E a mulher de Jacopo Benincasa gritava e chorava, e a sua voz ecoava pelas estreitas ruas da vizinhança, alarmando as outras pessoas e fazendo com que os amigos e simples transeuntes se precipitassem para sua casa a fim de descobrirem que nova desgraça tinha acontecido à pobre Lapa.
Como não era capaz de fazer com que Catarina comesse, resolver ver se conseguia que, ao menos, tivesse algumas horas de sono conveniente todas as noites. Entrava no quarto da filha, onde a encontrava ajoelhada nas tábuas da cama; levava-a “à força” para o seu quarto e obrigava-a a deitar na sua cama, aconchegada no calor dos lençóis de linho e das almofadas fofas. Catarina deitava-se obedientemente ao lado da mãe, orando em silêncio e meditando até Lapa adormecer; saía então da cama e ia continuar suas orações como de costume. Mas “satanás, que ela afastara com firme resolução, acordava Lapa” – Raimundo não tinha dúvidas de que era satanás que se servia de Lapa e de seu amor de mãe como instrumento de tentação para Catarina se afastar do caminho que a conduziria à perfeitas união com Cristo, embora a inocente e inofensiva Lapa não soubesse nada disto, como é evidente. Stefano Maconi, que sabia muito, por experiência própria, acerca do conflito travado entre a vocação e o amor de mãe bem intencionado, contenta-se em dizer, na sua tradução para o italiano da biografia latina de Santa Catarina, escrita por Tommaso Caffarini, que Lapa amava mais o corpo da filha que a sua alma. Para satisfazer a mãe e a sua própria consciência ao mesmo tempo, Catarina passou a esconder algumas tábuas por baixo dos lençóis da cama de Lapa, no lado em que costumava deitar-se. Quando a mãe descobriu o ingênuo truque da filha, foi obrigada a deixá-la fazer o que “o Espírito Santo lhe inspirava”, apesar de resmungar e lamentar-se antes de ceder.
Muitas vezes Catarina falou aos pais sobre o seu desejo de vir a pertencer à Ordem das Irmãs da Penitência de São Domingos, o que também tornava Lapa extremamente infeliz. Não ousava proibi-la de falar no caso, mas procurava fazer com que a filha pensasse noutras coisas, levando-a aos banhos de Vignone, ao sul de Sena. Nessa altura, Vignone era uma grande e afamada estância termal, com algumas estalagens para albergar a corrente de banhista que vinham para as fontes sulfurosas de água quente. Catarina concordou obedientemente com o plano da mãe. Mas quando iam começar os tratamentos pediu-lhe que a deixasse banhar-se sozinha. Lapa disse-lhe que o podia fazer – mas não sabia que, em vez de ir para o tanque onde a água tinha uma temperatura agradável, Catarina se dirigia para o local donde a água saía dos canos, a escaldar. A dor era terrível, mas ela tentava imaginar as penas do Purgatório e do Inferno, enquanto agradecia a Deus os tormentos que se infligia a si própria, em vez dos tormentos que merecia cada vez que ofendia a Deus.
Lapa foi logo obrigada a confessar que tinha perdido a batalha. E agora Catarina suplicava à Mãe que fosse falar com a prioresa das Mantellate para perguntar se a filha podia vestir o hábito da Ordem. Por fim, Lapa foi, muito contra a vontade, e deve ter ficado imensamente satisfeita quando as Irmãs lhe responderam que era contra a Regra aceitar jovens na congregação. Como todas as Irmãs tinham de viver, conforme os regulamentos, em suas próprias casas, a mais elementar prudência aconselhava que só deviam aceitar mulheres já maduras, que desejassem oferecer-se inteiramente a Deus para a resto da vida.
Pouco tempo depois, Catarina adoeceu gravemente. Tinha o corpo e o rosto cobertos de uma espécie de erupção, dores violentas e febre elevada. Lapa ficava junto dela e tratava-a carinhosa e incansavelmente, tentando consolar a filha com ternuras e palavras gentis, e fazendo tudo o que podia para ela melhorar. Catarina tinha apenas um desejo, e Lapa tudo faria para salvar a vida da filha; preparou-se, portanto, para tentar mais uma vez obter para Catarina o que ela tão ardentemente ambicionava. De resto, era melhor que a filha se tornasse uma Irmã da Penitência na terra, do que ser chamada por Deus e São Domingos, como parecia realmente que estavam a fazer...
O seu único pecado fora o de ter amado mais o corpo do que a alma da filha. E agora, que já se preparara para sofrer isso, Lapa insistiu com maior determinação junto das Irmãs da Penitência, com todo o seu poder de argumentação. As lutas secretas que tantos anos travara com o marido e com uma filha cujo comportamento era um autêntico enigma para ela, tinham afinado a inteligência e os sentidos de Lapa. Finalmente, conseguiu que as Irmãs prometessem pensar no assunto, tanto por causa de Lapa quanto por causa da moça. Se ela fosse excepcionalmente bonita, era natural que elas não quisessem que Catarina vestisse o hábito da Ordem – Lapa bem sabia como eram as más línguas. Mas foi suficientemente esperta para dizer às Irmãs que fossem a sua casa ver com os seus próprios olhos. Pobre Catarina, que continuava deitada na cama, com o rosto desfigurado pela horrível erupção! Assim nunca seria, na verdade, uma beleza perigosa.
As Irmãs escolheram três ou quatro das freiras mais experientes e cuidadosas, e mandaram-nas visitar a moça e fazer uma experiência com ela. Catarina quase parecia repelente. Mas quando conversaram com ela por uns instantes, logo compreenderam como ansiava por se lhes juntar, como era invulgarmente piedosa, desenvolvida e compreensiva, e regressaram satisfeitas e espantadas para contarem às companheiras o que tinham visto e ouvido. Depois de obterem o consentimento dos Irmãos, as freiras reuniram-se para votar o caso: concordou-se unanimemente em receber Catarina Benincasa na Ordem Terceira de São Domingos como uma das suas Irmãs de Penitência.
Quando Lapa deu esta notícia à filha, Catarina agradeceu ao seu Noivo e a São Domingos, e chorou de alegria – pois Eles haviam cumprido a sua promessa maravilhosamente. Até esse momento, suportara a doença com infatigável paciência, mas agora orava para melhorar rapidamente, pois ansiava pelo dia em vestiria o hábito. E, num espaço de breves dias, melhorou completamente. Lapa ainda tentou ganhar tempo, mas teve de ceder às súplicas da filha, e assim foram marcados o dia e a hora da cerimônia.
Catarina esta em casa, no seu quartinho, orando e pensando no momento em que seria satisfeito o desejo do seu coração. Aproximava-se o pôr do sol; a estreita viela, para onde dava a janela, em breve se encheria de escuridão suave, e ela ouviria, na sua solidão, as vozes das pessoas conversando e divertindo-se depois do trabalho do dia. E, de repente, aquele que é o inimigo de Deus atirou-se sobre a moça que ia agora, mais uma vez, renunciar a tudo o que desejava renunciar desde criança. Ela já tinha encontrado o diabo e as suas legiões nas suas visões – visões intelectuais bem como visões físicas e aparições. Mas até essa altura nunca tinha sentido senão medo e aversão à sua vista. Desta vez, porém, o tentador aproximou-se sob a figura de um jovem, não para a amedrontar, mas para a seduzir. O belo jovem expôs à sua frente todas as maravilhas que os tecelões e bordadeiras italianas podiam criar; no fim, apresentou-lhe um vestuário, um manto recheado de pedras douradas e preciosas, mais encantador do que tudo o que já vira na realidade: “Tudo isto pode ser teu...” Como num sonho, Catarina contemplou todos estes espécimes da magnificência terrena – símbolos do poder e da alegria que o mundo é capaz de oferecer a todas as jovens atraentes e inteligentes, com infinitas possibilidades de experimentar a paixão e o amor... De repente, foi como se despertasse; e violentamente expulsou o tentador da sua frente. Mas a tentação persistia.
Era agora uma moça crescida, quase uma mulher feita, e talvez tenha então compreendido, pela primeira vez, como era a felicidade terrena a que ia renunciar. Por mais profundamente convencida que estivesse que tais alegrias mundanas eram um obstáculo para o que pretendia, por mais certa que estivesse que nada representavam – apenas sonhos que se desvaneceriam e que transformariam a felicidade em sofrimento e medo – apesar de tudo, não deixavam de ser tentadoras.
Precipitou-se para o Crucifixo e suplicou ao seu Noivo que a viesse ajudar: “Vós bem sabeis que Vos amo, e só a Vós...” Mas não sentiu consolação, era como se o Homem do Crucifixo fosse surdo e mudo, por mais que ela rezasse. Mas, de súbito, outra visão lhe surgiu – uma mulher revestida com uma auréola, a própria Rainha do Céu, que lhe ofereceu um manto, brilhante como o sol e refulgindo com pedras preciosas. “Minha filha, este manto estava oculto na Chaga do Lado de meu Filho e incrustei nele estas pedras com as minhas próprias mãos.” Humildemente, a moça fez uma vênia e Nossa Senhora estendeu o manto celestial sobre a sua cabeça...
Numa madrugada, alguns dias mais tarde, Lapa e Catarina subiram a colina e entraram na igreja dos dominicanos. Os frades pregadores encontravam-se reunidos, e entre eles estava com certeza Frei Tommaso della Fonte, que tinha sido criado com Catarina e seria agora o seu confessor. Na presença de todos, e das Irmãs da Penitência, Catarina Benincasa recebeu o hábito branco e o véu que significam a pureza do corpo e da alma, e o manto preto, o símbolo da humildade e da morte para o mundo.
Não sabemos em que dia exato ocorreu isto, e os estudiosos da vida de Catarina divergem mesmo quanto ao ano. Verificou-se, muito provavelmente, em 1366, quando Catarina andava pelos dezenove anos.
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(“Catarina de Sena”, da escritora norueguesa Sigrid Undset)
PS: recebido por e-mail, mantenho os grifos.