A ALMA E O CONVÍVIO SOCIAL
A alma abandonada a Deus deve viver no meio a que pertence, de maneira humana. Não lhe foi dada uma natureza angélica, unicamente ocupada em pensar e amar a Deus. Vive no seio de uma família, de um ambiente de trabalho, de uma sociedade.
Mil relações de amizade, de interesses, de conveniências, de parentescos, ligam-na e solicitam-lhe a atenção. Entre estas muitas são boas e gratas, oferecendo-lhe ocasiões de servir, de dar-se, de distrair-se e cultivar-se. Outras são cordiais e íntimas, e outras ainda não são apenas pessoais, mas meio de expansão e convívio da família com outras famílias.
Ora essas relações agradam e encantam a alma, ora a perturbam, agitando-a, embaraçando-a, roubando-lhe o tempo e sossego; ou ainda a contrariam e descontentam, pois podem ser fonte de invejas e ódios e levar-lhe o pensamento para longe do Deus da paz.
É preciso, pois, escolher as relações com critério, eliminar as supérfluas, reduzir as que são apenas úteis e regular as necessárias. A alma verdadeiramente interior nunca se escraviza a criatura alguma, por mais agradável que seja. Nunca se abandona a não ser a Jesus. No fundo do coração, reserva um lugar onde nunca penetra nenhuma amizade terrena, por mais íntima que seja. A porta permanece fechada, pois só o Senhor a transpõe. É a morada de Deus.
O coração que pertence a Deus está completamente ocupado por Ele, até transbordar. É esta superabundância que derrama depois sobre as criaturas que o rodeiam.
Ninguém tão terno como a alma simples, ninguém ama tão puramente e com tanta constância a família, os amigos e mesmo os simples conhecidos. O seu amor é isento de egoísmo, pois é da mesma natureza que o amor que consagra ao Senhor; não está sujeito a variações, ao capricho, ao humor do momento; não se regula pelas qualidades, beleza, mérito, bondade, porque tem o seu único fundamento em Deus. A infidelidade, a ingratidão, a traição, as críticas podem supreendê-la, mas não desanimá-la.
Não procura também assenhorear-se em exclusiva do afeto e da estima de outra criatura. Sabe não ter esse direito, por ser Jesus o único Senhor das almas, o único Soberano a quem são devidos todo o amor e toda a glória.
Vive assim desapegada e livre no meio de um mundo de relações. Domina-as, governa-as, regula-lhe a natureza, o tempo e o modo. É uma maravilha contemplar um alma assim, que vive serena num ambiente agitado e atormentado! Dir-se-ia uma grande árvore que sobressai no bosque. O vento apenas consegue agitar-lhe os ramos. Quando ao redor tudo se turva e despedaça, a alma interior permanece imperturbável e tranquila; quando o turbilhão das mil relações sociais por mera conveniência ou interesse arrasta as almas vulgares e as lança na dissipação e no desassossego, essa alma permanece inabalável, com a fronte erguida para o céu e o coração enraizado em Cristo. Ninguém é capaz deste domínio sobre si mesmo a não ser aquele que encara todo o seu relacionamento humano à luz dos interesses de Deus, e não dos próprios.
Senhor, ensinai-me este segredo divino. Uni-me tão fortemente a Vós que nenhuma criatura consiga separar-nos. Sinto ser a fraqueza personificada, pois tudo me condiciona: o olhar de um amigo, o gesto de um inimigo, uma palavra mordaz, um sorriso, tudo atua em mim e me perturba. A adversidade abate-me, a contrariedade desanima-me, o sofrimento enerva-me, a contradição exaspera-me; um gesto afetuoso cativa-me, a sua ausência desgosta-me, uma boa palavra conforta-me, um louvor lisonjeia-me, uma aprovação estimula-me; ando à mercê das minhas impressões. O meu espírito e o meu coração não me pertencem.
Senhor! Restituí-me a independência de filho de Deus que viestes implantar na terra. Que não dependa dos juízos e das atitudes de ninguém senão de Vós e daqueles que Vos representam, que o respeito humano não tenha influência sobre mim, que seja insensível à aprovação ou à critica, que a multiplicidade das relações necessárias não me distraia de Vós, e as encare e cultive todas como Vós a encarastes quando vivíeis entre nós.
(O dom de si, vida de abandono em Deus, pelo Pe. Joseph Schrijvers, Quadrante, 1993)