A MORTE DO PAI CRISTÃO
A bênção do pai fortifica a casa do filho.
(Eccl. 3,11)
Morre-se sozinho, disse Pascal. Ninguém nos acompanha no último trajeto da vida. É necessário enfrentarmos a sós a obscura passagem. Há, todavia, alguém à nossa espera do outro lado oposto "quando voltamos do vale das lágrimas e das dores". É nosso Pai que está à porta da mansão celestial; é Deus, o meu Deus, meu Pai, cuja bondade foi até o extremo de sacrificar o próprio filho para me possibilitar a entrada no céu.
Também o pai morre sozinho, e para ele essa solidão é talvez mais dolorosa do que para os demais mortais, precisamente porque a sua vida pertenceu sempre aos outros; naquele instante, porém, eles não podem valer-lhe, morre sozinho.
A separação não é para ele uma dolorosa renúncia, pois tudo o que de precioso possui deu-o aos filhos. Não tendo procurado a felicidade nesta terra, não o atormenta a dor de ter que deixá-la. Qualquer que tenha sido a sua vida, breve ou longa, ela foi completa, inteira, porque foi pai. O pai preparou-se para deixar o mundo. Em todas as bênçãos que pronunciou sobre os filhos foi-se despedindo deles; com elas deu tudo aos que abençoava; consagrou assim todas as coisas temporais na verdade.
Não tendo vivido para si mesmo tem direito à vida eterna. A paternidade é, não nos cansamos de dizê-lo, renúncia e amor.
Com o seu amor o pai passa do tempo à eternidade. Sua renúncia separa-o, neste mundo, dos filhos; entrega-os ao mundo, ao povo, à Igreja, com a finalidade de uni-los mais fortemente a si, na eternidade.
Morrendo, o pai retorna à verdade, pois vai entregar nas mãos do Pai a paternidade que dEle recebeu. Morrendo solitário parte ao encontro de Deus na solidão, superando a dor do desapego na plenitude feliz da unidade. Dando tudo aos filhos opulentou-se sempre mais, pois deu por amor e com amor, e é precisamente doando que o amor se enriquece. Se isto não for presunção podemos dizer que o pai aumenta as coisas pertencentes a Deus, pois devolve a Deus aumentada, a paternidade que dEle recebeu.
A vontade do pai trespassado está completamente absorvida pela vontade do Pai celeste. A sua morte não se verifica de uma só vez; a sua partida iniciou-se no dia em que ele gerou os filhos para a vida espiritual. Naquele parto (espiritual) começou a sua volta para Deus. A missão do pai não pertence ao tempo, mas à eternidade. Se sua vida foi um sacrifício, a consumação do mesmo dá-se na morte. Quando o pai deixa este mundo a família passa do presente para o futuro. Este dia é tão grande para a família como o dia em que o pai abençoa pela última vez os filhos.
Aqui parece claramente que o renascimento do cristão à verdadeira vida realiza-se na medida em que ele morre à vida, consagra e santifica essa mesma vida. Ninguém vive para si, menos ainda na hora suprema da morte. Quando retornamos ao Pai encontramos nEle o nosso fim, no seu amor pelas criaturas.
Morrendo, o pai radica-se na eternidade; não sozinho, mas com toda a sua família. Jesus Cristo conquistou com a Sua morte a vitória da humanidade. Como um alter Christus o pai oferece o mesmo sacrifício quando morre abençoando a família.
Um pai cristão não morre. Os filhos que rodeiam o leito do agonizante recebem a última bênção como um ato heróico oferecido para a santificação da família. Após a morte o pai vigia sobre a herança cristã, administrada por ele durante a sua existência, entregue agora aos filhos. Se foi abençoada marcou um acréscimo ao reino de Deus.
Ele creu e amou, por isso Deus lhe dará o reino. Mediante a fé o homem une-se ao passado, mediante o amor o pai torna-se fecundo no futuro.
Ninguém pode morrer com o coração tão cheio de confiança como o pai. Muitas vezes foi-lhe confirmada a promessa da vida eterna aos filhos e netos. É possível que alguém dos que trazem o seu sangue nas veias se perca, mas, com a graça de Deus ele não será responsável, muitos, porém, salvar-se-ão por seu intermédio. Nestes a sua descendência produzirá frutos para a vida eterna. Quem desejaria tornar-se pai, se com isso não esperasse aumentar, com os seus descendentes, o reino de Deus? Esse reino está na terra, todos o desejam, ninguém o experimenta, mas ele existe na esperança dos herdeiros.
Muitos dizem: eu creio na vida eterna; mas nessa fé há um grande receio de perder a vida presente. Como poderiam experimentar tal receio os que Deus favoreceu com a paternidade? isto significaria por a prova a confiança em Deus para as gerações futuras.
O pai contempla impávido a aproximação da morte. Eis o seu testamento:
Meus filhos, à vossa mãe e a mim, que em nome de Deus vos chamamos à vida, deveis a existência. Sois sangue do meu sangue, pois pela paternidade eterna fiz-vos meus filhos e entendo nunca vos abandonar. Eduquei-vos, introduzi-vos na vida; a vida que vivereis é em grande parte a minha vida. Dei-vos tudo que pude; santifiquei-me por vós. Se pertenceis às fileiras dos remidos o mérito é também meu. O que vos deixo como bens de fortuna é nada. Vale muito mais o meu bom nome, essencial, porém, é a herança cristã que vos deixo. Eis a minha bênção: crescei e multiplicai-vos! Sede felizes, mais felizes que vosso pai! Mas sobretudo tornai-vos melhores, mais pios, mais religiosos! Aumentai o reino de Deus entre vós! Então a minha linhagem será grande em vós e crescerá na eternidade. Eu morro para viver em vós. A minha bênção é também o meu obrigado; foi Deus quem vos deu a mim; indicaste-me o caminho que conduz a Deus, vosso é, portanto, o mérito de ter feito crescer, em mim, o homem. Obrigado.
(Paternidade, por José Kuckhoff, edições Paulinas, edição de 1954)
PS: Grifos meus.