quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A abertura do Lado


Mal Nosso Salvador deu o último suspiro, foram quebrados os ossos aos ladrões para lhe apressar a morte. A Lei ordenava que o corpo dos crucificados, e por conseguinte malditos de Deus, não permanecessem na cruz durante a noite. Além disso, aproximando-se o Sábado da semana Pascal, os sequazes da Lei deram-se pressa em matar os ladrões e enterrar todos os sacrificados. Mas restava ainda uma profecia por cumprir referente ao Messias. A realização dela deu-se quando,

Um soldado lhe abriu o lado com uma lança;
E imediatamente jorrou sangue e água. (João 19,34)

O Divino Desgraçado tinha amealhado algumas gotas preciosas de seu Sangue para derramar depois de entregue o espírito, mostrando assim que o seu amor era mais forte do que a morte. Saiu Sangue e água; Sangue, preço da Redenção e símbolo da Eucaristia; água, símbolo da regeneração pelo batismo. São João testemunha da cena em que o soldado trespassou o Coração de Cristo, escreveu mais tarde a esse propósito:

Este é Jesus Cristo cuja vinda
nos foi tornada conhecida pela água e sangue;
Não pelo água somente, mas pela água e sangue. (I João 5,6)

Não se tratava apenas dum fenômeno natural, tanto mais que João lhe deu um significado misterioso e sacramental. A água aparece no começo do magistério do Senhor, quando foi batizado, e o Sangue no encerramento dele, quando se ofertou como oblação pura. Ambos se tornaram o fundamento da fé, pois no Batismo, o Pai declarou-o seu Filho, e na Ressurreição deu de novo testemunho da sua Divindade.


... Ainda que o poupassem de brutalidade arbitrárias, como a de lhe partirem as pernas, havia, contudo, uma intenção Divina misteriosa no rasgar do Coração Sagrado de Deus. João, que se reclinou sobre o peito do Senhor durante a Última Ceia, recordou muito a propósito a abertura do Coração. Quando do Dilúvio, Noé abriu uma porta do lado da arca, pela qual entravam os animais para escaparem à inundação; agora, é aberta uma nova porta no Coração de Deus, entrando pela qual os homens podem escapar do dilúvio do pecado. Quando Adão adormeceu, foi Eva formada do seu lado e chamada mãe de todos os viventes. Agora, quando o novo Adão inclinou a cabeça e adormeceu na Cruz saiu do seu lado a esposa, a Igreja, sob a figura do Sangue e água. No coração aberto estão cumpridas as suas palavras:

Eu sou a porta; se alguém entrar por mim,
Será salvo. (João 10,9)

Santo Agostinho e outros escritores Cristãos primitivos dizem que Longino, o soldado que abriu os tesouros do Sagrado Coração, ficou curado duma infecção de cegueira; e que mais tarde morreu como bispo e mártir da Igreja, celebrando-se a sua festa a quinze de Março. Ao ver aquela ação, João recordou-se de Zacarias, seis séculos antes:

Eles contemplarão aquele a quem trespassaram. (João 19,37)

Não há dor antes de se olhar para a Cruz; ao contrário, a dor dos pecados brota da visão da Cruz. Nenhuma desculpa pode ser aceita quando a vileza do pecado se revela em toda a sua profundidade. mas a seta do pecado, que fere e crucifica, traz o bálsamo do perdão que cura.

Pedro viu o Mestre e saiu logo para chorar amargamente. Todos os que olharam para a serpente de bronze ficaram curados da mordedura envenenada; agora a figura torna-se realidade e todos os que olham para Aquele que tinha semelhança do pecador, mas sem o ser, ficam curados do pecado.

Todos são obrigados a olhar, quer lhes agrade quer não. Cristo transpassado levanta-se blasonado nas encruzilhadas do mundo. Alguns olham e sentem-se movidos à penitência; outros olham e seguem pesarosos mas não arrependidos, como sucede à multidão no Calvário "que voltou para casa batendo no peito". Aqui, o bater no peito era sinal de impenitência e de recusa de olharem para aquele a quem transpassaram. O bater no peito que salva é o mea culpa.

Ainda que os algozes lhe atravessaram o lado, não lhe quebraram, contudo, osso algum, como estava profetizado. Diz-se no Êxodo que o Cordeiro Pascal não devia ter osso algum do corpo partido. Este cordeiro era apenas o protótipo do que se verificaria literalmente no Cordeiro de Deus:

Isto sucedeu para que se cumprisse o que estava escrito:
Não lhe quebrareis nenhum dos seus ossos. (João 19,36)

A profecia cumprida a despeito dos inimigos que reclamavam o contrário. Assim, o Corpo físico de Cristo, apesar das chagas, pisaduras e cicatrizes eternas, conservava intacta a estrutura interna. Isto parece um prenúncio do que sucederia com o seu Corpo Místico, a Igreja, a qual, apesar das chagas morais e das cicatrizes dos escândalos que havia de sofrer, nem um osso sequer do seu corpo seria, contudo, jamais quebrado.

(A vida de Cristo - Fulton J. Sheen)
PS: grifos meus