terça-feira, 6 de abril de 2010

A dor supre o amor

A dor supre o amor


"Mas quando o amor é tão forte quanto a dor,
 o progresso da alma é extraordinário.
Ela se torna celeste;
Deus se inclina para contemplá-la,
 e o anjo das santas esperanças
desce dos céus para a vir colher."

Eis o fato que muitas vezes tenho observado. No princípio me surpreendeu; depois me extasiou.

Toda a existência começa pela felicidade e acaba pela tristeza. A ventura se nos apresenta com a aurora da vida e com ela se dissipa; vem depois a tristeza que não mais acaba. Porque? Parece que a realidade devia ser precisamente o contrário.

No começo da vida, quando ainda nada fiz nem mereci, porque tenho eu todos os dons e todos os júbilos? No fim, depois de ter conhecido o trabalho, a oração e o amor, porque todos os abandonos?

Pourquoi Dieu met-il doncede meilleur de la vie tout au commencement?
Dize, Senhor, porque pôs o melhor da vida, tudo, enfim, no começo?

Ó meu Deus, dizei-mo, a fim de que não me invada a tristeza nos meus derradeiros dias, e que o meu coração não se dilacere em uma lúgubre velhice, sem consolação e sem esperança, porque seria sem luz.

Como vimos, somos destinados a nos criar, trabalhando para a beleza da nossa alma. Ora, essa beleza nunca é terminada neste mundo. É preciso que ela sempre aumente. "Sede perfeitos como meu pai celeste é perfeito". Cumpre que caminhemos de luz em luz, de virtude em virtude; não nos devemos deter. Na felicidade, entretanto, o homem forçosamente interrompe a sua marcha: ele se deleita na ventura e nela quer permanecer.

Eis porque começamos pela felicidade; eis porque ela é passageira. Deus nos expele dali. Egredere, egredere. Caminhai, avançai, evitai o que vos detêm; não descanseis em meio da viagem. Devemos sempre prosseguir; e isto de tal modo nos foi ordenado por Deus, diz Bossuet, que Ele não nos permitiu sequer que parássemos no infinito.

E por isso, quando queremos repousar na felicidade, Deus faz um aceno, e a chama da dor arde sob os nossos pés e nos obriga a partir.

Eis a história da humanidade e a de cada uma das almas.

Vede o mundo. Começou pelo paraíso terrestre. Mas quanto durou? O homem não pôde muito tempo gozar dessa ventura; e foi necessário que Deus dali o expelisse, para que ele de novo achasse nas lágrimas a beleza perdida e o amor que se devanecera.

Vede o Cristianismo. Também ele começou por uma espécie de Éden. Mas que disse logo o Fundador? "Convêm para vós que eu parta. Expedit vobis ut ego vadam." E Ele acrescenta estas palavras profundas: "Se eu não partir, o Espírito não virá. Si enim non abiero, Spiritus non veniet."

Em outros termos, se a felicidade ficar, a felicidade dessa doce presença do Mestre e dos discípulos, o Espírito não virá, a chama sagrada do zelo, o belo fogo do sacrifício e da dedicação. Spiritus non veniet.

O mesmo se dá com qualquer existência. A criança nasce como num paraíso terrestre: é acariciada, amimada ternamente; mas isso não dura, nem pode durar. Cumpre que ela prove o fel da amargura, e beba a água da torrente. De outro modo, a virilidade do caráter se não revelaria. Spiritus non veniet.

Vem a época do casamento. É uma nova vida que surge e tem a sua hora de encanto. Mas se essa hora fosse prolongada, que se tornaria a alma? Os pais, os amigos, as obras de caridade, a visita aos pobres, as virtudes, tudo seria esquecido. O homem pararia em meio do caminho, em vez de prosseguir. Egredere, egredere.

É preciso partir, abandonando não o amor, mas os seus gozos; é necessário conhecer-lhe os limites e os desfalecimentos. O coração deve ser aperfeiçoado pelas mágoas. Se enim non abiero, Spiritus non veniet. O espírito, a chama, a virtude desinteressada, o sacrifício e a dedicação: eis o que o coração deve conhecer, pois que as virtudes do amor são mais belas e melhores do que as suas alegrias.

Na vida religiosa a situação moral é idêntica. Ela se inicia pelas doçuras do noviciado. Ó sagrados esposais da alma com Deus, quem descreverá o vosso encanto? É também uma lua de mel. Dentro em pouco os abandonos e as obscuridades se sucedem; a luz e a consolação, uma após a outra, se retiram. A alma se vê isolada, em um deserto, e a sua vida só se deriva da fé e do amor. E sob os seus pés se ateia, cada dia mais ardente, a flama da dor...

Eis a história de todas as almas e de todas as vidas. Ao despontar da existência, brilha uma hora de êxtase e de passageiro enlevo, como uma gota de mel à beira do cálice de amargura. Depois, a cada passo, vai diminuindo a fonte de júbilo, enquanto se avoluma a torrente das dores.

Cada dia o corpo se torna mais pesado, mais torturado, o coração, mais penoso o fardo que carregamos. Não nos podendo deter na felicidade, procuramos, ao menos, não caminhar na estrada das dores. É impossível. Depois de um sonho que se esvai, eis outro que subitamente se dissipa; e junto a um túmulo ainda mal fechado, um novo se abre... Em vão dizemos como o poeta:

"A dor acha sempre onde nos possa ferir. Depois de ter martirizado o corpo, amargura o espírito; e quando torturou o espírito, aflige o coração; e depois de o encher de angústias, novamente o salteia."

A esponja, no fundo do mar, quando saturada d'agua não mais se pode embeber. Mas no coração a capacidade de sofrimento é infinita. E assim chegamos no termo da vida. Todos os nossos sonhos se evolaram; tudo o que fizemos, desapareceu no esquecimento; tudo o que amamos, foi devorado pela morte.

Que nos resta?

Uns se desalentam e, desesperados, choram sobre essas ruínas.
Ó homem cego, não sabes o que resta? O teu coração, a tua fé.

O fogo da dor, se tudo destruiu, não aniquilou a tua alma. Quando se extinguiu a pira em que morreu Joana d'Arc, tudo havia desaparecido da nobre vítima, tudo fora consumido, exceto o seu coração.

A vida é também um fogo. No fim, só resta o coração purificado, engrandecido, transfigurado e embelecido pela dor, digno do céu para o qual ele nasceu e aonde pode remontar agora.

Eis o que a dor queria conseguir. E vós vedes assim que, no fundo, ela supre o amor. O que ela fez, a ele competia fazer. O amor ilumina, o amor purifica, embeleza, santifica e sublima; e se a dor hoje exerce essa gloriosa tarefa, é porque o amor já não é bastante poderoso para o exercer sem o seu auxílio.

Como é, porém, poderoso com ela! E como a dor é, por seu turno, um fraco operário, quando o amor não a acompanha! O verdadeiro impulsor da obra grandiosa é o amor; conhece as forças de que a dor dispõe, e só ele as sabe empregar.

Um amor pequeno e uma grande dor constituem uma aliança pujante, e os seus resultados já são maravilhosos. Mas quando o amor é tão forte quanto a dor, o progresso da alma é extraordinário. Ela se torna celeste; Deus se inclina para contemplá-la, e o anjo das santas esperanças desce dos céus para a vir colher.

(Excertos do livro: A dor, de Monsenhor Bougaud)

PS: Grifos meus.

ESPECIAL: Textos do livro: Corrija o seu filho, do Mons. Álvaro Negromonte

Nota: Reuniremos em um único post todos os capítulos do livro: Corrija o seu filho, do Mons. Álvaro Negromonte. Existem capítulos que foram transcritos apenas excertos e outros a transcrever.


Esse post receberá atualizações.
 
ESPECIAL
Textos do livro: Corrija o seu filho, do
Mons. Álvaro Negromonte
 
 
- Correção das crianças
  - O agitado
- O desobediente
- O que mexe no alheio
Primeira parte
Segunda parte (final)
- O que falta à verdade
Primeira parte
Segunda parte (final)

ESPECIAL: Textos do livro: Donzela Cristã, do Pe. Matias de Bremscheid

Nota: Reuniremos em um único post todos os capítulos do livro: Donzela cristã, do Pe. Matias de Bremscheid.

ESPECIAL
Textos do livro: Donzela Cristã, do
 Pe. Matias de Bremscheid


O dever - Nada simpático

O dever
Nada simpático



Inegavelmente, à primeira vista não é nada simpático o dever. Apresenta-se com ares de poucos amigos. Não traz "o melhor dos seus sorrisos" nos lábios com que dita uma obrigação. Vários motivos lhe dão essa fisionomia.

É obrigatório..., e por isso não pede, nem convida. Manda: senhorita, faça isto e deixe aquilo! Por assim dizer, leitora, pega-te pelo braço e coloca-te no teu posto sem olhar o tempo que há no céu. Despede-se novamente com uma ordem: Teu lugar é aqui, ouviste?

É multiplo..., e por isso se faz contradiço em toda parte. Não há vereda ou atalho da vida e do dia em que ele não esteja à espera de tua graça. Nas várias relações sociais, nos diversos compromissos religiosos, ei-lo escondido, sempre pronto a ditar uma ordem. Varia, como os lugares e as pessoas com que convives, lidas, te divertes, trabalhas.

É incessante... quase importuno. Pois pega de uma criatura no berço e só a deixa na sepultura. Está dentro de cada hora da vida, de cada palavra da boca, de cada desejo do coração, de cada ato da vontade livre. Quando falas com Deus, ei-lo a teu lado. Se pensas no passado ou indagas do futuro, logo o dever exclama: Presente!

É prosaico..., nada possuindo de poético, de emotivo para a fantasia da jovem leitora. Pois todo o mundo tem um dever a cumprir, vive às voltas com ele. Por ser tão "de cada dia", figura entre as coisas fora de menção. Raras vezes se erguem arcos de triunfo para celebrar o cumprimento do dever. Mais raro ainda lhe é acenderem uma chama votiva.

Mas assim mesmo, leitora, o dever é sagrado por ser a expressão da vontade de Deus. É abençoado porque melhora e dignifica o homem que o cumpre. O que faz a água fria com o ferro em brasa, faz o dever com a vontade do homem fiel: tempera-a, enrija-a, dá-lhe resistência.

O dever é como uma fornalha. Devora por isso a ferrugem da vontade que se entrega às suas chamas, tornando-a incandescente na presença do ideal.

Pobre moça, que foge dos seus deveres, que os sonega, que os ilude, que os regateia e deles se esquece! Pois a vida não tem bens suficientes para indenizar do esquecimento de um só dever...

(Excertos do livro: Audi Filia! Páginas para moças - Pe. Geraldo Pires de Souza)

PS: Grifos meus e itálicos do autor)

"A subida do Calvário"

"A subida do Calvário"
Padre Louis Perroy


PREFÁCIO
(Padre Leonel Franca, S.J.)

Para a humanidade remida a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo não tem apenas o interesse de um fato histórico para sempre desaparecido no passado irrevogável; é uma realidade sublime que continua a palpitar na vida espiritual das almas.

O Sacrifício do Gólgota é o grande ato religioso que, em nome da humanidade prevaricadora, ofereceu o Salvador à majestade infinita de Deus. Só pela Cruz podem elevar-se, aceitas, até o Seu trono as homenagens do nosso amor e da nossa gratidão, os nossos arrependimentos e as nossas súplicas; só pela Cruz descem até nós, com o perdão da Sua misericórdia, todos os benefícios da Sua bondade.

Nesta permuta entre a plenitude divina e a indigência criada resume-se toda a nossa vida religiosa, de que o Calvário é o centro necessário. As nossas almas hoje vivem tanto daquele Sangue divino que ainda continua a oferecer-se nos nossos altares, quanto as de João ou Madalena que, com os seus olhos, O viram correr das Chagas benditas do Redentor.

É por isso que sobre a simples meditação do sofrimento de Cristo se projeta algo da eficácia intrínseca do Seu Sangue redentor. À claridade da Cruz ilumina-se o grande problema da dor, trama necessária de que se entretece toda a existência humana. O sofrer tem um significado e as lágrimas um valor inestimável. Bem-aventurados os que choram, porque a dor eleva, purifica, expia, associa-nos numa comunhão inefável à missão redentora de Jesus. E quando a inteligência, iluminada pela graça, penetra estas razões superiores do sofrimento, o coração sofre com mais dignidade, com mais resignação, com mais amor.

A convicção da fecundidade divina das nossas lágrimas é o bálsamo mais eficaz para uma alma ferida. A dor que nos pode aproximar do Infinito Bem será sempre, na feliz expressão de um grande convertido moderno, uma dor bendita, “la bonne souffrance” (François Coppée).

Entre os autores recentes que escreveram sobre este assunto inesgotável, poucos o fizeram com tanta felicidade como o Padre Louis Perroy. Conhecimento visual dos lugares santos em que se desenrolaram as grandes cenas da Paixão, familiaridade com as fontes e documentos que permitem uma reconstrução histórica exata, experiência profunda do coração humano concorrem harmoniosamente para dar ao seu livro um interesse raro. Nestas páginas em que a simplicidade do Evangelho, a fineza da psicologia, a unção da piedade tão espontaneamente se completam, inúmeras almas, nas suas agonias interiores, encontraram luz, força e consolo.

Com o intuito de ampliar, entre os nossos leitores, o raio desta influência benfazeja, teve o sr. Luiz Leal Ferreira a idéia inspirada de nos oferecer uma cuidadosa tradução do livro do Pe. Perroy. Foi uma ação boa, destas que têm por alma a caridade cristã. Em recompensa, todos a quem beneficiar a sua leitura lhe ficarão devendo gratidão e amizade. Amigo e benfeitor nosso é quem nos estende a mão para ajudar-nos a bem sofrer. Numa terra devastada pelo pecado todo homem deverá subir o seu Calvário. Subi-lo com o Cristo e à imitação do Cristo é a única via de redenção eficaz.

INTRODUÇÃO
Mors mea, vita tua” – “A minha morte restitui-te a vida”.
(Inscrição gravada sob o grande Crucifixo da Catedral de Ancona)

Fora da cidade de Jerusalém, ao noroeste, pertinho das muralhas, erguiam-se defronte um do outro dois cabeços rochosos, dois montículos de quatro a cinco metros de altura, separados por estreito valado de vinte e cinco metros de largura aproximadamente, coberto de oliveiras, de figueiras e de jardins. O montículo mais próximo do baluarte rematava num cume em forma de crânio arredondado, nu, bravio; era aí que se executavam os condenados à morte. Chamava-se a esse cume desolado o Calvário; pertencia à cidade.

Em frente mesmo desse Calvário, o montículo que emergia dos jardins e das árvores, do outro lado do valado, havia, talhado numa rocha viva dos flancos, um túmulo composto, consoante o uso, dum átrio no fundo do qual se abria um vão muito baixo que dava para uma pequena câmara sepulcral, ocupada na metade da largura por um banco rochoso onde se depunha o corpo amortalhado e aromatizado; pertencia este túmulo, bem como os jardins contíguos, a um certo José de Arimatéia.

Foi nesse espaço estreito, no meio desses jardins, perto daquelas muralhas de Jerusalém onde se abria a Porta Judiciária, foi naquele cimo nu, arredondado como um crânio, foi nesse sepulcro, que em três dias se verificaram os dois maiores acontecimentos que jamais se poderão desenrolar na humanidade: a Morte e a Ressurreição do Cristo.

Na vida do Filho do Homem tudo deve confinar com esses dois cimos sagrados. Muito havia que Deus, cuja Providência se estende da minúcia ao conjunto, preparara esse cenário de um drama sangrento e glorioso. Aqueles dois bruscos lances de rochas no meio da planície, de há muito os olhava Deus como o lugar terrível e bendito onde haveria de esquecer, ante o Sangue que devia inundar o primeiro e a glória que devia resplandecer do segundo, todo o Seu furor, as longas iniqüidades dos homens e as funestas conseqüências da desobediência de Adão.

Nos seus passeios ao redor da cidade, nas caminhadas por aquela planície, Jesus, rodeado dos discípulos, devia ter muitas vezes passado perto daquela rocha selvagem do Gólgota. Com que olhar devia fixá-la? “Eu vo-lo digo: tudo quanto os profetas anunciaram vai cumprir-se. O Filho do Homem será traído, entregue aos gentios, cuspido, flagelado e crucificado”. E os olhos se lhe pousavam sobre o cimo do Calvário; mas “ressuscitará ao terceiro dia”, e através das árvores que o circundavam com o seu pálido emaranhado de folhagens de oliveiras, divisava o túmulo, a pedra vitoriosamente abatida e Ele a surgir na luz esplendida das auroras.

Per Crucem ad Lucem: era pela Cruz que Ele devia chegar à glória.

O Calvário permanecerá, pois, para Ele, durante a vida mortal, como o ponto culminante de toda a Sua existência. Nascera para subi-lo, e subi-lo como Vítima. Porque Jesus é antes tudo Vítima Expiatória: Ele o sabe, Ele o sente, Ele o quis, e Seu Pai O encara primeiramente como tal.
É o primeiro papel do Cristo, a Sua primeira razão de ser: satisfazer a Justiça de Deus, reparar o ultraje feito a Deus, salvar a honra de Deus; quase se poderia dizer que a salvação dos homens vem depois; além do que, o Pai bem entende primeiramente de satisfazer a Sua Justiça tremenda, e Jesus terá de “pagar inteirinha a dívida sem remissão e sem misericórdia” (Bossuet, Segundo Sermão sobre a Paixão).

Durante mais de 4000 anos preparar-se-á esta suprema expiação. Como nessas tempestades que se formam lentamente, em que há primeiro nuvens sombrias, clarões aterradores e regougos longínquos, as cóleras divinas se amontoam de século em século através da humanidade culpada.

Por vezes o braço de Deus sai como um relâmpago e traça a grandes traços, bruscos e rápidos, um esboço do Seu furor. Conta Ele acabar mais tarde: a príncipio são simples bosquejos trágicos ou sangrentos até nos animais. Assim a vaca avermelhada que imolavam pelo povo no Monte das Oliveiras, em frente ao Templo; assim aquele bode impuro de testa carregada de borlas e fitas vermelhas – o vermelho era a cor do pecado – que enxotavam para o deserto através do Vale do Cedron, porque estava coberto das iniquidades de todos. Assim ainda aquele cordeiro que degolam todas as tardes no Templo pelas três horas.

Depois, o desígnio firma-se sobre homens; assim Isaac, o filho único, querido, em quem repousam as longas esperanças de seu pai; levam-no à montanha, e esta montanha é tão perto do Calvário!... É a rocha de Moriah, onde devia edificar-se o Templo. Ele próprio carrega a lenha do sacrifício, e é o pai quem o vai imolar: que lúgubre quadro!

É ainda Jó, caindo do pleno poderio à miséria de um monturo, à porta da sua cidade ou de sua casa!
Jonas, que atiram ao mar, de quem os homens se desvencilham como de um peso que atiça a cólera divina...
E no meio dessas figuras trágicas são exclamações que parece indicarem uma cólera opressiva.
Maledictus a Deo est qui pendet in lingno (Deut 21, 23): maldito o que pende da cruz!
Ó Deus! Que querem dizer estes enigmas?

Vimo-lo, vimo-lo, exclama súbito e mais abertamente Isaías, é um leproso, um desamparado, um abandonado, não se lhe pode olhar, é um verme da terra, um fustigado de Deus (Isaías 53, 4).

E este clamor gela de espanto quantos o ouvem.
Afinal, cumpriram-se os tempos: eis a Vítima real e esperada. O Cristo nasceu!
Que cioso cuidado põe Deus em conservá-lo antes que suba ao Calvário! Há a preparação remota: é como um envolvimento progressivo da Justiça irritada.

Nasce Ele: uma manjedoura de animais Lhe serve de berço; uma gruta fria, durante a noite, é-Lhe o primeiro teto; depois o exílio, a perseguição, o olvido; depois o trabalho necessário para comer o pão quotidiano. O suor da oficina, o penoso labor do carpinteiro. E depois são os outros e esfalfantes labores do apostolado.
Tudo é já instrumento de vingança nas mãos de Deus: a poeira das estradas, as tempestades do lago, a fome, a sede no deserto de Jericó durante quarenta dias, a fadiga no poço de Jacó. Há, sim, milagres que esplendem: são as flores com que Deus coroa a Vítima.
Eis aqui com efeito o derradeiro triunfo: passeiam regiamente essa Vítima de Bethfagé a Jerusalém, onde Ela entra pela Porta Dourada: Hosannah Filio David!

Então está tudo pronto para a rude ascensão do Calvário.

Instrumentos do suplício: desde os de primeira escolha, como Judas, Herodes, Caifás e Pilatos, até os de baixo estofo, como a mão de um criado, o escarro de um soldado.

Torturas do Coração: pulverização da honra, esmagamento do ser humano, nada é esquecido; todas as criaturas são convocadas para aí trabalharem, cada uma à sua hora.

Por fim, é a última, a áspera subida do Gólgota.

E por sobre aquele cume, o meigo, o sangrento semblante do Senhor, a erguer olhos súplices para o alto e podendo dizer com a certeza de ser atendido:

Pater, dimitte illis.

Meu Deus, perdoai-lhes. Eis todo o drama da Paixão.

Eu vou seguir, ó Jesus, passo a passo a Vossa esteira sangrenta até esse alto cimo. Quero tocar cada um dos instrumentos de suplício que Vós a ele encaminharam.

Quero pesar cada uma das torturas que Vos trituraram o Coração; e, quando, chegado ao termo dessa estrada real e dolorosa, eu vir inclinar-se sobre mim o semblante do Senhor, levarei estampada essa doce e essa sangrenta imagem.

Marcada deste cunho divino, a minha vida se transmudará, eu não olharei mais a terra, subirei mais alto que o Calvário... lá onde os Vossos olhos moribundos procuravam e achavam a glória satisfeita do Pai.
Deus, respice in faciem Christi tui (Sl 43, 10). Respice in me et miserere mei (Sl 24, 16).

Meu Deus, olhai primeiro o semblante do Senhor, Vosso Cristo... e depois, olhai mais abaixo e dignai-Vos compadecer-Vos de mim. Assim seja.

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(Belissimo texto recebido por e-mail - mantive os grifos)

domingo, 4 de abril de 2010

As mãos de mamãe

As mãos de mamãe


A professora dera como tema para suas alunas o título acima. E explicou como fazê-lo, lembrando as mãos maternas que lavam, costuram, varrem. Era o fio da meada. As crianças debruçam-se sobre os cadernos e escrevem. Tudo pronto. As composições são recolhidas, corigidas.

- Fulana, diz a professora, já somou quantas mãos tem sua mãezinha? Duas para cá, duas para lá, duas aqui e duas ali. Some uma vez!

E a pequena soma em voz alta: "Mamãe tem duas mãos para papai, duas para cada uma de nós que somos oito, duas para a horta, duas para a cozinha, duas para os pobres e... duas para Deus. Tudo vinte e seis mãos!" - Não sabia a professora se o riso ou a comoção deveria tomar conta de seu semblante.

Daqui acho que mãe com vinte e seis mãos tem de ser necessariamente uma benção para os filhos. Mãos que se multiplicam de suas para vinte e seis! Nem faltaram duas para os pobres e duas, indispensáveis, para Deus.

Seria o caso de perguntar às mães que me ouvem às quantas andam a multiplicação de suas mãos. No elogio dado pelo Espírito Santo à mulher ideal, vem mencionado este: "Não comeu seu pão da ociosidade, duas mãos souberam manejar o fuso, acender as luzes, vender e comprar". Vivo repetindo que muito importam duas maternidades na família, que levam o nome de física e espiritual. E as mãos devem servir para uma e outra. Por isso devem desdobrar-se.

Infelizmente hoje há muito desequilíbrio no caso. Mães operárias quase só trabalham com as mãos nas máquinas. Outras, na fartura, deixam-nas ociosas ou lidando apenas com futilidades. Mãos multiplicadas em muitos trabalhos de fábricas, escritórios, empregos. Receio os maus efeitos de mãos que não se multiplicam para os pobres, não se juntam para Deus.

Uma criança, como essa que descreveu as "vinte e seis mãos" de sua mãe, saberá multiplicar também suas mãos futuramente. O exemplo diário ficou-lhe na alma. A originalidade de sua composição provou que as mãos maternas haviam causado impressão a seus olhos de criança.

Sobretudo ao ver que pobres e Deus eram considerados, como expressão do mandamento de amar a Deus e ao próximo. Hoje fala-se em tantos meios de educação moderna, escolas experimentais, etc. A primeira escola, sempre antiga e sempre moderna, é o lar e as lições que nele são dadas. Nada lhes supre a falta. Seu diploma de formatura é o mais indispensável e o mais promissor na vida.

(Excertos do livro: Mundo entre berços - Pe. Geraldo Pires de Souza)

PS: Grifos meus.

CRISTO RESSUSCITOU VERDADEIRAMENTE, ALELUIA!

CRISTO RESSUSCITOU
 VERDADEIRAMENTE,
ALELUIA!


A morte e a vida travaram entre si singular combate;
e o Autor da vida, havendo morrido,
reina agora vivo.
Rei vitorioso, tende misericórdia de nós.
Amém.

Nosso modesto blogue deseja a todos os leitores, uma Santa Páscoa!
Que Nossa Senhora nos dê a força para perseverarmos até o final.

Marchemos e rezemos!

A grande guerra

sexta-feira, 2 de abril de 2010

LA SOLEDAD DE MARÍA SANTÍSIMA

LA SOLEDAD DE MARÍA SANTÍSIMA


(Fonte: Blogue Radio Cristiandad)

Do Crucifixo

Do Crucifixo


Oh! invenção admirável do amor divino!

Para São Paulo à ciência do crucifixo reduzia-se toda a religião. Geralmente o Crucifixo é o compêndio de tudo quanto o cristão deve crer e praticar. O Crucifixo faz-nos conhecer toda a malícia do pecado, o excesso da nossa miséria e o excesso ainda maior da misericórdia divina.

O Crucifixo é a maior prova que Deus, embora sendo Deus, podia dar-nos do Seu amor e o meio eficaz que podia empregar para ganhar o nosso coração. Todas as virtudes acham-se contidas no Crucifixo: ele é a consumação dos caminhos interiores.

Direi uma palavra sobre cada um destes conceitos. A graça dirá muito mais ás almas dedicadas ou desejosas de se voltarem ao amor.

O Crucifixo é o compêndio de tudo quanto o cristãos deve crer. A pessoa Daquele que sofre, Filho único de Deus e concebido no seio de Maria por obra do Espírito Santo, nos propõe os dois grandes mistérios da Santíssima Trindade e da Incarnação. O objeto dos Seus sofrimentos nos instrui sobre o mistérios da Redenção e do pecado original.

O mistério da predestinação, o da graça, a vontade de Deus de salvar todos os homens encerram-se também na Cruz. Esta é a fonte de todos os Sacramentos, como me seria fácil mostrar minuciosamente; e todo o culto com que a Igreja honra a Deus reporta-se ao sacrifício da Cruz.

O Crucifixo é o compêndio de tudo quanto o cristão deve praticar. Toda a moral evangélica reduz-se a carregar cada um a sua cruz, renunciar a si mesmo, crucificar a carne e a cobiça, imolar-se á vontade de Deus. Jesus Cristo não prescreveu lei alguma nem deu conselho cujo cumprimento e perfeito modelo não se encontrem na Cruz. Ela é a mais viva e notável expressão de toda a doutrina evangélica.

O Crucifixo nos faz conhecer toda a malícia do pecado. Na verdade, não pode haver maior mal do que aquele que causou a morte de um Deus-Homem!

Antes de Jesus Cristo podia-se fazer alguma idéia da ofensa a Deus, porém, essa idéia era bem fraca e imperfeita. O suplício eterno do inferno, embora exceda a toda inteligência criada, não corresponde á malícia do pecado, porque pode castigar este, mas não basta para expiá-lo. Nada menos do que uma pessoa divina era necessária para reparar dignamente, por seus sofrimentos e humilhações, a injuria feita a Deus pelo pecado. Ao pé da Cruz é que aprendemos a julgar do pecado e a conhecer todo o horror que merece.

O Crucifixo ainda nos faz conhecer o excesso da nossa miséria, excesso tal, que não nos é possível remediá-lo por nossas próprias forças. Todo o gênero humano estava perdido irremediavelmente, perdido para a eternidade, para sempre privado da posse do soberano bem, se Jesus Cristo, sofrendo e morrendo na Cruz, não o houvesse resgatado, reconciliado com Deus, e restabelecido nos Seus direitos. Para isso bastava o pecado original, mas a esse pecado quantos pecados atuais mais graves não acrescentamos nós! Em que abismo de miséria não nos lançamos voluntariamente?

O Crucifixo faz-nos conhecer o abismo ainda maior da misericórdia divina. Um abismo atraiu outro abismo; o abismo dos nossos males foi absorvido e mergulhado no abismo infinito da misericórdia.

Oh! quanta razão tinha David em dizer que as misericórdias de Deus estão acima de todas as suas obras! Tudo quanto Deus fez na ordem da natureza nada é em comparação do que fez na ordem da graça. A bondade do Todo-Poderoso excedeu a si mesma, resgatando-nos. Nunca, nem mesmo no Céu, o nosso entendimento há de atingir a grandeza incompreendível desse benefício que a fé nos mostra no Crucifixo.

Deus, embora seja Deus, não nos poderia dar maior prova do Seu amor.

Qualquer prova por Ele dada devia ser consentânea aos direitos da sua justiça, aos quais não podia renunciar. Era mister fosse essa justiça aplacada. Mas por quem? Quem a poderia satisfazer, vingar e ao mesmo tempo poupar os culpados?

Oh! invenção admirável do amor divino! Deus transfere para o Seu próprio Filho todas as nossas iniquidades; n'Ele as castiga, vinga-se n'Ele e esse Filho adorável consente de todo o coração em ser por nossa causa a vítima da cólera divina! Que amor ao Pai! que amor no Filho! Quem pode pensar em tal arrebatamento de admiração e profunda gratidão?

Se Deus nos tivesse facultado propôr-lhe algum remédio para os nossos males, teríamos imaginado e escolhido por Ele? Se acaso este nos acudisse á mente, teríamos ousado propô-Lo? Semelhante meio de salvação só poderia ser concebido no coração de um Deus que nos ama infinitamente.

Se o nosso coração pode resistir a tanto amor, que dureza, que malícia, que ingratidão!

Deus imola o Seu próprio Filho, para retirar-nos do inferno e abrir-nos o paraíso; descarrega sobre Ele a Sua cólera e nos perdoa; nesse Filho nos adota por Seus filhos; confere-nos direito á Sua herança e nos prodigaliza todos os socorros sobrenaturais para a conseguirmos. E que nos pede Ele? Que O amemos, sirvamos e Lhe obedeçamos.

E nós não O amamos!
E consideramos o Seu serviço como jugo insuportável!
E violamos os Seus mandamentos!

Todos os crimes, todos os escândalos reinam hoje no cristianismo, com tanta e maior licença que entre os pagãos! A irreligião chegou a tal ponto que Jesus Cristo e a Sua Cruz tornam-se objeto de desprezo, zombaria e horror. A incompreensibilidade desse mistério de amor é exatamente a razão pela qual é rejeitado.

Poder-se-á conceber tal excesso de impiedade? Compreender-se-á até que ponto o amor desprezado, insultado e ultrajado deve estar irritado contra tantos cristãos apóstatas, secretos ou declarados!

Ah! que motivo para as almas boas amarem a Deus de todo o coração e O desagravarem, com sua dedicação, de tantos ultrajes! De que virtudes o Crucifixo não nos oferece modelo?

Amor de Deus, confiança em Deus, abandono ás suas vontades mais rigorosas, paciência inalterável, caridade para com o próximo, perdão das injúrias, amor dos inimigos, humildade, pobreza, abnegação inteira de Si mesmo; virtudes levadas ao cúmulo da perfeição, exercidas nas circunstâncias mais difíceis, praticadas com generosidade e coragem dignas de um Homem-Deus.

Depois disto, queixa-nos de que a virtude nos custa; disputamos a Deus bagatelas, censuramo-Lo por nos exigir demais. Um olhar para o Crucifixo fará nos envergonharmos das nossas queixas e da nossa covardia.

Temos sofrido e sofreremos em prol da nossa salvação algo que se aproxime, sequer de longe, dos sofrimentos e humilhações de Jesus Cristo? Ele era Deus - dirá alguém - e eu sou apenas uma fraca criatura. Ele era Deus, é verdade, por isso sofreu tudo quanto poderia sofrer a natureza humana unida á divina.

Se a união hipostática comunicava á Humanidade santa uma força infinita, proporcionados a esta foram os sofrimentos e, sem a poupar, a justiça de Deus carregou-a com todo o peso que ela podia suportar. É princípio de fé que Deus jamais permite sermos provados além das nossas forças.

Por mais fracos que sejamos, poderemos sempre suportar as provas que Ele nos envia, pois a medida do socorro iguala e mesmo excede sempre a dos males. Sem razão alegamos a nossa fraqueza e pensamos que para nós não sirva o exemplo do Salvador.

Finalmente, o Crucifixo é a consumação dos caminhos interiores. Mostra-nos Jesus Cristo sacerdote e vítima. Jesus imolando-Se Ele próprio á glória do Pai, imolando-Se voluntariamente e dedicando-Se á Sua justiça.

Poucas almas amadas por Deus são chamadas a esse estado de vítima e de semelhança expressa com Jesus crucificado. Mas as que têm motivo para se julgarem destinadas a essa honra devem compartilhar os sofrimentos e humilhações do Salvador; devem plantar no coração a Sua Cruz, ou antes, devem deixar que Ele mesmo a plante e enterre. Jesus submisso e obediente até á morte, deve ser o seu modelo, a sua consolação e força.

Se ás vezes as suas penas lhes parecem excessivas, se lhes faltar coragem; se forem tentadas a cusar Deus de injusto rigor, detenham os olhares no Crucifixo. Jesus na Cruz responderá a tudo e sairão de perto d'Ele com o desejo de sofrerem ainda mais.

Seja o Crucifixo o nosso grande livro, seja o livro não somente dos nossos olhos, mas do nosso coração.

Peçamos a Jesus que nos ensine a ler nesse livro e que nos descubra todos os Seus segredos, não para que apenas na oração os contemplemos, senão para os praticarmos durante toda a nossa vida. Entremos no caminho interior por uma dedicação absoluta, sem reserva, á vontade de Deus; entreguemo-nos inteiramente ao Seu espírito e á Sua graça. Façamos de todo o coração, no momento dado, todos os sacrifícios por Ele exigidos de nós; peçamos-Lhe que tome e arranque á força o que não teríamos coragem de dar-Lhe.

Em uma palavra, deixemo-nos reduzir ao estado de Jesus Cristo expirando na Cruz, nas dores, nos opróbrios, no aparente abandono do Pai, reunindo na Sua alma e no Seu corpo todos os males de uma vítima da justiça divina e do furor das paixões humanas.

(Excertos do livro: Manual das almas interiores - Pe. Grou - Companhia de Jesus)

PS: Grifos meus.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

A Santa Eucaristia e a Morte do Salvador

A Santa Eucaristia e a Morte do Salvador


"Todas as vezes que consagrardes o Mistério Eucarístico,
 anunciareis a Morte do Salvador"
(I Cor 11,26)

Seja qual for o aspecto sob o qual encaremos a Eucaristia, lembra-nos ela de modo frisante a Morte de Nosso Senhor. Institui-a na véspera de morrer, na noite em que Se entregou: "Pridie quam pateretur in nocte qua tradebatur". O nome que lhe é dado é o testamento fundado no Seu Sangue: "Hoc testamentum est in sanguine meo".

O estado de Jesus é um estado de Morte. Nas aparições de Bruxelas em 1290 e de Paris em 1369, mostrou Suas chagas, qual nossa Vítima Divina. Sem movimento, sem vontade, assemelha-se ao cadáver que é carregado. Em redor, reina silêncio mortal; Seu altar é um túmulo que encerra ossos de mártires. Encima-O uma cruz, alumia-O a lâmpada, como alumia os túmulos. Envolve a Hóstia santa, o Corporal, novo sudário - novum sudarium.

O Sacerdote, ao celebrar o Sacrifício, traz sobre si as insígnias da Morte; os paramentos santos são todos ornados da cruz, que ainda traz pela  frente e pelas costas. É sempre a Morte, sempre a cruz. Tal o estado da Eucaristia considerada em si mesma.

Considerada enquanto Sacrifício e Comunhão, é a Morte de modo mais sensível ainda. O sacerdote pronuncia, em separando, sobre as matérias do pão e do vinho, as palavras sacramentais, de forma que, pela virtude intrínseca destas palavras, o corpo deveria estar separado do sangue - e isto equivale a morrer.

Se a morte não se apresenta em verdade, é que o estado glorioso e ressuscitado de Jesus Cristo a tal se opõe, mas, ao menos, subtrai Ele da Morte tudo quanto pode; reveste-Lhe a forma e vemo-Lo qual Cordeiro imolado por nós. E assim Jesus Cristo continua na Sua Morte mística o Sacrifício da Cruz, renovado deste modo milhares de vezes pelos pecados do mundo.

Na Comunhão consome-se a Morte do Salvador. O coração do comungante torna-se-Lhe o túmulo, pois cessa o estado sacramental ao dissolver-se, sob a ação do calor natural, as Santas Espécies: Jesus-Hóstia não mais se encontra em nós sacramentalmente. É a Morte do Sacramento, a consumação do holocausto.

Túmulo glorioso no coração do justo, túmulo ignominioso no coração do pecador. Na alma purificada, Nosso Senhor depõe, ao perder a entidade sacramental, sua Divindade, seu Espírito Santo, e em virtude disto, em gérmen de ressurreição; mas na alma culpada, Jesus não sobrevive, a Eucaristia frustrou seu fim. A Comunhão torna-se uma profanação. É a Morte violenta e injusta de Nosso Senhor crucificado por novos carrascos.

Porque quis Nosso Senhor estabelecer uma relação tão íntima entre o Sacramento da Eucaristia e a Sua morte?

Primeiro, para lembrar-nos o preço que Lhe custou seu Sacramento. A Eucaristia com efeito, é o fruto da Morte de Jesus. A Eucaristia é um testamento, um legado, que só tem efeito pela Morte do testador, Jesus precisou morrer para validar Seu testamento. Digamos, portanto, cada vez que estivermos em presença da Eucaristia:

"Este precioso testamento custou a Jesus Cristo a Vida - prova de Seu imenso Amor, pois Ele mesmo disse que não há amor maior do que dar a vida pelo amigo". Em Jesus, morrendo para deixar-nos a Eucaristia, para no-la conquistar, temos a suprema prova de Seu Amor.

Quantos pensam nesse valor da Eucaristia?

E todavia, aí está Jesus a no-lo dizer. Mas, quais filhos desnaturados, só queremos utilizar-nos e gozar das riquezas sem pensar Naquele que no-las mereceu em troca de Sua própria Vida.

Segundo para nos redizer incessantemente quais devem ser os efeitos da Eucaristia em nós. Em primeiro lugar deve fazer-nos morrer ao pecado e ás inclinações viciosas; em segundo, morrer ao mundo, crucificando-nos com Jesus Cristo e exclamando com São Paulo: "Mihi mundus crucifixus este et ego mundo". Em terceiro, morrer a nós mesmos, aos nossos gostos, desejos, sentidos para nos revestir de Jesus Cristo de tal forma que Ele viva em nós e que nós sejamos apenas Seus membros, dóceis a Suas vontades.

E, finalmente, para nos fazer participar da Sua Ressurreição gloriosa, Jesus Cristo Se semeia em nós. Ao Espírito Santo cabe reanimar esse gérmen e por ele dar-nos novamente a Vida, Vida gloriosa que jamais terá fim.

Tais algumas das razões que levaram Jesus Cristo a envolver nas insígnias da Morte esse Sacramento de Vida, Sacramento onde reina glorioso e triunfa Seu Amor. Ele quer pôr-nos incessantemente sob os olhos o quanto Lhe custamos e quanto devemos fazer para corresponder ao Seu Amor.

"Ah! Senhor, dir-Lhe-emos com a Santa Igreja, Vós que, nesse admirável sacramento, nos deixastes uma lembrança tão viva da Vossa Paixão, concedei-nos tratar o Sagrado Mistério de Vosso Corpo e Sangue com respeito tal, que mereçamos sentir em nós a todo momento os frutos de Vossa Redenção."

(Excertos do livro: A Divina Eucaristia - Volume I - São Pedro Julião Eymard)

PS: Grifos meus.

O Sacerdócio

O Sacerdócio


"Devo abraçar a Cruz de Jesus Cristo,
nela me crucificar e querer ser crucificado
por Deus e pelos homens,
até morrer por amor a Ele."
(São Pedro Julião Eymard)

O Sacerdócio é a dignidade maior que há sobre a terra. Supera a dos reis. Seu império se exerce sobre as almas. Suas armas são espirituais. Seus dons são divinos. Sua glória, seu poder, os do próprio Jesus Cristo.

O Sacerdócio gera as almas à Graça e à Vida Eterna. Possui as chaves do Céu e do Inferno. Tem todo poder até sobre Jesus Cristo, a quem faz descer cada dia sobre o Altar, e de quem recebe todo o Poder gracioso. Pode perdoar qualquer pecado, pois Deus se comprometeu a ratificar no Céu a sentença dada na Terra.

Poder formidável! Poder divino que ordena ao próprio Deus!

O Anjo é servo do Sacerdote. O demônio treme em sua presença. A Terra considera-o como seu salvador enquanto o Céu nele vê o príncipe que lhe conquista Eleitos. Jesus Cristo tornou-o num outro Cristo. É um Deus por participação. É Jesus Cristo operando.

O Sacerdócio é o estado mais santo. E a vida deve estar em relação com a dignidade.

Quão pura deve ser a vida do padre! Mais pura, afirma São João Crisóstomo, que os raios do sol, uma vez que deve ser um mesmo sol. "Vos estis lux mundi" (Mt 5,14).

Mais incorruptível que o sal, que serve para preservar outras substâncias da corrupção. "Vos estis sal terrae" (Mt 5,13). Mais casto que as virgens. Anjo num corpo mortal, morto já a toda concupiscência.

Quão humilde! Sua humildade deve igualar a sua dignidade. Tudo quanto o eleva vem do próprio Deus, mas tudo quanto o rebaixa vem dele mesmo. Por si só é pecado, miséria, nada.

Quão caridosa! Sua caridade deve ser tão grande quanto o próprio Deus, que não o fez senão o Seu ministro de caridade e de misericórdia na terra.

Quão doce! Sua doçura deve ser a do seu bom Mestre, a quem os povos chamavam de a suavidade, a quem as crianças amavam como a mesma Bondade.

O  sacerdote deve ser a imagem viva de Jesus Cristo, até poder dizer a todos, com São Paulo: "Imitatores mei estote, sicut et ego Christi" (I Cor 11,1).

O Sacerdócio é o ministério mais glorioso para Deus

- O sacerdote completa a criação divina, elevando o homem a Deus e refazendo-o à sua imagem e semelhança, maculada e desnaturadas pelo pecado. "Creati in Christo Jesu" (Ef 2,10). Pelo seu ministério somos recriados em Jesus Cristo.

Ergue as ruínas desse edifício magnifíco e fá-lo numa obra-prima de Graça, num objeto em que Deus se há de comprazer. O homem batizado torna-se novamente filho de Deus, enquanto o homem santificado se torna um membro honoroso de Jesus Cristo, rei espiritual do mundo.

- O sacerdote prolonga a missão do Salvador na Terra.

No Altar continua e remata o Sacrifício do Calvário, aplicando às almas os frutos divinos da salvação.
No confessionário, purifica-as no Sangue de Jesus aplicando às almas os frutos divinos da salvação.
No púlpito, publica a Sua Verdade, o Seu Evangelho de amor. Reflete nas almas os raios desse Sol divino que ilumina o homem de boa vontade, fecundando-o.

Aos pés do Tabernáculo, adora o seu Deus oculto, por amor, como os Anjos O adoram em sua Glória. Aí ora pelo seu povo. É o mediador poderoso entre Deus e o mísero pecador.

No mundo, o sacerdote é o amigo do pobre, consolador nato do aflito; é o homem de Deus. Quão bela é a sua missão, mas quão santo deverá ser para poder servir dignamente a Deus e não se perder, como o anjo, pelo orgulho de sua dignidade!

E como adquirir essa santidade?
Por Jesus Cristo, que o ama e lhe prodigaliza as Suas Graças, os Seus favores.

A águia voa com mais força e mais facilidade que o passarinho, pois sua força está nas suas asas. A do sacerdote está no amor régio de Jesus Cristo, seu Mestre.

O Espírito de Jesus no Sacerdote

O sacerdote deve viver do Espírito de Jesus. "Qui adhaeret Domino, unus spiritus est" (I Cor 6,17). "Si quis spiritum Christi non habet, hic non est ejus" (Rom 8,9). Ora, o espírito de Jesus é um espírito de verdade e de amor.

Espírito de verdade

Jesus Cristo veio, qual luz poderosa e divina, dissipar as trevas do erro. A todos pregou a Verdade de que foi testemunha fiel, até derramar o Seu próprio Sangue. É a Verdade. "Ad hoc veni in mundum, ut testimonium perhibeam veritate" (Jo 18,37).

Eis a regra, a missão, a coroa do Sacerdote - a minha por conseguinte. Devo viver da Verdade de Jesus Cristo - regra invariável de minha vida. "Vos estis lux mundi" (Mt 5,14). A verdade é toda a minha vida. Dela devo me alimentar cada dia pela meditação, pelo estudo sagrado.

Jesus Cristo fez-me apóstolo, defensor, testemunho desta mesma Verdade, e oxalá, talvez mártir! Jamais hei de me envergonhar da Verdade de Cristo. Devo, pelo contrário, intrepidamente, anunciá-la, pura e forte, aos grandes e pequenos, na paz e na guerra. "Eritis mihi testes" (At 1,8).

A Verdade é minha espada de dois gumes. É o centro de realeza do meu Sacerdócio. Para lhe ser sempre fiel, é mister que a ame, dela viva, disposto se preciso for a morrer por ela.

Espírito de amor

Jesus é o Amor divino humanizado, tornado visível e sensível.

- O Amor de Jesus é cheio de doçura e misercórdia. "Ecde Rex tuus venit tibi mansuetus" (Mt 21,5). "Discite a me, quia mitis sum, et humilis corde" (Mt 11,29).

Ó quão doce, quão paciente foi esse amor Amor de Jesus para comigo, enquanto eu O ofendia, enquanto não O amava! Quão caridoso, quão compassivo para comigo, que me desgraçara pela minha própria culpa afastando-me dele. Quão paternal, quão honroso, posso dizer, foi o meu perdão!

Assim também devo proceder em relação ao próximo e nada mais farei do que aquilo que Jesus já fez para mim, aquilo que me pede em troca de gratidão.

- O Amor de Jesus é generoso. Dá-me tudo quanto tem - Verdade, Graça, Glória, Vida e Morte, nada se reservando para Si. Dá-me o Santíssimo Sacramento tudo quanto É.

Que Amor!
Quem me ama assim?
Que Lhe posso eu dar?

Dar-Lhe-ei tudo quanto tenho. Dar-Lhe-ei a mim mesmo. "Dilectus meus mihi, et ego illi!" (Ct 2,16).

- A Amor de Jesus é forte como a morte: "Fortis est ut mors dilectio" (Ct8,6). Em prova disto, quis sofrer fome, sede, pobreza, desprezo, humilhação por mim. Quis passar pelo sofrimento, dar-me todo o seu Sangue, morrer na Cruz por entre o abandono, as humilhações, os desprezos de todo o Seu povo.

Eu era o fim do Seu Amor! "Dilexit me, et tradidit semetipsum pro me" (Gl 2,20). Devo, por conseguinte, também sofrer pelo amor de Jesus, se Lhe quiser provar que o meu é desinteressado, e verdadeiro. Devo abraçar a Cruz de Jesus Cristo, nela me crucificar e querer ser crucificado por Deus e pelos homens, até morrer por amor a Ele.

"Quis nos separabit a caritate Christi?... Sed in his omnibus superamus propter eum, qui dilexit nos!" (Rm 8,35.37).

(Excertos do livro: A Divina Eucaristia -  Volume III - São Pedro Julião Eymard)

PS: Grifos meus

Quinta-feira Santa - Lava-pés e Instituição da Santa Eucaristia

Quinta-feira Santa
Lava-pés e Instituição da Santa Eucaristia


"Sabendo que o Pai depositara em suas mãos todas as coisas,
começou a lavar os pés dos discípulos."
( Jo 13,3-5)

Ora, discorramos por todas as ações de Cristo neste mesmo dia, sem sair dele, e veremos como todas confirmam este parecer. Quando o amoroso Senhor deu princípio à primeira, que foi lavar os pés aos discípulos, nota e pondera o Evangelista que se deliberou o Divino Mestre a uma ação tão prodigiosa, considerando e advertindo que seu Padre lhe tinha posto tudo nas mãos: Sciens quia omnia dedit ei Pater in manus, coepit lavare pedes discipulorum (Sabendo que o Pai depositara em suas mãos todas as coisas, começou a lavar os pés dos discípulos - Jo 13,3-5).

Muitas outras vezes se faz menção no texto sagrado deste tudo dado a Cristo por seu Eterno Padre: Omnia mihi tradita sunt a Patre meo. Omnia quaecumque habet Pater, mea sunt. Omnia quae dedisti mihi, abs te sunt (Todas as coisas me foram entregues por meu Pai - Mt. 11,27 ; Todas quantas coisas tem o Pai são minhas - Jo 16,15; Todas as coisas que tu me deste vêm de ti - Jo 17,7)

E em outros muitos lugares. Pois se tantas vezes se repete que o Padre deu tudo a seu Filho, por que razão só neste lugar se diz que esse tudo lho pôs nas mãos: Sciens quia omnia dedit ei Pater in manus? Sem dúvida pela correspondência e oposição que têm as mãos com os pés. O intento do evangelista era encarecer o amor de Cristo neste dia para com os homens, e haver o Filho de Deus de lavar os pés aos homens, com aquelas mesmas mãos em que o Eterno Padre tinha posto tudo, parece que levantava tanto a baixeza da mesma ação, que chegava a tocar no Padre.

Por isso disse Pater, com grande advertência. Bem pudera o evangelista dizer Deus, como logo continuou: Sciens quia a Deo exivit, et ad Deus vadit (Sabendo que Ele saíra de Deus, e ia para Deus - Jo 13,3) - mas disse nomeadamente Padre: Sciens quia omnia dedit ei Pater in manus - para, assim como contrapôs as mãos aos pés, contrapor também o Padre aos homens.

E verdadeiramente nesta oposição de mãos e pés, e de Padre a homens, parece que foram mais amados os homens, que o mesmo Padre.

O amor todo é estimação. E quem haverá que, vendo ao Filho de Deus lavar os pés aos homens com aquelas mesmas mãos em que o Padre tinha posto tudo, não lhe pareça que a olhos vistos fez mais estimação o Filho dos pés dos homens que das dádivas do Padre?

O Padre estimou tanto ao Filho que tudo quanto tinha pôs nas mãos do Filho: Ominia dedit ei Pater in manus (O Pai depositara em suas mãos todas as coisas - Jo 13,3) - e o Filho estimou tanto aos homens que, com tudo quanto o Padre lhe tinha posto nas mãos, pôs as mesmas mãos aos pés dos homens: Coepit lavare pedes discipulorum (Começou a lavar os pés dos discípulos - Jo 13,5).

- Notai este modo de lavar, que foi muito diverso do que costuma ser. Não lavou os pés aos homens com as mãos vazias, senão com as mãos cheias. Assim lavou, e assim havia de lavar, porque assim lava Deus. Deus quando lava, não só alimpa, mas enriquece: alimpa, porque nos tira as manchas da culpa, e enriquece, porque juntamente nos enche dos tesouros da graça.

Assim que, sendo Deus o que lavava os pés aos discípulos, claro está que não havia de ser com as mãos vazias, senão cheias. Mas, se estavam cheias de tudo o que nelas pôs o Padre, e essas mesmas mãos põe Cristo debaixo dos pés dos homens, como se não há de entender que estima mais os mesmos pés, que tudo quanto o Padre Lhe pôs nas mãos?

Dos cristãos da primitiva Igreja diz São Lucas que tudo quanto tinham vendiam, e punham o preço aos pés dos apóstolos: Afferebant pretia eorum quae vendebant, et ponebant ante pedes apostolorum (Act 4,34s). E por que lho punham aos pés, e não lho entregavam nas mãos, se era o preço de tudo?

Para mostrar, diz São Crisóstomo, que estimavam  mais os pés dos apóstolos que tudo quanto davam e quanto tinham. Entregar-lho nas mãos seria fazer estimação do que davam; pôs-lho aos pés era protestar veneração das pessoas, e, como estimavam mais as pessoas que as dádivas, por isso lhas punham aos pés, e não lhas davam nas mãos: ponebant ante pedes apostolorum.

Ó dádiva do Padre! Ó pés dos homens!
Ó amor e estimação de Cristo!

O Padre deu tudo quanto tinha ao Filho, e não lho pôs aos pés, senão nas mãos, porque estimou o que lhe dava quanto a mesma dádiva merecia, pois era tudo quanto tinha Deus. E que este tudo do Padre, de que estavam cheias as mesmas mãos do Filho, o pusesse o Filho, e mais as mesmas mãos aos pés dos homens!

O que podia daqui inferir o discurso, se não tivesse mão nele a fé, é que prezou Cristo mais os pés dos homens que as dádivas do Padre. Mas o certo, e a verdade, é que não foi nem podia ser assim. Amou e estimou o Filho sumamente as dádivas de seu Padre, tanto pelo que eram em si, como pelas mãos de quem vinham. Porém, esta mesma estimação não desfaz, ante reforça mais o mesmo discurso, porque dele se infere estima com sobre estimação, e amor sobre amor.

Quando a Madalena pôs aos pés de Cristo os alabastros, os ungüentos, os cabelos, os olhos, as lágrimas, as mãos, a boca, e a si mesma, não foi porque não estimasse tudo isto, senão porque tudo isto era o que mais estimava. E que conseqüência tirou dali, não outrem, senão o mesmo Cristo? Quoniam dilexit multum (Porque amou muito - Lc 7,47).

- Se pôr tudo o que mais estimava, e a si mesma, a Seus pés, inferiu o Senhor o grande excesso com que amava. E assim era, porque quando o que se preza muito em um amor se põe aos pés do outro, então se prova que este segundo é maior.

Logo, se assim o inferiu Cristo, porque não inferiremos nós o mesmo? Se tudo quanto o Padre pôs nas mãos do Filho, e as mesmas mãos e a Si mesmo, prostrado em terra, põe o Filho aos pés dos homens, como não há de parecer que os homens são os que mais estima, e os homens os que mais ama?

Para declarar o amor do Padre, foi-nos necessário fingir parábolas; para inferir o do Filho não é necessário fingi-las, basta aplicar uma e Sua.

Quando o filho Pródigo, em serviço de outro amor, empregou quanto tinha recebido de seu pai, e sua própria pessoa, até se abaixar às maiores vilezas de servo, não é certo que amou mais a quem se tinha rendido que a seu pai? Pois este pródigo foi Cristo, diz Guerrico Abade, e depois dele Guilherlmo, ainda com maior energia: Quis unicus prodigus invenitur sicut ille unigenitus Patris? (Guerr. Serm. un Pent. Guil. apud Euseb. in Theopol. p. 1, lib 1, c. 4)

O único pródigo que houve no mundo foi o Filho do Eterno Padre. - E por que Pródigo e único?

Pródigo, porque se pareceu com o Pródigo, e único, porque o excedeu. Pareceu-se com o Pródigo, porque assim como o Pródigo tudo quanto tinha recebido do pai, e a si mesmo, empregou em serviço e amor de quem o não merecia, assim Cristo, com tudo quanto Lhe tinha dado Seu Padre, e com Sua própria pessoa, serviu e amou aos homens e - para que a parábola ficasse inteira - a homens pecadores.

E excedeu muito o mesmo Pródigo, porque o Pródigo, obrigado da fome, foi buscar o pão à casa do pai, e Cristo não o foi buscar a outra parte, mas desentranhou-Se a Si mesmo, e fêz-Se pão: O Pródigo arrependeu-se do seu amor, e pediu perdão do que tinha amado, e Cristo não se arrependeu jamais, mas perseverou constante no mesmo amor até o fim: In finem dilexit eos.

Do ministério humilde do lavatório, passou o Senhor ao mistério altíssimo do Sacramento, e aqui se declarou Seu amor muito mais por parte dos homens. E porque? Porque para o Padre instituiu o Sacramento como sacrifício: para os homens instituiu o sacrifício como sacramento, e, posto que o mistério seja o mesmo, maior amor se argui dele enquanto Sacramento que enquanto sacrifício.

Como sacrifício consome-se: como Sacramento conserva-se; como sacrifício é ação transeunte: como Sacramento permanente; como sacrifício tem horas do dia certas: como Sacramento é de todo o tempo, de dia e de noite; como sacrifício não se aparta do altar, e de sobre a ara: como Sacramento sai às ruas, e entra em nossas casas; como sacrifício, enfim, tem por fim o culto e adoração do Padre: como Sacramento, a presença, a assistência e a união com os homens.

Vêde a diferença do amor na mesma instituição e na mesma mesa, que foi a mesa e o altar: Tibi - ao Padre - gratias agens. Discipulis - aos homens - accipite, et comedite: Ao Padre deu as graças, aos homens fez o banquete: ao Padre ofereceu-Se, com os homens uniu-Se.

E como Se uniu? É tal a união que os homens contraem com Cristo no Sacramento que, comparada com a mesma união que o Filho tem com o Padre, se a não excede enquanto união, excede-a muito enquanto amorosa.

Revelando Cristo a união altíssima que tem com Seu Padre, diz: Ego in Patre, et Pater in me est (Jo 14,10): Eu estou no Padre, e o Padre está em mim. - E declarando a união que tem com o homem no Sacramento, diz pelos mesmos termos: In me manet, et ego in illo (Jo 6,57): Ele está em mim, e eu nele. - E qual destas duas uniões tão parecidas é maior?

A que o Filho tem com o Padre é maior em gênero de união, porque é unidade; porém, a que Cristo tem com o homem no Sacramento é maior em gênero de amorosa, porque a fez o amor. Pois, a união que tem o Filho com o Padre não a fez o amor? Não, porque a união entre o Padre e o Filho funda-se na geração eterna antecedente a todo ato da vontade.

A nossa é obra da vontade do Filho: a do Filho é obra do entendimento do Padre. O Filho está no Padre, e o Padre no Filho, porque o Padre Se conheceu; e nós estamos em Cristo, e Cristo em nós, porque o Filhou nos amou. Logo, ainda em comparação da união que o Filho tem com o Padre, vence, sem controvérsia nem batalha, o amor dos homens.

Isto no sacramento enquanto sacramento. E passando ao sacrifício enquanto sacrifício, digo que também o mesmo sacrifício se ordenou a maior união de Cristo com os homens, que do mesmo Cristo com o Padre. Santo Agostinho, distinguindo esta união, e admirando o amor de Cristo nela, depois de advertir que todo o sacrifício se compõe de quatro partes:

Quid offeratur, a quo offeratur, cui offeratur, pro quibus offeratur (August. lib. 4, Trind. cap. 14): quem oferece, o que oferece, a quem oferece, e porquem oferece - diz que o fim que Cristo teve no admirável invento do Seu sacrifício, foi fazer que todos estes quatro, por meio Dele, fossem uma só coisa: Ut idem ipse unus, verusque mediator per sacrificium pacis reconcilians nos Deo, unum cum illo maneret, cui offerebat; unum in se faceret, pro quibus offerabat: unus ipse esset, qui oferebat, et quod offerebat.

Só a agudeza de Agostinho pudera penetrar os íntimos secretos de tão intrincado e bem tecido labirinto de amor.


No sacrifício do altar, quem oferece é Cristo, o que oferece é Seu corpo, a quem oferece é o Padre, por quem oferce são os homens. E como pode ser que todos estes quatros em um só sacrifício se unam de tal sorte que sejam uma e a mesma coisa?

Deste modo. Para que Cristo, que é sacerdote que oferece, fosse a mesma coisa com o sacrifício, fez que o sacrifício fosse de Seu corpo; para que os homens, por quem se oferece, fossem a mesma coisa com o sacrifício e com o sacerdote, fez que os homens O comêssemos; e para que o Padre, a quem se oferece, fosse a mesma coisa com os homens e com Cristo, fez que por meio do mesmo sacrifício Se reconciliasse o Padre com os homens.

Só o amor onipotente podia inventar um bocado, em que, sendo um só o que o come, fossem quatro, e tais quatro os que ficassem unidos.

Agora pergunto eu: e nesta união tão maravilhosa como verdadeira, à qual Cristo ordenou o mesmo sacrifício que oferecesse ao Padre, quem são os que ficam mais unidos a Cristo, o Padre, ou os homens? Não há dúvida que os homens. Porque a nossa união com Cristo é imediata e direta: a união do Padre com o mesmo Cristo é mediata e reflexa.

A nós uniu-nos Cristo imediatamente a Si: ao Padre uniu-Se o mesmo Cristo por meio de nós. Porque o Padre Se uniu a nós, por isso Cristo Se uniu ao Padre.

Se sorte que a união do Padre conosco foi o motivo.

Tornai a ouvir as palavras de Agostinho, e ouvi-as com atenção: Ut ipse unus per sacrificium pacis reconcilians nos Deo, unum cum illo maneret, cui offrebat: Ofereceu-Se Cristo ao Padre em sacrifício, para que, por meio do mesmo sacrifício, reconciliando-Se o Padre com os homens, Se unisse Cristo ao mesmo Padre.

Pois, para Cristo se unir ao Padre, é necessário que o Padre primeiro se una aos homens e se reconcilie com eles? Sim, que debaixo destas condições ama Deus quando parece que antepõe o amor dos homens ao Seu amor.

Si offers munus tuum ad altare, et ibi recordatus fueris quia frater tuum habet aliquid adversum te: vade prius reconciliari fratri tuo, et tunc offeres munus tuum (Mt 5,23s): Se tiveres posta a tua oferta ao pé do meu altar- diz Deus - e não estiveres reconciliado com teu próximo, vai primeiro reconciliar-te com ele, e então aceitarei a tua oferta.

Ao mesmo modo, e debaixo da mesma condição, se une Cristo ao Padre no sacrifício de Seu corpo. Assim como Deus não aceita a oferta do homem antes de o homem estar reconciliado com o próximo, assim Cristo não se une ao Padre antes de o Padre Se reconciliar com os homens: Ut reconcilians nos Deo, unum cum illo maneret.

Oh! assombro!
Oh! prodígio do amor de Cristo para com os homens, ainda em respeito do Padre!

O maior intérprete dos evangelistas, comentando este texto, infere dele que Deus em certo modo antepõe o amor do próximo ao Seu próprio amor: Dilectioni quodammodo sui proximi dilectionem anteponit (Maldonat. ibi).

E se esta força tem a condição de estar primeiro reconciliado o homem com o próximo, para Deus aceitar a sua oferta, por que não terá a mesma conseqüência o estar primeiro reconciliado o Padre com os homens, para Cristo se unir ao Padre?

E para que se veja quanta certeza tem isto que se chama em certo modo, ouçamos ao mesmo Cristo neste mesmo dia, e na mesma mesa em que instituiu o mesmo mistério: Ipse Pater amat vos, quia vos me amastis (Jo 16,27): O Padre ama-vos a vós, porque vós me amastes. - A força deste porquê é igual em um e outro caso.

Assim como o Padre ama aos homens porque os homens amam ao Filho, assim o Filho se une ao Padre porque o Padre se une aos homens. Logo, se amar o Padre aos homens, porque os homens amam ao Filho, é sinal de amar o Padre mais ao Filho que aos homens, também o unir-Se o Filho ao Padre, porque o Padre Se une aos homens será sinal de amar o Filho mais aos homens que ao Padre?

A fé não pode afirmar que seja assim, mas o entendimento não pode negar que o parece.

(Sermão Segundo do Mandato - VI - Volume VII - Padre Antônio Vieira - Editora das Américas)

PS: Grifos meus