O Embaixador de Cristo,
por Cardeal Gibbons,
edição de 1935, tradução do Cônego Tomás Fernandes Pinto
A
verdadeira humildade não consiste em desconhecer ou negar o bem que há em nós,
mas em referir ao Autor de todo o nosso ser os dons da natureza e da graça que
se dignou conceder-nos. Esta idéia foi admiravelmente expendida pelo Apóstolo
naquela passagem da epístola aos Coríntios: «Esta confiança temos, por meio de
Cristo, em Deus. Não que por nós mesmos sejamos capazes de ter algum pensamento
que seja de nós mesmos: toda a nossa capacidade vem de Deus»[1]. E
noutra parte diz: «Se alguém supõe que é alguma coisa, não sendo nada, a si
mesmo se engana»[2].
E
ainda noutra passagem deixou dito: «Aquele, pois, que se gloria, em Deus se
glorie. Porque não é recomendável o que a si mesmo se recomenda, mas só aquele
a quem Deus recomenda»[3].
Jesus
Cristo ensinou-nos esta grande virtude por Sua vida e exemplos, assim como por Seus
preceitos. «Aprendei de mim, disse Ele, que sou manso e humilde de coração»[4],
palavras que Santo Agostinho assim comenta: «Nosso Senhor não diz: - Aprendei
de mim a construir o mundo, a criar as coisas visíveis e invisíveis, a operar
milagres, a ressuscitar mortos. - Mas diz: - Aprendei de mim a doçura e a
humildade de coração».
Jesus
nasce num estábulo; deixa-Se circuncidar como um pecador. Quando o povo deseja
exaltá-lO e proclamá-lO Rei, afasta-Se e esconde-Se; mas quando resolvem
humilhá-lO e perdê-lO, apresenta-Se à Seus inimigos e submete-Se aos opróbrios.
A Sua transfiguração gloriosa assistem somente três discípulos, aos quais
todavia impõe segredo até à Sua ressurreição. Já não se dá o mesmo com a
suprema afronta da cruz. A esta assiste a cidade inteira de Jerusalém, que para
mais regurgitava então de estrangeiros.
Depois
da última ceia, o Salvador não Se dedigna de cingir uma toalha e lavar os pés a
Seus apóstolos a quem deixa estar recomendação: «Sabeis o que acabo de vos fazer?
Vós me chamais Mestre e Senhor. Tendes razão; eu o sou. Portanto, se eu lavei
os pés, sendo vosso Mestre e Senhor, o mesmo deveis fazer uns aos outros:
Dei-vos o exemplo para que, assim como eu fiz, façais vos também»[5].
Mas
que humilhação poderá comparar-se à Encarnação do Salvador e à Sua morte
afrontosa na cruz? «Nada façais por ciúme ou por vã glória, diz S. Paulo; mas,
com humildade tenha cada um para si os outros como superiores e atenda aos interesses
deles, que não à sua própria conveniência. Haja entre vós o sentimento que
houve em Jesus Cristo: o qual, sendo Deus por natureza e não praticando,
portanto, usurpação em mostrar-Se igual a Deus, todavia Se aniquilou, assumindo
a natureza de escravo, fazendo-Se semelhante aos homens, sem que externamente
coisa alguma o distinguisse do mesmo homem. Humilhou-Se e mostrou-Se obediente
até à morte e morte da cruz. Pelo que Deus também o exaltou e lhe deu um nome
que é superior a todo o nome: pois que ao nome de Jesus todo o joelho se dobra,
no céu, na terra, e nos infernos, e toda a língua confessa que o Senhor Jesus
Cristo está na glória de Deus Pai»[6].
Precisamos
de incentivo mais poderoso para nos abatermos a nós mesmos? Não nos basta saber
que quanto mais nos humilharmos por amor e justiça, tanto mais semelhantes nos
tomamos a Jesus Cristo, o tipo por excelência da natureza humana?
De
si mesmo disse o Senhor: «Eu não busco a minha própria glória; outro a buscará
e esse fará justiça... Se me glorifico a mim mesmo não é nada a minha glória.
Meu Pai é quem glorifica»[7].
Assim
como Nosso Senhor se mostrava contente por a Sua própria glória ser reivindicada
pelo eterno Pai, assim nos podemos ter a certeza de que nossa honra e bom nome
estão seguros nas mãos da Providência.
A
cada passo lemos no Evangelho que Nosso Senhor anatematizava o orgulho dos
fariseus, condenava a ambição de seus discípulos e aproveitava todas as
ocasiões para os precaver contra a vanglória e dar-lhes preciosas lições de humildade.
Aos Judeus disse que o maior obstáculo, por eles posto à aceitação do
Evangelho, era a paixão ardente, dos aplausos humanos: «Como podeis crer, vos
que procurais a glória que vem dos homens, e nenhum cuidado tendes pela que de
Deus vem?»[8]
Noutro passo afirma que a simplicidade do menino e a humildade de espírito são
as melhores disposições para receber as luzes celestes e tornar nosso
entendimento apto para a apreensão das verdades reveladas: «Graças vos dou, meu
Deus, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas coisas aos sábios e
entendidos e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai; porque assim vos aprouve»[9].
Os dois filhos de Zebedeu, por intermédio de sua mãe, pediram a Nosso Senhor
lhes obtivesse os primeiros lugares no seu reino terrestre que eles imaginavam
cheio de pompas e esplendores: «Ordenai, dizia aquela mulher que os meus dois
filhos, aqui presentes; sejam colocados em vosso reino, um à vossa direita e o
outro à vossa esquerda». Ao que Nosso Senhor retorquiu, voltando-se para os
dois pretendentes; «Não sabeis o que pedis»[10].
«O meu reino não é deste mundo». «O reino dos céus sofre violência e só os
animosos o conquistarão» A prova evidente de que a inveja se agarra ao homem
ambicioso como a sombra ao corpo, é que «os dez apóstolos, depois de ouvirem
aquelas palavras, se indignaram contra os dois irmãos».
Não
é, ainda hoje, procurada a intervenção de amigos ou de parentes para obter
certas promoções eclesiásticas? E não será mais culpável esta ambição que a dos
Apóstolos? Certamente que sim, porque não descera ainda então sobre eles o fogo
purificador do Pentecostes.
Quando
os primeiros padres da Lei nova discutiam entre si para averiguar qual deles
era o maior, Nosso Senhor deu-lhes esta bela lição de humildade, corroborada já
pelos Seus exemplos: «Os reis dos gentios dominam sobre eles e os que têm
autoridade sobre eles apelidam-se benfeitores. Não há de ser, porém, assim
entre vós outros: o que entre vós é o maior, faça-se como o mais pequeno, e o
que governa seja como o que serve.
Porque, qual é maior: o que está sentado à mesa ou o que serve? Não é maior o que está sentado à mesa? Pois eu estou no meio de vós outros, como o que serve»[11].
Porque, qual é maior: o que está sentado à mesa ou o que serve? Não é maior o que está sentado à mesa? Pois eu estou no meio de vós outros, como o que serve»[11].
Este
texto faz compreender a maravilha a vacuidade da vanglória. Os apóstolos não
procuravam saber qual deles era o maior em zelo, em virtudes, em boas obras,
mas questionavam a supremacia nas honras e no conceito público. Bem podemos
avaliar quanto é egoísta e insaciável o espírito de ambição e quanto magoaria a
natureza sensível de Cristo aquela discussão entre os Apóstolos precisamente
quando o Salvador acabava de lhes lavar os pés, algumas horas antes de sofrer
morte ignominiosa. Não acontecerá hoje o mesmo? Os padres do nosso tempo são
todos isentos dessa funesta emulação em obter lugares proeminentes e honoríficos?
Quantas vezes não volvem olhares de cobiça para algum que está prestes a vagar,
ainda mesmo enquanto se conserva entre a vida e a morte aquele que o ocupa!
Noutra
ocasião perguntaram bruscamente os Apóstolos a Nosso Senhor «quem era o maior
no reino dos céus?» E Jesus chama um menino, apresenta-o como modelo de
humildade, porque ainda o não queima a febre de ambição, vanglória ou inveja,
que agita e consome os corações orgulhosos e arrogantes, e assim lhes fala: «Em
verdade vos digo que, se vos não converterdes e não vos tornardes semelhantes
às criancinhas, não entrareis no reino dos céus. O que se humilhar e se fizer
como este menino, esse será o maior no reino celestial»[12].
E
que razões poderemos aduzir para justificar a nossa vã complacência e egoísmo? Que
tens tu, ó homem, diz o Apóstolo, que não recebesses. E se tudo recebestes,
porque te glorias como se não houveras recebido?»[13]
Com efeito, não podemos arrogar-nos a propriedade absoluta nem a glória dos
dons, que a Providência nós dispensou; apenas nos pertence o seu usufruto, e
esse, muito efêmero porque andamos arriscados a perdê-lo a cada instante.
O
animal de carga que transporta mercadorias preciosas, não tem, por esse motivo,
mais valor, nem se gaba dessa condição como duma nobreza que lhe seja própria. Se
fomos escolhidos para vasos de honra, essa eleição não há de constituir para
nós motivo de vanglória, antes deve sê-lo de humilde gratidão.
Basta,
enumerar os principais dons naturais e sobrenaturais, que recebemos de Deus, para
da incerteza dos mesmos concluirmos imediatamente que poucos são os que exultam
e se orgulham na posse deles.
Poderemos
jactar-nos da nossa saúde ou da beleza física que a doença mais ligeira muitas
vezes arruína e até faz desaparecer? Não será insânia comprazermo-nos em nossos
talentos e perfeições intelectuais? Pois não é verdade que o espírito mais
brilhante se sente mergulhado em trevas espessas, quando tenta penetrar em
campos do saber vastíssimos, mas ainda insondados? Não acontece que, às vezes,
uma pequena enfermidade, o priva da sua auréola fulgente, enquanto não chega a
velhice que lhe rouba a energia e o paralisa, ou a morte que o apaga?
Quem
faz caso da estima pública ou aceita os incensos da adulação? Só quem não sabe
pela história ou pela própria experiência quanto é inconstante a aura popular e
quão efêmeros e caprichosos são os aplausos dos homens.
Um
grande prelado que, nos belos dias de sua vida, tinha palmilhado o caminho da
glória e vira os escolhos das honrarias, que se aquecera ao calor de régios
sorrisos e recebera as homenagens aduladoras dos homens, exclamava, ao ver o
sol dá prosperidade esconder-se na orla do horizonte:
«Cromwell, I charge thee, fling away ambition;
By that sin fell the angels, how can man then,
The image of his Maker, hope to win by't? »[14].
Daria
provas de grande presunção aquele que se gloriasse dos dons espirituais,
esquecendo o triste fim dum Salomão ou dum Judas. Não se glorie o sábio no seu
saber, nem se glorie o forte na sua força nem se glorie o rico em suas riquezas.
Mas aquele que se gloria; ponha sua glória em me conhecer, diz o Senhor[15].
Assim
como «o orgulho é detestável diante de Deus e dos homens»[16] assim
a humildade é amada e querida do céu e da terra. Tão elevada é a estima desta
virtude, tão grandes e poderosos são os seus atrativos aos olhos do próprio
mundo, que todos desejamos passar por humildes, repelimos até a suspeita de
altivez ou de soberba e, por maior que seja o orgulho em nós, procuramos
dissimulá-lo com o véu da modéstia.
A
humildade gera a alegria e a tranquilidade.
«Aprendei
de mim, dizia Nosso Senhor, que sou manso e humilde de coração e em vossa alma reinará
a paz»[17]. Wolsey
só se voltou para Deus, no qual encontrou a paz e uma doce tranquilidade,
depois que perdeu o favor do Rei e da Corte e se desvaneceram todas as suas
esperanças de humana ambição:
«Cromwell.
How does Your Grace?
Wolsey.
Vhy, well;
Never
so truly happy, my good Cromwell.
I
know myself now; and I feel within me.
A
peace above all earthly dignities.
A
still and quiet conscience. The King has cured me;
I
humbly thank his grace: and from these shoulders
These
ruin'd pillars, out of pity taken
A
load that would sink a navy, too much honor:
O’t
is a burden, Cromwell, 't is a burden,
Too
heavy for a man that hopes for heaven».[18]
Quando
procuramos a causa de nossos desgostos e perturbações, quase sempre encontramos
o desejo da estima ou o receio da humilhação. O que tem conhecimento profundo e
claro de seu próprio coração e sabe defender-se contra uma ambição mórbida, não
se perturba facilmente, ainda que lhe dirijam palavras injuriosas ou lhe
retirem a estima: não o inquieta o pensamento de que outros o vêem um pouco
como ele a si próprio se vê. A ausência de alguns sinais de respeito ou de
algumas provas de deferência não o irrita, porque lhes não tinha amor
desordenado.
A
mansidão é irmã inseparável da humildade, e dos mansos disse Nosso Senhor: «Bem-aventurados,
porque eles possuirão a terra»[19]
de seu próprio coração.
Todos
os homens têm uma sede insaciável de honra. Este desejo é universal; portanto
não é ilegítimo, porque foi Deus quem no-lo infundiu no coração. O nosso erro,
a nossa falta está em trabalharmos pela glória humana em vez de nos
apaixonarmos pela glória divina. Ora só a humildade nos patenteia o caminho da
verdadeira glória.
Na
parábola do festim nupcial, Nosso Senhor deixa-nos entrever a proeminência
gloriosa de que hão de gozar os humildes no banquete celeste do grande Rei:
«Quando vos convidarem para um festim de núpcias, ide ocupar o último lugar,
porque assim, quando chegar quem vos convidou, dir-vos-á: meu amigo, vinde mais
para cima; e este convite será para vós motivo de glória perante os outros
convidados. Todo o que se exalta será humilhado e todo o que se humilha será
exaltado»[20].
Exemplo frisante é a Santíssima Virgem Maria: «Deus, disse Ela, olhou para a
baixeza da sua serva e todas as gerações me chamarão bendita... Ele derrubou de
seus tronos os grandes e exaltou os humildes»[21].
«Deus resiste aos soberbos e dá a sua
graça aos humildes. Humilhai-vos, pois, sob a mão onipotente de Deus, para que
Ele vos exalte no dia de sua visita»[22].
S.
Paulo declara expressamente que a sublime glorificação do Homem-Deus que reina
no céu acima dos anjos, dos arcanjos, dos principados e das potestades, acima de
tudo que não é Deus, constitui a recompensa das humilhações profundas que
sofreu por motivo da Encarnação, durante a sua vida mortal. «Humilhou-se e
humilhou-se até à morte e morte de cruz e por isso Deus o exaltou e lhe deu um
nome que está acima de todo o nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo o
joelho dos que estão no céu na terra e nos infernos, e toda a língua confesse
que o Senhor Jesus está na glória de Deus Padre»[23].
No
sermão da montanha o nosso divino Redentor manda-nos evitar toda a ostentação
nas obras de piedade e de caridade e solenemente afirma que não podem contar
com uma recompensa eterna os que praticam boas obras para atrair as atenções do
mundo. «Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens para serdes
vistos por eles; aliás não tereis recompensa junto de vosso Pai que está nos
céus. Assim, pois, quando deres esmola, não toquem trombetas adiante de ti,
como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem honrados dos
homens; em verdade vos digo, já receberam a sua recompensa. Mas quando dás
esmola, não saiba a tua esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola
fique secreta; e teu Pai, que vê o que fazes em segredo, te recompensará. E
quando fazeis oração, não sejais como os hipócritas, que gostam de orar em pé
nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos dos homens; em verdade
vos digo, já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando quiseres orar, entra
no teu aposento e, fechada a porta, invoca teu Pai em segredo; e teu Pai, que
vê o que fazes em segredo, te recompensará»[24].
[1]
II Cor., III, 4 e 5.
[2]
Gal., VI, 3.
[3]
II Cor., X, 17,18.
[4]
Mat., XI, 29.
[5]
João, XIII, 12-15.
[6]
Fil., II, 3-11.
[7]
João, VIII, 50-54.
[8]
João, V, 44.
[9]
Luc., X, 21.
[10]
Mat., XX, 21-22.
[11]
Luc., XXII, 25-27.
[12]
Mat., XVIII, 2-4.
[13]
I Cor., IV, 7.
[14]
Crowell, conjuro-te que afastes para longe de ti a ambição. Foi este pecado que
fez cair os anjos. Como pode, pois, o homem, imagem do seu Criador, alimentar a
esperança de encontrar nela um meio de sair-se bem?
[15]
Jerem., IX, 23, 24.
[16]
Ecl., X, 7.
[17]
Math., XI, 29.
[18]
Cromwell.- Como está, Vossa Eminência? – Wolsey.- Muito bem; e até nunca me
senti tão feliz, meu caro Cromwell; dentro de mim há uma paz muito superior a
todas as grandezas da terra, uma consciência calma e tranquila. O rei curou-me;
por isso lhe rendo humildes ações de graças. Por piedade tirou-me de cima dos
ombros, pobres colunas em ruínas, um fardo que faria afundar um navio. Oh! Sim!
Um excesso de grandeza é bem um fardo, Cromwell, um incomportável fardo para
quem aspira ao céu”. (Shakspeare, Henry VIII).
[19]
Mat., V, 4.
[20]
Luc., XIV, 10-11.
[21]
Luc., I, 48, 52.
[22]
I Ped., V, 5,6.
[23]
Fil., II, 8-11.
[24]
Mat., VI, 1-6.