Como, estando morta a si, a vontade vive puramente
na vontade de Deus
(São Francisco de Sales - Tratado do amor de Deus)
Com
propriedade toda particular falamos da morte dos homens na nossa linguagem
francesa; pois chamamo-la trespasse, ou trânsito, e os mortos trespassados;
significando que a morte entre os homens é uma mera passagem de uma vida à
outra, e que morrer não é outra coisa senão ultrapassar os confins desta vida
mortal para ir à imortal. Certamente a nossa vontade nunca pode morrer, como
tão pouco o nosso espírito; porém às vezes ela ultrapassa os limites da sua
vida ordinária, para viver toda na vontade divina: é quando já não sabe nem
quer querer mais nada, porém se abandona totalmente e sem reserva ao
beneplácito da divina Providência, misturando-se e embebendo-se de tal forma
com esse beneplácito, que já não aparece mais, porém fica toda oculta com Jesus
Cristo em Deus, onde vive, não mais ela mesma, porém a vontade de Deus vive
nela.
Que é da claridade das estrelas, quando
o sol aparece no nosso horizonte? De certo não perece; mas é arrebatada e
tragada na soberana luz do sol, com a qual fica felizmente misturada e conjunta.
E que é da vontade humana quando está inteiramente abandonada ao beneplácito
divino? Não perece totalmente, mas fica tão abismada e misturada na vontade de
Deus, que já não aparece, e já não tem nenhum querer separado do de Deus. Imaginai,
Teótimo, o glorioso e nunca assaz louvado São Luís, que embarca e se faz de
vela para ir além-mar, e vede que a rainha sua cara mulher embarca com sua majestade.
Ora, a quem perguntasse a essa brava princesa: Aonde ides, senhora? sem dúvida
ela responderia: Vou aonde o rei vai. E a quem de novo perguntasse: Mas sabeis
bem, senhora, aonde vai o rei? ela responderia: Ele mo disse em geral, mas
todavia eu não tenho nenhuma preocupação de saber aonde ele vai, mas apenas de
ir com ele. E se lhe replicassem: Então, senhora, não tendes projeto nessa
viagem? Não, diria ela, não tenho outro projeto senão estar com meu caro senhor
e marido. Poder-se-lhe-ia então dizer: Mas no entanto ele vai ao Egito para
passar à Palestina; pousará em Damieta em Acre e em vários outros lugares; e
vós, senhora, não tendes intenção de ali ir também? A isso responderia: Não,
deveras, não tenho intenção alguma senão estar junto de meu rei, e os lugares
aonde ele vai são-me indiferentes e de nenhuma consideração, a não ser enquanto
ele estiver neles; vou sem desejo de ir, pois não desejo nada a não ser a
presença do rei. É, pois, o rei quem vai, e quem quer a viagem, e quanto a mim,
não vou, sigo; não quero a viagem, mas só a presença do rei, sendo-me
inteiramente indiferentes a permanência, a viagem e toda sorte de diversidades.
Certamente, se se pergunta aonde vai a
algum servo que está acompanhado seu amo, ele não deve responder que vai a tal
ou tal lugar, mas somente que segue seu amo; pois não vai a parte alguma por
sua vontade, mas apenas pela vontade de seu amo. Assim, meu Teótimo, uma
vontade resignada na de seu Deus não deve ter nenhum querer, mas seguir
simplesmente o de Deus. E, assim como aquele que está num navio não se move por
seu movimento próprio, mas apenas se deixa mover segundo o movimento do navio
em que está, assim também o coração que está embarcado no beneplácito divino
não deve ter nenhum outro querer senão o de se deixar levar ao querer de Deus.
E então o coração já não diz: Seja feita
a vossa vontade, e não a minha, pois não tem mais vontade nenhuma a que
renunciar, porém diz estas palavras: Senhor, entrego minha vontade em vossas
mãos; como se a sua vontade não estivesse mais à sua disposição, porém à
disposição da divina Providência; de sorte que não é propriamente como os
servos seguem seus amos: porque, ainda que a viagem se faça pela vontade de seu
amo, o seu seguimento todavia se faz pela própria vontade particular deles,
embora esta seja uma vontade seguinte e servente, submetida e sujeitada à de
seu amo; de tal sorte que, assim como o amo e o servo são dois, assim também a
vontade do amo e a do servo são duas. Mas a vontade que morreu a si mesma para
viver na vontade de Deus, está sem nenhum querer particular, permanecendo não
somente conforme e sujeita, mas totalmente aniquilada em si mesma e convertida
na de Deus; como se diria de uma criancinha que ainda não tem uso da vontade
para querer nem amar coisa alguma a não ser o seio e o rosto de sua cara mãe;
pois essa criança absolutamente não pensa em querer nem amar coisa alguma senão
estar nos braços da mãe, com a qual pensa ser uma mesma coisa, e absolutamente
não se preocupa com acomodar a sua vontade à de sua mãe, pois não sente a sua,
e não cuida tê-la, deixando a sua mãe o cuidado de ir, de fazer e de querer o
que achar bom para ela.
De certo, é uma suma perfeição da nossa
vontade o estar assim unida à do nosso sumo bem, como foi a do santo que dizia:
Ó Senhor, conduzistes-me e levestes-me
segundo a vossa vontade; pois, que queria ele dizer senão que absolutamente
não empregara a sua vontade para se guiar, havendo-se simplesmente deixado
guiar e conduzir pela vontade de seu Deus?