segunda-feira, 4 de julho de 2011

A PAIXÃO DE CRISTO COM RELAÇÃO AO CORPO

CAPÍTULO CCXXXI

A PAIXÃO DE CRISTO
COM RELAÇÃO AO CORPO


1 — Não quis Cristo apenas sofrer a morte, mas também outras conseqüências do pecado do primeiro pai, que as transmitiu aos descendentes, e, assim, suportando integralmente a pena do pecado, fôssemos deste libertados pela Sua satisfação.

2 — Dessas conseqüências, algumas precedem a morte, outras seguem-na. Precedem, com efeito, a morte do corpo, paixões, tanto as naturais, como a fome, a sede, o cansaço, e outras semelhantes, quanto as violentas, como os ferimentos, a flagelação, e outras. Tudo isso quis Cristo sofrer como conseqüência do pecado, pois, se o homem não tivesse pecado não sentiria as aflições da fome, da sede, do cansaço, do frio, nem teria sido assujeitado a violentas paixões provocadas por causas exteriores.

3 — Todavia, essas paixões Cristo as sofreu por motivo diverso daquele que os outros homens sofrem. Com efeito, nos outros homens não há algo que possa afastar essas paixões. Em Cristo, porém, havia donde resistir-lhes, pois Ele possuía não somente a virtude divina incriada, como também a beatitude da alma, cuja virtude era tão forte que, como diz Santo Agostinho, tal beatitude devia, a seu modo, estender-se também ao corpo.

Por isso, depois da Ressurreição, o mesmo motivo que fará aquela alma glorificada pela visão de Deus, e pela franca e plena fruição de Deus, fará também impassível e imortal o corpo glorificado unido àquela alma glorificada. Como a alma de Cristo gozasse da perfeita visão de Deus, enquanto dependesse da virtude dessa visão, seria conseqüente que o Seu corpo fosse tornado impassível e imortal, devido à redundância da glória da alma no corpo. Mas, providencialmente, aconteceu que, não obstante a alma gozasse da visão de Deus, o corpo sofresse, e não houvesse, por isso, redundância alguma da glória da alma no corpo.

4 — Como dissemos acima, o que era a Cristo natural conforme a natureza humana, estava submetido à sua vontade. Podia, por conseguinte, impedir, pela vontade, a redundância natural das partes superiores nas inferiores, permitindo que cada parte sofresse ou agisse de acordo com as respectivas propriedades, sem que as outras partes o impedissem. Mas isso é, efetivamente, impossível aos outros homens.

5 — Segue-se daí também que Cristo suportou, na Paixão, a máxima dor corpórea, porque essa dor em nada lhe fora mitigada pelo gozo superior da razão, como também, por sua vez, a dor corpórea não lhe impedia o gozo da razão.

6 — Donde também concluir-se que somente Cristo era, ao mesmo tempo, viador e compreensor. Fruía Ele da visão divina, o que pertence aos que têm a visão compreensiva de Deus, mas estava, não obstante, o seu corpo sujeito às paixões, o que é próprio do viador.

7 — Como, além disso, é próprio também do viador que pelos bens que opera pela caridade mereça para si, ou para os outros, conclui-se outrossim que Cristo, embora fosse compreensor, mereceu pelas suas obras e pela sua Paixão, para Si e para nós.

Para Si, não a glorificação da alma, o que já possuía desde o princípio, mas a glorificação do corpo, alcançada pela Paixão. Para nossa salvação, cada um dos seus sofrimentos e ações foram também profícuos, não apenas como motivo de exemplo, bem como causa de merecimento, enquanto, devido à abundância de caridade e de graça, pôde, antecipadamente, merecer por nós, e assim, recebessem os membros da plenitude da cabeça. Qualquer sofrimento Seu, por mínimo que fosse, se considerarmos a dignidade do paciente, seria suficiente para a redenção do gênero humano.

Quanto mais elevada é a dignidade da pessoa injuriada, tanto maior se torna a injuria a ela feita, como, por exemplo, é mais grave a agressão feita a uma autoridade do que a um popular qualquer. Ora, sendo infinita a dignidade de Cristo, qualquer sofrimento Seu teve valor infinito, e, sendo assim, seria suficiente para a abolição das penas de pecados infinitos. Todavia, a redenção do gênero humano não foi consumada por qualquer sofrimento, mas pela paixão da morte, a qual Cristo quis suportar, conforme as razões acima relatadas, para redimir o gênero humano do pecado. Em qualquer compra, com efeito, não só é exigida a quantidade da mercadoria, mas também a especificação do preço[3].

[3] Um esclarecimento faz-se necessário com relação ao uso da palavracompra, utilizada no fim deste capítulo. Está ela em íntima conexão com o verbete redimir, sendo mesmo, no latim, um dos seus significados (lt. “redimire” — comprar, pagar o preço devido por um escravo). É assim que se pode dizer do Cristo, ao redimir a humanidade, tê-la comprado, i. e., pago o preço devido por ela, numa dívida contraída pelo primeiro pai do gênero humano. Encontramos, além disso, na Escritura: “Não é Ele teu Pai, que tecomprou, que te fez e te criou?” (Dt 32.6). Este texto faz referência à saída do Egito de onde o Senhor tirou os judeus com milagres tão grandes e inauditos, que, de certa forma, pagava o preço estipulado pelo Faraó para a libertação do povo de Deus.

(Santo Tomás de Aquino, Compêndio de Teologia, Tradução e Notas de D. Odilão Moura, OSB.)

PS: Obra divulgada pelo blogue SPES