O ZELO
MOTIVOS DO ZELO
(São Francisco Xavier)
Na vida do P. de Smet, o apóstolo das Montanhas Rochosas, lê-se que um pastor protestante queria arrancar ao catolicismo a Inácio, chefe dos Yakimas.
- Se vieres para nós, ganharás duzentas piastras.
- É pouco.
- Acrescentarei mais cinqüenta piastras.
- Ainda não basta.
- Ganharás trezentas piastras.
- E ainda muito pouco.
- Decididamente, quanto queres? Faz tu mesmo uma proposta.
- Ei-lo: No dia em que me dês o valor da minha alma, eu farei tudo quanto desejes.
Sabia muito bem aquele sublime selvagem que jamais se poderia dar o que vale uma alma, ainda que se oferecessem milhões de piastras.
À sua maneira traduzia a doutrina de S. Pedro: «Fostes resgatados... não a preço de coisas perecíveis como o ouro e a prata, mas pelo próprio sangue de Jesus Cristo e do Cordeiro» (1).
A nossa época apaixona-se pelos valores cotados na Bolsa e parece esquecer os da ordem sobrenatural.
A alma é criada por Deus, resgatada por Deus, enobrecida pela graça de Deus, nutrida por Deus no banquete Eucarístico, destinada à visão de Deus.
(1) 1.ª Epístola, I, 18 e 19.
Oh! Como é preciosa! E que honra ter «cura de almas»!
Admiram-se os quadros de Rafael.
O apóstolo, artista maior ainda, reproduz e pinta na tela imortal das almas, traços daquele que é doce e belo, o modelo ideal: Jesus Cristo.
Miguel Ângelo fez estátuas. Mas nós temos o privilégio de esculpir a Deus nas almas.
«Certamente que ao pintor, ao escultor, ao artista, eu prefiro muito mais aquele que sabe formar os corações» (1).
O conquistador ganha alguns países. Mas a alma é mais preciosa que todos os países. De modo que nós oferecemos a Deus mais que o mundo inteiro quando Lhe damos uma só alma. Uma só.
Mas quando se verifica esta hipótese?
A alma nunca está só; sendo todas solidárias, cada uma age sobre as outras.
Que alegria para os astrônomos descobrir uma nova estrela! O homem zeloso, não somente descobre, como coloca as almas no firmamento. Glória Santa!.«Os que levam muitos à justiça, serão como as estrelas em perpétuas eternidades» (2).
(1) S. João Crisóstomo, Hom. LX sur le ch. 18 de Saint Mathieu.
(2) Daniel, XII, 3.
O filantropo compadece-se das misérias humanas: doença, pobreza, fome. O cristão sabe que se esquecem enfermidades mais graves, outras indigências e outras fomes! A história recorda muitas fomes: as do velho Egito, dos Índios, da França durante a Revolução e a grande guerra. Mas os povos sentem mais falta e têm mais necessidade ainda do pão da verdade, do pão sobrenatural. A religião é o primeiro «Comitê de Abastecimentos». Procura-se socorrer as crianças esfomeadas. Isso está muito bem feito. Mas há melhor ainda. Pela Cruzada Eucarística, nós queremos nutrir a alma de todos os pequeninos, de maneira que jamais se justifique por nossa incúria a palavra desolada: «As criancinhas pedem pão e ninguém lhes dá pão» (1).
Como seria lamentável não ter o zelo das almas (2).
«Maldito seja aquele que faz sem zelo a obra do Senhor» (3).
O apóstolo sentirá escrúpulos de malbaratar em futilidades um tempo precioso. Afonso Daudet, em La partie de billard, conta a loucura de um general que perdeu uma batalha para ganhar uma partida de bilhar. Dir-se-á porventura que este caso não se dá jamais. Substitua-se o bilhar por um jogo de cartas, um folhetim frívolo, um passeio inútil. Por isso, se havia de expor um apóstolo a perder contra o demônio a grande batalha das almas? Tem muito mais que fazer do que divertir-se muito e descansar muito.
Mas, objetar-se-á: Deus pode salvar as almas sem nós.
Evidentemente que pode. Mas quere-o de fato? A Sua providência ordinária é que o homem ajude o homem com a graça divina. Os filhos devem muito aos bons pais; e os paroquianos, aos seus pastores. Os povos idólatras têm necessidade de missionários: «Como poderão crer naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão sem haver quem lhes pregue? E como pregarão se não forem enviados?» (4).
(1) Lamentações de Jeremias, IV.
(2) Reler todo o cap.34 de Ezequiel.
(3) Jeremias, XLVIII, 10.
(4) Romanos, X, 14 e 15.
A preguiça humana e o demônio segredam-nos ao ouvido: «E já muito belo ser virtuoso; é necessário poupares-te ao trabalho do apostolado».
Se os apóstolos tivessem raciocinado assim, teriam sido simples pescadores, quando muito, patrões de barcos.
Se Francisco Xavier tivesse raciocinado assim, a Igreja teria perdido, segundo se crê, mais de um milhão de neófitos.
Se Francisco de Sales tivesse racionado assim talvez cerca de 70 mil almas se não tivessem convertido (1).
(1) Foi a este grande zelo que a Igreja deveu a conversão de 7.000 hereges. (Hamon, Vie de Saint François de Sales, 1883, t, 2ª, p. 450.
Não desbaratemos o tesouro das almas.
Deploramos às vezes que as riquezas florestais, mineiras e industriais, fiquem sem explorar. Tristeza dos valores perdidos! Tristeza maior, a das almas perdidas! Melancolia dos terrenos incultos! Melancolia mais pungente, a das almas incultas!
Acabamos de considerar a razão intrínseca do zelo: o valor das almas. Examinemos um motivo extrínseco; a doutrina de Jesus.
Cristo sabia muito bem que os homens são sempre crianças: Por isso, lhes falaria como a crianças: em imagens. Eis algumas usadas pelo Mestre para por em evidência o zelo.
Primeira imagem: A colheita. Para ela convergem todas as preocupações da gente do campo. Essa é a que o lavrador prepara, a que admira, a que põe em gavelas, a que enceleira, a que vende. Suponhamos uma messe soberba, ondulada pela brisa, mas que, à falta de ceifeiros, apodreceu debaixo dos pés! Que pena! Pois bem, é o que se passa na colheita das almas.
«A colheita é grande, mas os operários são poucos». (1).
Segunda imagem: A pesca. O pescador de água doce maravilha-nos com a sua inconfundível paciência; o pescador do mar arrosta com os perigos. Protegido contra as ondas pelo impermeável e largo chapéu de couro abalança-se a lutar com o oceano e a passar noites lúgubres sobre as ondas. Tudo isto, para encontrar peixes.
Pois bem: O Senhor promete: «Eu farei de vós pescadores de homens» (2).
Os pescadores a quem Jesus Cristo falava deviam entender muito bem esta comparação tomada do seu oficio.
Terceira imagem: Se os pescadores se interessavam com a imagem precedente, as mulheres também com a seguinte. A mãe, quando soou a hora de dar à luz, está angustiada. Que gritos! Que dores! E até que perigo de morte! E, no entanto, esquece tudo desde o momento em que deu à luz. «Depois que deu à luz um menino, já se não lembra da aflição, pelo gozo que tem» (3).
O apostolado é um parto espiritual. S. Paulo emprega freqüentemente esta comparação: «Pois fui eu quem vos gerou em Jesus Cristo , por meio do Evangelho» (4). «Rogo-te por meu filho Onésimo que eu gerei nas prisões» (5). «Meus filhinhos, por quem eu sinto de novo as dores do parto» (6).
Todo o apóstolo se dirige ao Senhor, e num sentido mais alto, como grito de Raquel: «Dá-me filhos!» (Da mihi liberos!).
(1) S. Lucas X, 2.
(2) S. Marcos, I, 17.
(3) S. João, XVI, 21.
(4) I Coríntios, IV, 15.
(5) Epístola a Filémon, versículo 10.
(6) Gálatas, IV, 19.
Quarta imagem: É uma grande honra ser enviado como embaixador dum rei, como Cardeal legado do Papa. O apóstolo é o embaixador e o legado deputado pelo próprio Deus. «O Senhor elegeu outros setenta e dois e enviou-os» (1). «Como meu pai me enviou, também eu vos envio» (2). «Nós desempenhamos as funções de embaixadores de Cristo» (3).
Quinta imagem: A luz! No século XX, estamos perdidos de mimos; basta tocar num botão para que se iluminem grandes salas. Mas nos primeiros séculos, que sistemas tão imperfeitos e como haviam de parecer longos os serões melancólicos! O apóstolo dissipa as trevas morais. E a luz, mas não a luz que se esconde debaixo do alqueire, mas aquela que, colocada no alto de um monte, ilumina ao longe e ao largo. Por definição, o apóstolo é irradiação de luz.
Jesus Cristo não se contentou com fazer frases lindas cheias de imagens sobre o zelo. O exemplo confirma as palavras.
«Eu vim lançar o fogo a terra!» (4). Foi Ele o primeiro missionário que sacrificou ao Seu ideal apostólico absolutamente tudo: mãe, família, honra, a vida.
O Seu descanso não contava. «Jesus, fatigado do caminho, sentou-Se na borda de um poço» (5).
Mas eis que chega a mulher desgraçada. Que importa o estado de fadiga, a hora do meio-dia, «hora sexta», (depois das 6 horas da manhã), que é a do calor sufocante, e o tempo próprio para o descanso ou para a sesta oriental? Tudo isto Nosso Senhor esquece, para exercer o Apostolado.
(1) S. Lucas, X, I.
(2) S. João, XX, 21.
(3) II Coríntios V, 20.
(4) S. Lucas, XII, 49.
(5) S. João, IV, 6.
«Jesus de Nazaré ia de lugar para lugar, fazendo o bem» (1).
Estas palavras resumem um número incalculável de caminhadas.
«Não são os sãos que precisam de médico, mas os doentes. Eu não vim chamar os justos à penitência, mas os pecadores» (2). Jesus abandonou o lugar do Seu nascimento. A pátria dos apóstolos não são porventura as almas?
Nosso Senhor sofreu em Sua delicadeza.
(Padre Damião quando jovem)
Muitos sacerdotes de aldeia dizem que é muito penoso viver em meio de homens sem educação, insensíveis a tudo o que é artístico, que só sabem falar do seu gado ou das suas batatas. E muito duro para um sacerdote ter estudado tanto S. Tomás de Aquino para vir parar neste terra-a-terra.
Jesus, que era muito mais fino do que nós, viveu entre a multidão estúpida dos judeus aferrados aos estreitos horizontes dos seus preconceitos.
Sentimo-nos consolados quando o nosso trabalho é coroado de êxito. Sob o ponto de vista humano, temos uma boa impressão de produtividade, de rendimento. Sob o ponto de vista religioso, temos a consciência de ter feito uma obra fecunda.
A alegria do bom resultado faz esquecer tantas coisas! Porventura recorda-se ainda das fadigas o agricultor ante o sucesso da colheita, ou o caçador à vista de tantas peças de caça?
Mas Nosso Senhor não quis conhecer a consolação dos apóstolos; magnânima, livremente, privou-Se a Si mesmo do sucesso para deixá-lo aos outros.
(1) Atos, X, 38.
(2) S. Lucas, V, 31 e 32.
S. Pedro converteu 3.000 homens no primeiro sermão e logo 5.000 (1). Jesus Cristo também pronunciou sermões, como, por exemplo, o da Montanha. Mas não se lê que tivesse convertido 3000 ou 5.000 homens.
Pôs termo ao seu apostolado na humilhação do Calvário.
Humanamente falando, esse fracasso tomava as proporções de uma catástrofe. Assim, Nosso Senhor, para salvar as almas, imolou tudo, até a própria satisfação do apostolado feliz.
Esta lição de coisas foi compreendida pelos apóstolos.
Paulo, com o seu grande coração, sofreu indizivelmente (2).
Para quê tantos trabalhos?
«Eu sofro tudo por causa dos eleitos» (3).
Esta última palavra, como todo o mundo sabe, não designa os eleitos do céu. Não se vê como podiam os sofrimentos de Paulo auxiliar os santos. O contexto aliás marca com evidência que os «eleitos» são os cristãos.
«De muito boa vontade, darei o que é meu e me darei a mim mesmo pelas vossas almas» (4).
Poderá haver para o zelo fórmula melhor?
«Eu mesmo desejava ser separado de Cristo, por amor de meus irmãos» (5).
O zelo, tão recomendado por Cristo, não esmoreceu com o correr dos séculos. Tem os seus heróis.
(1) Atos, 11, 41. - Atos, IV, 4.
(2) II Coríntios, VI, 4 e 5; XI, 23 e 33.
(3) II Timóteo, 11, 10.
(4) II Coríntios, XII, 15.
(5) Romanos, IX, 3.
Assim como S. Paulo tivera de noite a visão do Macedônio, que lhe dizia: «Passa à Macedônia e vem em nosso socorro» (1), por sua vez S. Francisco Xavier vê em sonhos um negro que o próprio Deus lhe coloca aos ombros. O peso é opressivo. Francisco Xavier compreende que o Senhor lhe confia o pesadíssimo fardo do apostolado entre os negros. Quer partir. Os prudentes objetam: «Tem cuidado com a tua saúde, com a tua vida». Mas ele responde: «Se nesses, países longínquos houvesse madeiras, espécies raras, os comerciantes já teriam tentado a expedição. E um sacerdote não há-de fazer pelas almas o que aqueles fariam pelo negócio?»
Ademais, há a intimação do Senhor: Ide! Ite! Ite! eis em três letras todo o apostolado missionário.
Ite! nada mais oposto à vida cômoda, com cadeiras e pantufas quentes, ao abrigo das correntes de ar.
Ite! Francisco Xavier partiu.
Caminho do zelo! «Da mihi animas» (2).
(1) Atos, XVI, 9.
(2) Gén, XIV, 2I; Qual o sentido próprio: deste texto? O Rei de Sodoma dizia a Abraão: «Dá-me os homens e fica com o resto». (Consulte-se Bainvel, S. J., Contresens bibliques des prédicateurs, 2.a ed. p. 65).
(Padre Damião leproso)
Pela tarde são tantos os batizados que os braços lhe caíam de cansados; ao morrer, aos 46 anos de idade, tinha convertido 52 reinos. Ah! O grande conquistador de povos! Que anos tão cheios! Viver assim é que vale a pena. Os apóstolos morrem; mas passam aos outros o brandão aceso no próprio coração de Jesus Cristo. Surgem os gigantes do apostolado. Os Roland, os Du Guesclin, os bravos, os cavaleiros formam uma galeria menos sublime. Ao lado dos apóstolos célebres, conquistadores de almas, colocam-se os humildes sacrificados: em Molokai, o P. Damião leproso com os leprosos; em Caiena, os sacerdotes que viviam como os forçados das galeras; no Canadá, os missionários a quem os selvagens enterram farpas de madeira nas unhas e rasgam a boca até às orelhas. Além disso o apostolado não é um couto reservado somente para aqueles que vestem a sotaina. Em pleno mundo, muitas pessoas compreendem a beleza do zelo:
Esses três irmãos cujo nome treme no bico da minha pena, que durante as férias vinham todos os domingos desde o mar a Líège, para darem assistência ao seu patronato; esse Filibert-Vrau, cuja história foi escrita por Mons. Baunard; essas Damas do Calvário que cuidam dos cancerosos. Desempenham uma tarefa horrorosa? O seu fim último é tratar o cancro? Não. Elas sabem que o pecado é o cancro moral. Querem fazer a alma tanto mais bela, quanto mais disforme é o corpo. Não são tão somente enfermeiras, senão também apóstolas.
Resumamos esta primeira parte: O zelo explica-se pelo valor das almas; ensina-o o Evangelho. Praticam-no inúmeros apóstolos.
A nós cabe escutar essas lições, imitar esses exemplos.
Um dia virá em que tenhamos de comparecer diante de Deus.
- Foste bom cristão?
- Creio que sim, Senhor.
- Nunca entristeceste a Igreja nem escandalizaste os fiéis?
- Nunca.
- Cumprias os preceitos pascais?
-Sim.
- Assistias à Missa dominical?
- Com certeza.
- Rezava?
- Todos os dias.
- Tudo isso está muito bem, servo bom e fiel, tudo isso é muito. Mas não é tudo. Não basta levar uma vida ordenada, ser bom pessoalmente, e, por assim dizer, egoisticamente. Seria inadmissível, recolher-se prudentemente à Arca e daí saborear a segurança pessoal, sem pensar sequer que são tantos os outros que se afogam no dilúvio universal. Ajudaste as almas? Fizeste para salvá-las o que os adversários fizeram para perdê-las?
Bem aventurados aquele que possa responder: «sim, Senhor, eu fui Apóstolo», porque receberá plena recompensa.
(Em face do dever - Volume II, pelo Pe. G. Hoornaert, S.J, traduzido por Pe. M. da Costa Maia, o original que serviu para esta tradução é o da 1ª Edição francesa que tem por título: "Face au Devoir", livraria Cruz, Braga, 1954)
PS: Grifos meus.