FREI AVE-MARIA
Era uma vez um jovem e valente cavaleiro, de barbas douradas como o trigo maduro banhado pelo sol. Entusiasmado pelo ideal, ele havia partido para as Cruzadas, edificando os cristãos pela sua piedade e, aterrorizando os turcos, pelo seu valor. Sua fé e sua coragem lhe haviam merecido estar na primeira fila em todos os combates. Espada na mão foi o primeiro a romper o cerco que os turcos fizeram. No dia 14 de julho de 1099, de espada na mão, foi o primeiro a entrar na cidade de Jerusalém, ao lado do comandante Godofredo de Buillon. E, abrindo um claro entre a turba muçulmana que lutava e que fugia, foi o primeiro a se ajoelhar nas lages do Santo Sepulcro, beijando sua espada ensangüentada e, dando graças a Deus.
Era um valente, e Deus o quis provar permitindo-lhe uma cruz na proporção do seu valor. Quando atravessava, vitorioso, as ruas de Jerusalém seus olhos vislumbraram os movimentos de um muçulmano covarde que, do alto de uma torre, lançava um bloco de pedra contra Godofredo de Buillon. Para salvar o seu chefe, o cavaleiro o empurrou e o pesado bloco o atingiu na cabeça. Quando o acudiram e retiraram o seu elmo todo amassado, viram horrorizados aquele enorme talho de onde o sangue brotava como de uma fonte. O maior dos combates do jovem cruzado estava para começar.
Seus amigos solícitos o levaram de volta a Europa, e seu jovem corpo se recuperou, mas um pouco de seu espírito havia ficado para sempre entre os muros de Jerusalém. O filho, que a mãe chorosa abraçou na volta, era quase que apenas um invólucro daquele que a havia beijado ao partir. Os olhos ainda sorriam quando ela o penteava, ou quando mostrava seus brinquedos de criança, ou quando apontava a pequena Virgem de marfim que sempre estivera à sua cabeceira. Mas... que tristeza! Suas mãos não tinham mais coordenação. Andava cambaleando, como um velho embriagado. E, mal balbuciava as palavras, num enorme esforço de mãos crispadas e lábios torcidos, uma caricatura grotesca que fazia rir os insensatos, de um riso maldoso, que atravessava o coração de sua mãe.
Que seria de seu filho quando ela morresse?
Sem parentes, sem esposa e sem filhos, quem dele cuidaria? Sentindo a passagem dos anos, a senhora procurou o superior de uma Ordem beneditina que ocupava um pequeno e desconjuntado convento próximo. E, foi clara e franca, no que disse: deixaria em herança para a Ordem, o seu castelo, o seu feudo, todos os seus rendimentos e toda a sua fortuna. Só lhes pedia a condição de que cuidassem bem de seu filho, até o dia em que Deus o quisesse levar.
Os olhos do superior brilharam. A nobre senhora não deveria se preocupar, que seu filho seria bem cuidado. Ele até o admitiria na Ordem como irmão leigo. E, com o tempo e com a paciência dos monges, que carinhosamente o assistiriam ele poderia até mesmo aprender a rezar as Horas e lhe fazer companhia no Coro.
E assim foi. A senhora faleceu e os monges se transferiram para o castelo, passando a ocupar seus quartos, suas salas e seus salões. Ao cruzado, agora irmão leigo, foi permitido que ocupasse seu antigo quarto de menino, conservando alguns dos móveis e a Virgem de marfim. Ajoelhado diante da Virgem, o cruzado rezava, repetindo sempre as duas únicas palavras que conseguia reter em sua memória: "Ave Maria". O resto da oração, tudo o mais, lhe escapava. Bem que os monges, a princípio, tentaram lhe ensinar outras orações. Mas era um trabalho inútil.
Por fim, o superior mandou que desistissem, pois o novo convento, com seus campos e suas vinhas, precisava de muita gente para ser administrado com eficiência, e não se podia ficar perdendo tempo.
O antigo cavaleiro foi deixado de lado. Estabeleceram que se alimentasse na cozinha e não no refeitório, para que sua vista não chocasse os visitantes. Pelo mesmo motivo, ele não deveria freqüentar a capela, mas assistiria a missa por uma janela estreita que dava para o jardim. Seu trabalho seria o de carregar a lenha. O resto do tempo poderia ocupar da forma que entendesse. Desde que não atrapalhasse ninguém. Mas ele não atrapalhava.
Desligado das coisas e dos homens passava seu tempo, ora de joelhos no quarto diante da Virgenzinha de marfim, ora caminhando pelos campos e vinhedos, rezando sempre "Ave Maria... Ave Maria... Ave Maria..." Os noviços o apelidaram de "Frei Ave Maria", e logo o apelido pegou. Riam-se quando ele passava.
Pelas costas, atiravam-lhe pedrinhas. Reservavam-lhe os restos da mesa, que ninguém mais queria. Mudaram seu quarto para um cômodo ao lado do depósito de lenha. Onde só cabiam uma enxerga e a Virgem de marfim. Mas ele não parecia se incomodar.
Sorria sempre e continuava rezando: "Ave Maria, Ave Maria". Tanta paciência acabou por incomodar. Alguns frades foram reclamar ao superior que, aquele murmúrio contínuo que fazia o frei Ave Maria, não os deixava se concentrar nem em suas orações, nem nas contas da administração. Em vista disso, o superior lhe proibiu o acesso ao interior do castelo. Lá fora, haveria espaço suficiente para ele rezar.
E, assim envelheceu aquele frei. Em um dia de inverno, um noviço auxiliar da cozinha o foi encontrar. Em seu quarto, ajoelhado diante da Virgem de marfim. Estava morto. Foi com alívio que os monges, depois de uma rápida cerimônia, o sepultaram. O noviço que o encontrara se lembrou de prender a cruz da sepultura, a pequena Virgem de marfim. Depois, foi todos cuidar dos seus negócios e a neve cobriu tudo.
Quando veio a primavera, a neve derreteu, e o mesmo noviço reparou que uma plantinha nascia na terra do túmulo. E se enroscava na cruz. Depois de um mês, a trepadeira cobria todo o lenho, circundando a imagem de marfim. Pequenos botões pareciam surgir se multiplicar, pulular... E, no mês de maio, os botões se abriram em flor. E os monges, assustados com a gritaria que fazia o noviço, vieram todos contemplar as flores, que rodeavam a pequena Virgem de marfim. Eram lírios, mas lírios dourados como o trigo maduro banhado pelo sol, e, em cada uma de suas pétalas se podia ler, em letras de sangue: Ave Maria... Ave Maria... Ave Maria...
(O Desbravador - Dezembro de 2007)