Jesus recebendo a Cruz
Veni, sponsa mea!
Vem, ó Minha esposa!
Volvei séculos na fantasia; transportai-vos a cidade de Jerusalém: enorme multidão enche as ruas e as praças públicas; arautos fazem soar as suas trombetas; pela cidade desfila ruidoso séquito, cujo caminho abre o centurião.
Todo aquele povo está alvoroçado. Que acontecimento se opera? Que fato tão singular desperta assim a pública atenção?! A história nos diz simplesmente que era Jesus Cristo que seguia o caminho do Calvário, acompanhado dos Judeus, que tripudiavam de infernal alegria por terem, enfim, conseguido da infâmia dos seus magistrados a mais infame de todas as condenações.
Eu também vejo tudo isso; mas, iluminado por melhor luz que a luz da história, vejo naquela multidão um verdadeiro cortejo; ouço nas trombetas que soam verdadeiramente os hosanas do céu; vejo no condenado o Esposo eleito; na Cruz que Lhe dão e que Ele conduz vejo a Sua esposa dileta; no Seu trajeto doloroso para o Calvário vejo a marcha triunfal para o templo onde se consumará o consorcio em que deve receber a única esposa digna do Seu amor!
Então, me perguntareis: esse grande acontecimento, esse fato estrondoso que se passa em Jerusalém não é senão a festividade de um casamento? Sim; é um casamento; porque, fototipo de todos os laços sagrados, o casamento abrange a universalidade das coisas.
Casar, diz católico e erudito publicista, é chamar alguém, alguma coisa para si, identificar-se com ela. Casa-se o monge com o seu monge com o seu mosteiro, o rei com o seu reino, o senhor com o seu domínio, o lavrador com a terra. Também Jesus Cristo se casou: casou-Se com a Cruz.
Sim; é um casamento: e o encanto de todos os esposais; a ternura de todos os noivados; a ventura de todas as núpcias não igualam a felicidade desse casamento, que não foi senão o consórcio da humanidade com Deus.
Este consorcio consumou-se no altar do Calvário; mas os esponsais tiveram lugar nas ruas de Jerusalém, a louca, a cega, a cruel, a obcecada, que não pode divisar através das sombras de seu ódio a beleza de tão divino casamento, cujas pompas triunfais são as próprias crueldades de que ela o cerca, e das quais a sabedoria de Deus tira a exaltação de Seu Filho.
Também o século, eu sei, não compreende estas espécies de casamento: ele, que tem em consideração todos os casamentos, até mesmo o civil, não ouvirá sem incredulidade falar de núpcias místicas, de casamentos espirituais.
Não estamos mais nas épocas de fé em que o mundo admirava e as belas artes celebravam o consorcio de Santa Catarina de Sena com Jesus Cristo, ou o do São Francisco de Assim com a pobreza.
Não obstante, como diz São Bernardo, é verdadeiramente um contrato nupcial a união das almas com Jesus Cristo; e tudo o que se pode dizer de mais belo a respeito da intimidade, de fusão dos corações, da comunhão dos bens, nos casamentos da terra, se realiza no de Jesus Cristo com a alma humana.
O Esposo não é simplesmente uma pessoa que ama: é o Amor em pessoa, em toda a Sua infinita amabilidade.
A união é a união com Deus, a única sem desencantos; porque todas as outras pagam tributo às ilusões da vida e as fraquezas de nossa natureza: só essa não sofre decepções.
A prole é de todas a mais formosa: porque são os frutos da virtude cristã.
O dote não é somente o cêntuplo neste mundo: é a vida eterna no outro.
Também São Tomás comparava o nosso Paraíso futuro a uma espécie de união matrimonial entre Deus e a alma, na qual três dotes bem distintos nos são constituídos: a visão de Deus, a posse de Deus, a deleitação em Deus.
Ora não foi senão para unir a si todas as almas que Jesus Cristo caminha lenta e dolorosamente; todas as Suas feridas sangram; as gotas de sangue envolvem Seu corpo; as fontes abertas pela flagelação deixam ensopar o Seu vestuário. E, vendo-O caminhar fatigado, como que não podendo suportar o peso da cruz, perguntar-se-á: tendo-a desejado com tanto ardor, aceitado com tanta ânsia, como tão fraco se mostra para carregá-la?! Se real fosse a Sua alegria, não devia antes mostrar-se forte e vigoroso?!
Tudo isso, cristão, não é uma enfermidade: é um prodígio.
Ele leva uma cruz carregada de todos os pecados do mundo; e, se Ele a conduzisse com firmeza, com força própria a desconcertar os Judeus, com ar altivo e triunfante, isso não seria útil a nossa redenção. Essa cruz não teria representado a humanidade em toda a sua fraqueza; Jesus Cristo não carregaria a nossa cruz.
Levando-a, porém, vacilante, fraco, no meio de ignomínias e insultos, com esforço, dificuldades e pena, com os sentimentos de um culpado, tremendo sob o seu peso. Ele mostrou que se pôs em nosso lugar e levava a nossa cruz.
Como diz um padre, os mártires podiam, com alegria e ar triunfante contemplar as suas cruzes, porque eles a tinham recebido para glória de Jesus Cristo. Jesus Cristo não – porque Ele levava a Cruz por nós e em nosso lugar.
Na Agonia do jardim vimo-lO revestido de todos os pecados do mundo. Na Flagelação – revestido especialmente das nossas impurezas. Na Coroação de espinhos – especialmente revestido de nossas vaidades e orgulhos. Hoje, recebendo a Cruz, e no caminho do Calvário, vemo-lO mais especialmente revestido de toda a nossa fragilidade, das vacilações e fraquezas da humanidade, que não é senão muita repugnância e com muito esforço que aceita tudo aquilo que aflige a carne e mortifica a natureza.
Não obstante, este mistério é cheio de encantos: é dum mistério de encontros, de concursos e de harmonias.
Em primeiro lugar, é o encontro do Precioso Sangue com a Cruz; e neste encontro é que reside a virtude secreta da redenção.
Bastava um gemido, uma lágrima, uma súplica, o menor sofrimento ou humilhação de Jesus Cristo para salvar este e todos os mundos possíveis; mas a Eterna Justiça tinha decretado que a redenção se fizesse pelo sangue: Sine effusione sanguinis non fit remissio. E o sangue que devia resgatar o mundo não era precisamente o da Circuncisão, o da Agonia, o da Flagelação, o da Coroação de espinhos, mas o que fosse derramado no Calvário. Ora, é hoje que Jesus Cristo recebe a Cruz, é hoje que contrai os Seus esposais; é hoje que vai consumá-los. Este mistério é, pois, o prelúdio da redenção.
Em segundo lugar, este mistério é o encontro da Mãe com o Filho, até então, aos olhos, separados nos diversos mistérios da Paixão, hoje reunidos nos diversos e ambos levando as Suas coroas – o Filho a coroa de espinhos sobre a cabeça; - a Mãe – a coroa da Dor sobre o coração.
Sempre a Mãe e o Filho estiveram unidos. Maria, de fato, tinha sido o primeiro Calvário de Jesus, o primeiro altar em que a Hóstia Pura se tinha imolado; mas é hoje que as Duas Vítimas das nossas iniqüidades se nos mostram solidárias na mesma responsabilidade, no mesmo resgate, na mesma Salvação.
Este mistério é, portanto, não só a vitória do Filho, mas a suprema abnegação da Mãe.
Em terceiro lugar, este mistério é uma figura, uma profecia: a figura da Igreja, caminhando através dos séculos; a profecia de suas vicissitudes, de suas lutas, de seus triunfos; é o precioso Sangue caindo sobre bons e maus; e multiplicado, perpetuado pela Igreja, inundando o mundo inteiro no mar do seu amor.
Eis a tríplice significação do mistério.
Qual o seu ensino?
Ele nos ensina que se não encontra Jesus Cristo senão com a Cruz; e que, se Jesus Cristo a amou tanto, também nós devemos amá-la.
O que melhor do que a Cruz de Jesus Cristo nos ensina a injustiça das nossas queixas nos sofrimentos, nas tribulações, na adversidade?!
Entretanto, amamos a Jesus Cristo; mas não a Sua Cruz. Ele tem muitos, diz o Livro da Imitação, que amam o Seu Reino celestial; mas poucos que levam a Sua Cruz.
Muitos desejam Suas consolações, e mui poucos amam os Seus trabalhos.
Muitos companheiros acha de Sua mesa, e poucos de Sua abstinência. Todos querem gozar da sua alegria; poucos, porém, querem sofrer alguma coisa por Ele.
Sim. Ninguém quer a Cruz; ou, se a deseja, há de ser conformemente aos seus gostos e inclinações.
Cada um quer talhá-la a seu bel-prazer; cada qual quer que a sua cruz seja não a do opróbrio e da ignomínia, mas a do orgulho e da vaidade; cada qual quer escolhê-la.
Sou fraco e sensível; não me fiz a mim próprio; não posso suportar esta cruz; suportaria outra, esta não, porque é uma injuria que se me irrogou, uma calúnia de que sou vítima, uma tribulação que não mereço: - eis a objeção.
Ninguém, seja rei ou papa, pode viver sem cruz. Inocente, penitente ou incrédulo, todos têm de carregá-la; porque, como ainda hoje lembrava piedoso cristão, há a cruz da inocência, há a cruz da penitência, há a cruz da irreligião. Sim: o inocente sofre; o pecador arrependido chora; o ímpio ilude-se fugindo de Jesus Cristo, mas não logra viver sem tribulação.
Todos levam a sua cruz: é uma lei; mas, como ninguém se pode eximir a esta lei, cada qual quer uma cruz ao seu gosto, pretextando a sua fraqueza.
Ilusão! A cruz que cada qual carrega é a que lhe parece oposta à sua natureza, mais apropriada é as suas necessidades.
Jesus Cristo, mandando que cada qual carregue a sua cruz, não distinguiu os que a natureza fez mais fortes dos que a natureza fez mais sensíveis e fracos. As suas regras são remédios; e, por mais que nos pareça a nossa cruz resultado da vontade dos homens, não é senão obra da paternal bondade de Deus.
Sois fraco? Mas é porque sois fraco que essa cruz vos convém. Que é ser fraco e sensível, pergunta eloqüente orador cristão?
“É dar tudo a natureza e nada a fé. É amar-se excessivamente a si mesmo; é deixar-se conduzir pela vivacidade de suas tendências; é querer repouso e a paz numa vida de combates. Uma alma cristã, diz o Apóstolo, deve ser uma alma forte, a prova das perseguições, dos opróbrios, da morte mesmo. Arrebatem-se-lhe seus bens, sua honra, sua reputação: que importa?! Conserve-a o tesouro da fé! Sinta, porque a religião não apaga os sentimentos do coração; mas alegra-se, porque a fé transforma as lágrimas carnais em lágrimas de amor, resignação e piedade.”
Não; não lamentais as vossas esperanças frustradas, os vossos projetos de grandeza e de fortuna dissipados, as vossas ilusões de prazer, de bem-estar e de glória aniquiladas pela injustiça, pela ingratidão, ou pela adversidade: são os sinais da vossa predestinação e a matéria de vossa cruz.
Tomai-a. Que significa tomar a cruz?
Significa, diz São Francisco de Sales, receber e sofrer as nossas penas, contradições, aflições e mortificações que nesta vida nos acontecem, sem exceção alguma, com inteira submissão e indiferença. As melhores cruzes são as que mais incomodam a parte inferior da alma. As cruzes que a nós mesmos impomos são inferiores, por serem nossas; e têm menos mérito.
Recebamos, pois, com amor as que não escolhemos e que Deus no deu, ainda que sejam de palha e não de madeira. O mérito da Cruz não consiste no seu peso, mas no modo de levar; e há muitas vezes mais virtude em levar uma Cruz de palha, porque é mais abjeta e menos conforme a nossa inclinação, do que uma bem pesada de madeira, que nos faz brilhar aos olhos do mundo, lisonjeia a nossa vaidade, e nos atrai a fama, a celebridade, o louvor.
Aquela parece abater-nos, e esta elevar-nos. Mas isto foi à mesma ilusão dos Judeus. Eles supunham não dar a Jesus Cristo com a Cruz que Lhe escolheram senão a ignomínia; e deram-Lhe a glória! Nós supomos que na Cruz que aparentemente nos dão os homens só há opróbrios: nela, entretanto, está a vontade de Deus, e, pois, a nossa glória!
Que, portanto, cada um carregue a sua cruz. É pesada?
Mas ali está Jesus Cristo, que nos ensina a carregá-la. Ele nos ajudará, diz o Livro da Imitação, pois é nosso capitão, e nosso guia, e foi também nosso exemplo. Como nosso Rei, vai a nossa frente para combater por nós. Sigamo-lO com valor; ninguém tema nem enfraqueça; ninguém perca sua glória com a vergonha de fugir da Cruz.