segunda-feira, 7 de março de 2011

A flagelação

A flagelação


Livore ejus sanati sumus

As suas feridas são os nossos remédios.

Jesus flagelado! Para o século uma vergonha, um opróbrio, uma ignomínia. Para a razão iluminada pela fé, a glorificação da matéria, a apoteose da castidade feita pelos próprios verdugos a quem Deus encarregou a inconsciente missão de nos membros flagelados de Jesus Cristo gravarem em inapagáveis caracteres de sangue a honra do corpo, a dignidade da carne!

A Flagelação é, sem dúvida, um dos mais horrorosos e o mais humilhante de todos os episódios da Paixão, porque aos sofrimentos indizíveis da vítima juntaram-se os opróbrios de Seu pudor ofendido!

Ao julgamento de Nosso Senhor não precederam as solenidades de um tribunal. Ele foi entregue aos mais vis satélites da justiça criminal, que não Lhe dispensou sequer o aparato judiciário de uma execução.

Os instrumentos de Seu martírio eram horríveis; a forma e a variedade dignas da crueldade de Seus carrascos, que com os olhos cheios de ameaças, os lábios cerrados, e os braços armados, fazem-nO experimentar toda a força muscular e brutal de que são capazes.

Repugna-nos contemplar esta cena tão hedionda e infame; e, entretanto, o mistério da Flagelação é cheio de encantos. Como o da Agonia, a efusão de sangue na coluna não era ainda a destinada nos desígnios de Deus a resgatar o mundo, que devia sê-lo pela efusão do Calvário.

Era, portanto, mais uma magnificência, uma prodigalidade, uma exuberância do amor de Jesus Cristo, que tinha, entretanto, dado em espetáculo a cidade e ao povo desígnio especial.

A humilhação tem lugar, e do modo mais completo; mas não sem que Jesus Cristo a faça proceder de uma prova inequívoca da voluntariedade com que a aceita, e da onipotência com que a podia impedir.

Quando infame tropa de soldados O vai prender, antes que se aproximem, Ele sai-lhes ao encontro. Eles aparecem, de mão armada, com Judas, que os conduz; e não O conhecem! É preciso que Jesus Cristo lhes diga: “sou eu Aquele que procurais!” E só com dizer: “Eu sou” eles caem por terra.

Beija o discípulo traidor; sara a orelha de Malcos; incita os miseráveis satélites da justiça romana a cumprirem a sua missão; só então eles têm a coragem de fazê-lo. Estava mais uma vez revelada a Sua onipotência; agora era mister uma nova revelação do Seu amor.

Deixa prender-Se para que executem nEle todas as crueldades. Tratam-nO brutalmente; dão-Lhe empurrões e pancadas; atam-Lhe as mãos; levam-nO aos juízes; esbofeteiam-nO; vestem-nO de branco como a louco; atam-nO, enfim, a uma coluna, e manda açoitá-lO!

Ei-lO na coluna! Os verdugos descarregam sobre Ele com toda desumanidade os seus azorragues; todos os Seus membros são horrorosamente flagelados; cada um dos Seus sentidos sofre especial tormento; o sangue cobre toda a superfície de Seu corpo e alaga o chão.

Que significado pode ter este mistério, como ensino e exemplo proveitoso à nossa salvação?

Pois a carne de Jesus Cristo não é pura, imaculada, santa? Perfeitamente submetida ao espírito? Pois o corpo de Jesus Cristo não é perfeito instrumento da Sua alma, exatamente como Deus o imaginou?

Sim; mas a nossa carne é uma carne de pecado, impura, desregrada, rebelde ao espírito, corrompida e fonte de toda a corrupção. É dessa carne que derivam todas as obras que São Paulo chama – obras carnais, e pelas quais devia o nosso corpo ser castigado, afligido, flagelado.

Que fez o nosso Redentor? Colocou-Se na situação em que deviam os estar; pôs em lugar da nossa a Sua carne imaculada; revestiu-Se de todas as nossas sensualidades, luxúrias, impurezas, imaginações torpes, complacências, impurezas, lascivas, de todos os nossos desejos impudicos.

Na Agonia do Jardim vimo-lO revestido de todas as iniqüidades de todos os povos, em todos os gêneros de pecado. Hoje, na Flagelação, vemo-lO como que de um modo especial revestido dos pecados da sensualidade, vingando a honra de nosso corpo, firmando a dignidade de nossa carne.

Eis a grande significação do mistério que, pois, não é senão uma substituição.

É a carne inocente de Jesus Cristo pagando os pecados da nossa carne culpada. E basta que por uma sincera penitência apliquemos a nós próprios os méritos dessa expiação, para que satisfaçamos a Justiça Divina, que em Jesus Cristo viu a responsabilidade da pena, mas não a malícia da falta; pelo que os sofrimentos de Jesus Cristo não nos eximem da penitência, mas dão aos nossos atos de mortificação valor infinito.

Eis o ensino, a lição e o exemplo que convinham a todos os tempos; mas se há um século em que o mistério de Flagelação tenha alta significação, é o nosso, em que devemos estudá-lo, meditá-lo e admirá-lo, não simplesmente de um modo estético, como fonte de ternura, compaixão e lágrimas para o nosso coração; não lamentá-lo simplesmente como um atentado inaudito da justiça romana, uma prevaricação descomunal do Direito, um excesso brutal da crueldade judaica; mas adorá-lo como um mistério de salvação.

Foi porque Ele viu, em toda a série dos séculos, as misérias da nossa concupiscência, que deixou correr para nós, como uma fonte de vida, o sangue de Sua Flagelação; e é para que nos aproveitemos dela que o Evangelho para todo o sempre imortalizou o mistério e a Igreja perpetuamente no-lo mostra reproduzido.

Se em todas as épocas a humanidade, tão inclinada pela prevaricação adâmica aos furores da impureza e as orgias da concupiscência, teve necessidade desse remédio, hoje, mais do que nunca.

Uma das principais características do século 19 é – o pecado da carne. Uma de suas mais caluniosas acusações contra o cristianismo é a de ter atrofiado a aberrações místicas da alma as legítimas necessidades da sua natureza física.

É tempo, diz o século 19, do homem ser adorado, não só na alma, mas também no corpo. É tempo de cessar esse longo divórcio entre a alma e os sentidos. Que quer dizer essa moral de sacristia só própria para os hipócritas, os tartufos e os imbecis?!

Que quer dizer disciplinar a carne, reprimir as paixões, imolar o corpo?! Que valor tem a castidade, a virgindade, o celibato, a abstinência e o jejum?! Tudo isso não passa de violação desta grande lei – tudo é bom na natureza.

Tudo é bom na natureza! Portanto, satisfaçamos todas as paixões, libertemos o corpo dessa longa escravidão, desse jejum de tantos séculos! Portanto, inauguremos a era do amor livre! Gozar é a lei: aspiremos, portanto, a vida por todos os poros.

Inventem-se, se é possível, novos prazeres, novos gozos, novas volúpias. O corpo tem direito de satisfazer os seus apetites. Desenvolver a sensação é obra tão santa como enriquecer o pensamento; e o homem que descobrisse uma volúpia nova, um gozo desconhecido, um novo gênero de luxuria – seria mais glorioso do que Newton descobrindo mundos no espaço!

Eia, liberte-se a humanidade; desoprima-se o corpo do homem das superstições cegas, dos ascetismos extravagantes, das mortificações insensatas, de toda essa escravidão com que a Igreja há longos séculos o traz cativo.

Transfigure-se o mundo; proclamemos um novo catolicismo – o catolicismo da carne; celebremos uma nova Páscoa – a páscoa do gozo universal.”


Eis o hino que o século 19 põe nos lábios deste novo gigante que se chama – o homem moderno.

Gigante sim, dizia-o tristemente uma das maiores figuras científicas do nosso tempo, Moigno, quando, contemplando os esplendores da moderna civilização, que, aliás, ele tanto tinha impulsionado com as obras primas de seu engenho, exclamava: mas tudo isto não tem elevado o ideal da inteligência; antes tem servido para exclusivo conforto do corpo e para encher de orgulho a besta humana, que se reputa um gigante, e já não olha para o céu!

Gigantes! Mas já os houve, e a história deles pode-se tornar as nossa.

Acharam belas as filhas da terra; um amor louco depravou os seus corações; a sua razão obscureceu-se; e o espírito deles identificou-se com a carne!

Sempre; sempre que o gênio do homem concentra toda a sua atividade na matéria, torna-se um gigante; mas também na embriaguez do seu triunfo julga-se Deus.

E começa uma reação medonha: a matéria absorve, escraviza, subjuga a alma; e, embrutecido o homem, o espírito perde os seus vôos, a ciência extingue-se, a indústria morre, a barbaria recomeça!

Seriam pueris os temores de Moigno?

Não; o que vemos em nosso século os justifica. Um imenso desequilíbrio entre a alma escravizada e o corpo na plena soberania das suas paixões não deixa duvidar que já estamos no pleno reinado do pecado da carne.

Expressões deste pecado – a política, a literatura, a arte. Que é a política moderna senão a arte de animalizar as nações, proporcionando-lhes a maior soma de gozos animais?!

Qual a ambição exclusiva dos governos?

Aumentar a indústria! Qual a sua preocupação constante? O bem estar, o conforto, o cuidado exclusivo da vida material.

Qual o seu ideal moral e religioso? Nenhum! Deus foi completamente banido da política.

Que é a arte moderna? O requinte da volúpia nas variadas produções da música, da pintura, da escultura. Nos próprios lares já os ídolos pagãos substituem os símbolos cristãos. As grandes composições já não podem rivalizar com as imundas partituras e óperas concebidas para inflamar as paixões sensuais.

Os quadros e as gravuras quase que não têm outro fim senão escandalizar o pudor do homem e a moral pública.

Que é a literatura moderna? O realismo, isto é, a mais torpe de todas as expressões literárias da luxúria; tão torpe e vergonhosa para a história da humanidade que dele diz o ilustre historiador que acaba de baixar ao túmulo, Cantú: - o realismo é verdadeiramente uma orgia literária, em que a literatura perdeu de vista a consciência de suas aberrações, dando a liberdade da inspiração pessoal as mais extraordinárias fantasias, os mais incompreensíveis desmandos. Perdido o hábito da serenidade da arte, do nobre esmero do pensamento, da escolha das coisas levantadas, as extravagâncias julgam-se originalidades, e os desregramentos vôos de gênio. Procura-se o horrível, o extraordinário. Não se faz psicologia; mas patologia. O que é simples e delicado parece insípido. Pululam como cogumelos, as obras literárias que descrevem o mundo como um hospital e um lupanar.

Fazem-se descrições sem naturalidade; pintam-se caracteres excepcionais; urdem-se planos sem elevações nem engenho; favorece-se com lubricidades e escândalos o pendor do homem para as baixezas; lisonjeiam-se seus maus instintos; deprime-se a mulher na sua dignidade e no seu pudor; enfim, glorifica-se o pecado da carne!

Eis a literatura realista, da qual diz também Julio Simon: é um veneno que se infiltra cada dia em milhões de almas. É uma escola de grosseria, uma literatura depravada, artificial, falsa, porque para que a imaginação nos amenize a vida é mister que nos mostre o seu lado bom; e o pintor que não nos mostra senão as verrugas do seu modelo faz uma caricatura, mas não um retrato. O erro da moderna literatura é não mostrar da natureza humana senão o lado feio; é não descrever nunca o homem são, mas só o doente.

Era a mesma ponderação de Cantú: O real é o modelo do artista; mas a realidade no mundo social não é só o mal. Há tanta falta de verdade no romantismo, que só descrevia nos campos flores e nunca urzes, nas almas heroísmos e nunca baixezas; como no realismo, que nunca vê, através das nuvens, o sol no céu! O romantismo era uma mentira; o realismo é uma calúnia. Aliás, a arte não é obrigada a aceitar para as suas criações todas as realidades; porque muitas há que postergam o pudor e a moralidade, e devem por isso ser excluídas do seu domínio. À arte cumpre educar, melhorar, não somente copiar, e menos caluniar: o que faz desconhecendo a virtude, a abnegação, os triunfos da alma sobre as paixões, coisas ainda reais na vida, porque o mal, posto tenha um lugar vastíssimo no mundo, não o absorve.

Eis verdades puras, mas desconhecidas do nosso século, que, dominado pelo pecado da carne, acusa a Igreja de afligi-la no homem com os preceitos da castidade, virgindade, celibato, abstinência e jejum; desconhecendo que esses preceitos não são mais do que uma justa expressão do respeito que devemos professar pelo nosso corpo.

Quem já o glorificou mais do que a Igreja?

Quem mais do que ela compreende a sua nobreza e dignidade? Ouvi a sua doutrina. Devemos respeitar o nosso corpo; e o seu primeiro título ao nosso respeito é ter sido feito pelas mãos de Deus; o segundo é ter sido feito pelo modelo do Verbo encarnado; o terceiro é ser o tabernáculo da alma.

Todas as criaturas saíram do nada, a uma palavra de Deus; o corpo, porém, foi feito pelo próprio Deus, que transfigurou em carne o barro primitivo; e, quantas vezes o modelava, tantas tinha diante dos olhos a carne do Adão futuro – Jesus Cristo.

Se vós, perguntava Tertuliano, que não sois tão hábeis como Deus, sabeis engastar as pedras preciosas da Índia e da Sitia, os rubins do Mar Vermelho, não no bronze, na prata, no ferro, mas no ouro mais trabalhado: se sabeis escolher para os vinhos e perfumes delicados vasos apropriados, Deus havia de escolher para a alma humana, feita à Sua imagem e semelhança, um tabernáculo menos digno?!

Não! Escolheu o corpo; e de tal modo o associou à alma, que ele é mais do que servo, é verdadeiro cooperador da alma e até mesmo seu co-herdeiro nos bens do tempo e da eternidade.

Vede: para que a alma seja batizada, é preciso que o corpo seja lavado.

Para que recebe a força necessária a sua derradeira jornada, é preciso que o corpo seja ungido.

Para que receba na ordenação dons especiais do Espírito Santo, é preciso que o corpo receba a imposição das mãos.

Para que o casamento se efetue, é preciso que dois corpos se permutem.

Para que a alma se nutra de Deus, é preciso que o corpo o corpo receba a carne e o sangue de Jesus Cristo.

Para que a alma faça penitência, é preciso que o corpo se mortifique.

É o corpo que lhe empresta as lágrimas da dor e do arrependimento, as mãos suplicantes para o céu, as genuflexões.

Para que a alma dê o supremo testemunho de sua fé, é preciso que o corpo sofra o martírio.

E de tal modo o corpo está associado à alma que diz o apóstolo São Paulo: “glorificai os vossos corpos, porque eles são membros de Jesus Cristo”.

Não é, portanto, a Igreja, mas o século que, desconhece a nobreza de nosso corpo; e o que ele chama libertá-lo é de fato escravizá-lo, porque a liberdade da carne, como a entende o século, é o homem entregue a todos os seus apetites, com os joelhos sobre tapetes, os olhos cheios de adultérios, e entregue a todas as abominações da sensualidade.

A castidade, a virgindade, o celibato, a abstinência e o jejum são preceitos regeneradores e não imposições absurdas.

A castidade, dizia São Francisco de Sales, é o lírio das virtudes, e tem entre todas as virtudes esta especialidade de ser ao mesmo tempo a virtude da alma e do corpo.

Ela tem sua origem no coração, mas pratica-se pelos sentidos, e, pois, perde-se, não só pelos pensamentos e desejos, mas por todos os sentidos exteriores: pode-se perdê-la por tantos modos quantos meios há de impureza.

Quanto à virgindade, ela é o ideal da carne; não, sem dúvida, da carne prostituída, mas disciplinada pela alma.

Não é só o coração do homem, diz a Escritura, que aspira a Deus; é também o seu corpo, a sua carne; e, quando tantas criaturas aviltam seu corpo até a condição dos brutos, é belo ver que outras o glorificam até a pureza dos anjos. Até a pureza do anjo, sim; porque o caráter do anjo é que ele não tem corpo, o caráter da virgindade é viver como se o tivesse.

Quem pode, perguntava eloqüente orador, descrever os encantos da virgindade? Eu sei que na terra há um amor puro, santo, sacramental; mas, por mais belo que ele seja - o amor conjugal tem duas enfermidades profundas: é terrestre, sujeito a influência dos sentidos: exclusivo, absorve dois seres um no outro, a custa dos grandes amores humanitários.

A virgindade é a necessidade de amar eternamente; é o amor além do túmulo; o amor que não será terrestre, nem exclusivo, não será absolvido por um só pensamento, mas no qual, os véus da carne despedaçados, o coração desoprimido do peso dos sentidos, Deus visto face a face, todos os eleitos serão como os anjos de Deus no céu.

Também o celibato não escraviza a natureza humana.

Todos os povos, diz De Maistre, acreditaram que há na continência alguma coisa de celeste que exalta o homem e o torna agradável a Divindade.

A história confirma-o. A Índia, a Pérsia, a Arábia, o Egito, a Grécia, Roma, tiveram preitos para este sentimento, que, sendo universal, deve ter uma causa universal.

A humanidade sempre entendeu que as funções sacerdotais não se harmonizam com o casamento; e a Igreja, conformemente à doutrina de Jesus Cristo, ao ensino dos apóstolos, doutores e padres, fez do celibato um preceito para certa ordem de pessoas.

Jesus Cristo viveu virgem; quis nascer de Mãe virgem; e o mistério da Eucaristia, não sendo senão a reprodução da Encarnação deve ser consumado por um sacerdócio votado a continência.

A Igreja exalta a virgindade, estabelece o celibato; mas por isso não deprime o casamento, que dignifica e santifica; nem obriga quem quer que seja a fazer esses votos.

O fim do casamento é conservar o gênero humano pela reprodução; o do celibato – conservá-lo pela santificação.

São dois agentes igualmente abençoados da conservação social.

Contra tudo isto o século alega as violações do celibato; mas estas não provam contra a beleza do preceito, nem contra a possibilidade de cumpri-lo, como as profanações do casamento não provam contra a beleza do matrimônio, nem contra a possibilidade da fidelidade conjugal.

Eu sei; os tempos são maus; a fé entibiou-se; muitos dos próprios que receberam de Deus a honra da mais bela das vocações não parecem prezar devidamente a incomparável formosura da continência.

Mas oh! não me alegueis essas misérias do celibato, porque eu vos poderia alegar, e o faria, se a dignidade do púlpito o comportasse, as inumeráveis do casamento!

Eu seria um sensato profligando o matrimônio porque para muitos o leito nupcial já não é, como dizia o Apóstolo, cheio de honra e de glória?!

Serão sensatos aqueles que deprimem o celibato clerical, e fazem propaganda do padre casado, porque há perjuros da continência, apostatas da virgindade?!

Quanto às leis da abstinência e do jejum, são tão antigas como mundo, apresentadas no antigo e novo testamento, como mortificações salutares, agradáveis a Deus, grandemente meritórias para o homem.

Deixo de lado as razões teológicas com que a Igreja as justifica; limito-me a citar duas autoridades insuspeitas.

No seu livro admirável – Da medicina nas suas relações com a Religião, diz Vitteau:

Misturai o vosso vinho com muita água; comei pouco; numa palavra – jejuai. As vossas digestões dar-se-ão melhor; a vossa cabeça será menos pesada, os vossos olhos não parecerão mais sair das órbitas; vossa alma palpitará de alegria. A lei da abstinência e jejum é uma lei de conservação; e com admirável sabedoria a Igreja não a impõe senão quando o desenvolvimento físico é completo e o sistema ósseo plenamente consolidado.”

Em face da Europa culta, exclama também o apóstolo do jejum, o Conde Tolstoi:

Na sociedade atual, a virtude da abstinência está esquecida, e o jejum abandonado, considerado superstição grosseira. Mas sem abstinência não há vida moral possível. O homem é doente: tem paixões complicadas; e, para lutar contra suas tendências más, precisa combater em primeiro lugar as suas paixões fundamentais, que são – a gula e a luxuria. Se a primeira condição da vida moral é a abstinência, a primeira condição da abstinência é o jejum. Querer fazer grandes coisas sem estas prévias mortificações é querer andar sem pés. Vede os homens modernos: são elevados os assuntos de que se ocupam – filosofia, ciência, arte, poesia, distribuição da riqueza e do bem estar do povo, educação da mocidade; mas tudo isso para o maior número não passa de vã mentira: são questões de que se ocupam de passagem, no intervalo dos repastos, quando o estômago está cheio e não pode mais comer”.

Vinde; vinde agora vós todos que julgais a Igreja supersticiosa e opressiva nas mortificações que prescreve, e dizei se ela é ou não sábia e inspirada; se bem compreende ou não este sublime mistério da Flagelação, que vos apresenta hoje, não como uma cena de teatro, mas como um remédio, o único desta ferida universal: a luxúria.

A luxúria é a degradação das almas, o esgotamento das raças, o embrutecimento dos povos.

Descrevendo as causas da queda do império romano, disse um grande orador: “Roma come; e morre!

Esta palavra é profunda: contém a origem de todas as anarquias, de todas as revoluções, de todas as rebeldias do orgulho do homem contra a sabedoria de Deus.

Não houve ainda uma monarquia, por mais poderosa, que resistisse à luxúria; uma só república que saísse incólume das desordens da sensualidade, que começa sempre pela impureza, entronizada nos livros, nos jornais, nos teatros, nos romances, nas artes, na literatura e na política.

Os povos que não amam a castidade; que não prezam a virgindade; que zombam do celibato; que desprezam as leis da abstinência e do jejum – são povos mortos!

Podem ter generais que com vara de ferro lhes imponham a lei; batalhões que pretendam galvanizá-los: são povos mortos.

Podem ter estradas de ferro, fábricas numerosas, indústrias esplendidas, todos os faustos da civilização material: são povos mortos.

Podem ter pretensões a vida elevada da inteligência e do coração: não terão nunca a intuição das coisas delicadas e superiores do espírito.

Não terão nunca a frugalidade das raças disciplinadas. Sacrificarão os mais belos ideais da alma aos gozos mais torpes do corpo.

Podem ter pretensões a democracia e a liberdade: mas no ventre da gula afogarão a democracia, e diante de um banquete – apostatarão da liberdade! Roma come; e morre!

(A Paixão pelo Pe. Júlio Maria de Lombaerde, Cruzada da Boa Imprensa – Rio, 1937)

PS: Grifos meus.