Mas enfim São Paulo formula o mais forte, o mais premente e o mais admirável argumento que, ao que me parece, foi jamais feito para nos levar todos ao êxtase e arroubo da vida e operação. Ouvi, rogo-vos, Teótimo, prestai atenção e pesai a força e eficácia das ardentes e célebres palavras desse apóstolo todo arroubado e transportado do amor de seu mestre. Falando, pois, de si mesmo (e outro tanto se deve dizer de cada um de nós), diz ele: A caridade de Jesus Cristo nos força (2 Cor 5, 14).
Sim, Teótimo, nada força tanto o coração do homem como o amor. Se um homem sabe que é amado por quem quer que seja, é forçado a amar reciprocamente; mas, se é um homem vulgar que é amado por um grande senhor, certamente é muito mais forçado; mas, se é por um grande monarca, quanto mais ainda não é ele forçado! E agora, pergunto-vos, sabendo que Jesus Cristo, verdadeiro Deus eterno, onipotente, nos amou até querer sofrer por nós a morte, e morte de cruz, ó meu caro Teótimo! isto não é ter os nossos corações sob o lagar, e senti-los premer à força e espremer deles amor por uma violência e coação que é tanto mais violenta quanto é toda amável e doce?
Mas como é que esse divino amante nos força? A caridade de Jesus Cristo nos força, diz o Seu apóstolo, considerando isto. Que quer dizer considerando isto? Quer dizer que a caridade do Salvador nos força principalmente quando nós avaliamos, consideramos, pesamos, meditamos e somos atentos a essa resolução da fé. Mas que resolução? Vede, rogo-vos, Teótimo, como ele vai gravemente fincando e empurrando sua concepção nos nossos corações: considerando isto, diz ele. E quê? Que, se um morreu por todos, logo todos morreram, e Jesus Cristo morreu por todos (2 Cor 5, 14). É verdade, por certo: se um Jesus Cristo morreu por todos, logo todos morreram na pessoa desse único Salvador que morreu por eles, e a morte desse Salvador lhes deve ser imputada, visto que foi aturada por eles e em consideração deles.
Mas que é que se segue disso? Parece-me que ouço aquela boca apostólica como um trovão que exclama aos ouvidos dos nossos corações; segue-se, pois, ó cristãos! aquilo que Jesus Cristo desejou de nós morrendo por nós. Mas que foi que ele desejou de nós, senão que nos conformássemos a Ele: a fim, diz o Apóstolo, de que os que vivem não mais vivam doravante para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou (Ib. 15).
Verdadeiro Deus! Teótimo, como essa conseqüência é forte em matéria de amor! Jesus Cristo morreu por nós, deu-nos a vida por Sua morte, nós só vivemos porque Ele morreu; Ele morreu por nós, para nós e em nós. Nossa vida já não é, pois, nossa, porém dAquele que no-la adquiriu por Sua morte: nós já não devemos, pois, viver para nós, mas para Ele; não em nós, mas nEle; não por nós, mas por Ele.
Uma menina da ilha de Sestos (Provavelmente Sestos, cidade da Trácia, sobre o Helesponto, defronte de Abidos. Geogr. Ant.) criara uma aguiazinha com os desvelos que as crianças costumam empregar em tais ocupações; ficando grande, a águia começou pouco a pouco a voar e a caçar os pássaros segundo o seu instinto natural; depois, tendo-se tornado mais forte, atirou-se sobre os animais selvagens, sem nunca deixar de trazer fielmente a sua presa à sua cara dona, como que em reconhecimento da criação que dela recebera. Ora, sucedeu que essa menina morreu um dia, enquanto a pobre águia estava na caça, e, segundo o costume daquele tempo e daquela terra, seu corpo foi colocado numa fogueira em público para ser queimado; mas, assim que a chama do fogo começava a envolvê-la, a águia sobreveio a grandes remígios, e, vendo aquele inopinado e triste espetáculo, transida de dor, abriu as garras e, abandonando a presa, veio lançar-se sobre a sua pobre e cara dona, e, cobrindo-a com suas asas, como para defendê-la do fogo, ou para abraçá-la por compaixão, ficou firme e imóvel, morrendo e ardendo corajosamente com ela; por não poder o ardor do seu afeto ceder o lugar às chamas e ardores do fogo, para se tornar vítima e holocausto do seu bravo e prodigioso amor, como sua dona o era da morte e das chamas.
Ah! Teótimo, que vôo nos faz alçar essa águia! O Salvador criou-nos desde a nossa tenra juventude, assim nos formou e recebeu, como uma amável ama, nos braços da Sua divina providência, desde o instante da nossa concepção. Tornou-nos Seus pelo batismo, e criou-nos ternamente, segundo o coração e segundo o corpo, por um amor incompreensível; e, para nos adquirir a vida, suportou a morte, e alimentou-nos da Sua própria carne e do Seu próprio sangue. Oh! que resta então? que conclusão temos nós mais a tirar, meu caro Teótimo, senão que os que vivem não vivam mais para si mesmos, senão para Aquele que morreu por eles (2 Cor 5, 15)? isto é, que consagremos ao divino amor da morte de nosso Salvador todos os momentos da nossa vida, trazendo à Sua glória todas as nossas presas, todas as nossas conquistas, todas as nossas obras, todas as nossas ações, todos o nossos pensamentos e todos os nossos afetos.
Vejamo-lO, Teótimo, esse divino Redentor estendido na cruz como na Sua fogueira de honra, onde morre de amor por nós, porém de um amor mais doloroso do que a própria morte, ou de uma morte mais amorosa do que o próprio amor. Oh! por que não nos lançamos em espírito sobre Ele, para morrermos na cruz com Ele, que por amor de nós se dignou de morrer? Segurá-lO-ei, deveríamos nós dizer se tivéssemos a generosidade da águia, e nunca O deixarei; morrerei com Ele e arderei dentro das chamas do Seu amor: um mesmo fogo consumirá esse divino Criador e a Sua mesquinha criatura.
Meu Jesus é todo meu, e eu sou toda dEle (Cânt 3, 16), viverei e morrerei sobre Seu peito, nem a morte nem a vida me separará jamais dEle (Rom 8, 38-39). Assim, pois, se faz o santo êxtase do verdadeiro amor quando já não vivemos segundo as razões e inclinações humanas, porém acima delas, segundo as inspirações e instintos do divino Salvador de nossas almas.
(Tratado do amor de Deus, São Francisco de Sales, páginas 368ª 371)
PS.: Grifos meus.