quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Dos que morreram pelo amor e para o amor divino


Todos os mártires, Teótimo, morreram pelo amor divino; porque, quando se diz que muitos morreram pela fé, não se deve entender que tenha sido pela fé morta, mas pela fé viva, isto é, animada pela caridade.

Por isso a confissão da fé não é tanto um ato do entendimento e da fé como é um ato da vontade e do amor de Deus. E é por isso que o grande São Pedro, conservando a fé em sua alma no dia da Paixão, não obstante perdeu a caridade, não querendo confessar de boca como seu mestre aquele a quem reconhecia como tal no seu coração. Mas no entanto houve mártires que morreram expressamente só pela caridade, como o grande precursor do Salvador, que foi martirizado pela correção fraterna; e os gloriosos príncipes dos apóstolos, São Pedro e São Paulo, mas principalmente São Paulo, morreram por haverem convertido à santidade e castidade as mulheres que o infame Nero corrompera: os santos bispos Estanislau e Tomás de Cantuária também foram mortos por um motivo que não dizia respeito à fé, porém à caridade. E enfim em grande parte santas virgens e mártires foram trucidadas pelo zelo que tiveram em guardar a castidade que a caridade lhes fizera dedicar ao esposo celeste.

Há, porém, entre os amantes sagrados que se abandonam tão absolutamente aos exercícios do amor divino, alguns a quem esse santo fogo devora e aos quais consome a vida. O pesar impede às vezes tão longamente os aflitos de beber, de comer, de dormir, que afinal, enfraquecidos e definidos, eles morrem, e então o vulgo diz que eles morreram de pesar; mas não é a verdade, pois eles morrem de falta de forças e de inanição. É verdade que, havendo-lhes essa falta advindo por causa do pesar, cumpre confessar que, se eles não morreram de pesar, morreram por causa do pesar e pelo pesar.

Assim, meu caro Teótimo, quando o ardor do santo amor é grande, dá tantos assaltos ao coração, fere-o tão amiúde, causa-lhe tantos langores, leva-o a êxtases e arroubos tão freqüentes, que não podendo por esse meio a alma, quase toda ocupada em Deus, dispensar bastante assistência à natureza para fazer a digestão e nutrição conveniente, as forças animais e vitais começam a faltar pouco a pouco, a vida se encurta, e o desenlace ocorre.

Ó Deus! Teótimo, como é feliz essa morte! Como é doce essa amorosa seta que, ferindo-nos com essa chaga incurável da sagrada dileção, nos torna para sempre desfalecentes e doentes de uma palpitação de coração tão premente, que enfim há que morrer! De quanto pensais que esses sagrados langores, e os trabalhos suportados pela caridade, apressassem os dias os divinos amantes, como a Santa Catarina de Sena, a São Francisco, ao pequeno Estanislau Kostka, a São Carlos, e a várias centenas de outros, que morreram tão moços?

De certo, quanto a São Francisco, desde que ele recebeu os santos estigmas de seu Mestre, teve tão fortes e penosas dores, cólicas, convulsões e doenças, que só lhe ficou a pele e os ossos, e ele parecia antes uma anatomia, ou uma imagem da morte, do que um homem vivo e respirando ainda. 

(Tratado do amor de Deus, Livro sétimo, capítulo X)