quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Belíssimo texto de São Francisco de Sales sobre a Providência Divina

Exortação à amorosa submissão que devemos 
aos decretos da Providência Divina


Amemos, pois, Teótimo, e adoremos em espírito de humildade essa profundeza dos juízos de Deus, a qual, como diz Santo Agostinho (Ep. 105), o santo Apóstolo não descobre, mas admira, quando exclama: "Ó profundeza dos juízos de Deus!" "Quem poderia contar a areia do mar, as gotas da chuva, e medir a largura do abismo? diz aquele excelente espírito que foi São Gregório de Nazianzo. E quem poderá sondar a profundeza da sabedoria divina, pela qual ela criou todas as coisas, e as modera como quer e entende? Porque, na verdade, basta que, a exemplo do Apóstolo, sem nos determos na dificuldade e obscuridade dela, a admiremos (Orat. de paup. Am. Ecli., I, 2.). Ó profundeza das riquezas e da sabedoria e da ciência de Deus! Oh! como seus juízos são imperscrutáveis, e seus caminhos inacessíveis! quem conheceu o sentimento do Senhor, e quem foi seu conselheiro? (Rom 11, 33-34). Teótimo, as razões da vontade divina não podem ser penetradas pela nossa mente, até que vejamos a face dAquele que atinge de ponta a ponta fortemente, e dispõe todas as coisas suavemente, fazendo tudo o que faz com número, peso e medida (Sab 8, 1; 11, 21), e ao qual o Salmista diz: Senhor, tudo fizestes com sabedoria (Sl 103, 24).

Quantas vezes nos sucede ignorarmos como e por que as próprias obras dos homens se fazem, "e disso, diz o mesmo santo bispo de Nazianzo, o artífice não é ignorante, ainda que nós ignoremos o seu artifício! Assim, por certo, também as coisas deste mundo não são temerária e imprudentemente feitas, ainda que lhes não saibamos as razões". Se entrarmos na loja de um relojoeiro, acharemos às vezes um relógio que não será maior do que uma laranja, no qual haverá todavia cem ou duzentas peças, das quais umas servirão ao relógio, e as outras ao bater das horas e do despertador; veremos nele rodinhas, das quais umas vão para a direita e as outras para a esquerda; umas rodam por cima e outras por baixo; e o balancim, que, a golpes medidos, vai balançando seu movimento para um lado e para outro; e nós admiramos como a arte soube juntar umas às outras tal quantidade de tão pequenas peças, com uma correspondência tão justa, não sabendo nem para que é que cada peça serve, nem para que efeito é assim feita, se o dono no-lo não disser; e somente em geral sabemos que todas servem para o relógio ou para o toque. Dizem que os bons Indús se divertirão dias inteiros junto a um relógio, para ouvirem bater as horas no tempo marcado; e, não podendo adivinhar como isso sucede, não dizem entretanto que é sem arte e sem razão, mas ficam enlevados de amor e de honra para com aqueles que governam os relógios, admirando-os como gente mais do que humana. Teótimo, assim vemos nós este universo, e sobretudo a natureza humana, como um relógio, composto de tamanha variedade de ações e de movimentos, que não nos poderíamos furtar à admiração. E bem sabemos em geral que essas peças, diversificadas em tantas sortes, servem todas, ou para fazerem aparecer, como num relógio, a santíssima justiça de Deus, ou para manifestarem a triunfante misericórdia da sua bondade, como por um toque de louvor. Mas conhecer em particular o uso de cada peça, ou como ela é ordenada ao fim geral, ou por que assim é feita não o podemos entender, a não ser que o soberano Obreiro no-lo ensine. Ora, se Ele não nos manifesta Sua arte, é a fim de que O admiremos com mais reverência até que, estando no céu, Ele nos extasie na suavidade da Sua sabedoria, quando na abundância do Seu amor nos descobrir as razões, meios e motivos de tudo o que se houver passado neste mundo em proveito da nossa salvação eterna.

Diz novamente o grande Nazianzeno:
"Nós nos assemelhamos aos que são afligidos pela vertigem ou tonteira. Afigura-se-lhes que tudo gira em confusão à volta deles, se bem que sejam o seu cérebro e a sua imaginação que giram, e não as coisas. Pois encontrando assim alguns acontecimentos cujas causas nos são desconhecidas, parece-nos que as coisas do mundo são administradas sem razão, porque não a sabemos. Creiamos, pois, que, como Deus é o autor e pai de todas as coisas também toma cuidado delas pela Sua providência, que envolve e abrange toda a máquina das criaturas; e sobretudo creiamos que Ele preside aos nossos negócios, ainda que a nossa vida seja agitada por tantas contrariedades, acidentes, cuja razão nos é desconhecida, talvez a fim de que, não podendo chegar a esse conhecimento, admiremos a razão soberana de Deus, que excede todas as coisas; porque, quanto a nós facilmente é desprezada a coisa que facilmente é conhecida: mas aquilo que excede a ponta do nosso espírito, quanto mais difícil é de ser entendido, tanto mais também nos excita a uma grande admiração. Certo, seriam bem baixas as razões da Providência celeste se nossas pequenas mentes pudessem atingi-las; seriam menos amáveis na sua suavidade, e menos admiráveis na sua majestade, se fossem menos afastadas da nossa capacidade". 
Exclamemos, pois, Teótimo, em todas as ocorrências, mas exclamemos com coração todo amoroso para com a Providência sapientíssima, poderosíssima e dulcíssima de nosso Pai eterno: Ó profundeza das riquezas, da sabedoria e da ciência de Deus! (Rom 11, 33). Ó Senhor Jesus, como são excessivas as riquezas da bondade divina! O Seu amor para conosco é um abismo incompreensível: foi por isso que Ele nos preparou uma rica suficiência, ou antes uma rica afluência de meios próprios para nos salvar; e, para no-los aplicar suavemente, Ele usa de uma sabedoria soberana, tendo pela Sua infinita ciência previsto e conhecido tudo o que era requerido para esse efeito. Oh! que podemos temer? antes, que não devemos esperar, sendo como somos filhos de um Pai tão rico em bondade para nos amar e nos querer salvar, tão sábio para preparar os meios convenientes a isso, e tão prudente para os aplicar, tão bom para os querer, tão clarividente para os ordenar, tão prudente para os executar?

Nunca permitamos aos nossos espíritos esvoaçarem por curiosidade em torno dos juízos divinos; porque, quais pequenas borboletas, nós queimaremos aí nossas asas, e perecemos nesse fogo sagrado. Esses juízos são incompreensíveis (Rom 11, 33), ou, como diz São Gregório Nazianzeno, são imperscrutáveis; quer dizer, não lhes podemos reconhecer e penetrar os motivos. Os caminhos e meios pelos quais Ele os executa e conduz ao fim não podem ser discernidos e reconhecidos; e, por melhor sentimento que tenhamos, nós falhamos a cada passo e lhe perdemos o rastro. Porque quem pode penetrar o sentido, a inteligência e a intenção de Deus? (Rom 11, 34). Quem foi seu conselheiro para saber os seus projetos e motivos? ou quem jamais o preveniu (Rom 11, 35) por algum serviço? Pelo contrário, não é Ele quem nos previne com bênçãos de Sua graça, para nos coroar na felicidade da Sua glória? Ah! Teótimo, todas as coisas são dele (Rom 11, 36), que lhes é o criador; todas as coisas são por Ele, que lhes é o governador; todas as coisas são nEle, que lhes é o protetor. A Ele seja dada honra e glória pelos séculos dos séculos. Amém. (Ib.). Vamos em paz, Teótimo, pelo caminho do santíssimo amor; porque quem na morte tiver o divino amor, após a morte gozará eternamente do amor.

(Tratado do amor de Deus, São Francisco de Sales, Livro quarto, capítulo VIII)