quinta-feira, 17 de novembro de 2011

NOBRE DEVER

NOBRE DEVER


Para a Véspera- Incumbe a todo o cristão o dever de se empregar na difusão do Reino de Deus. Mas, antes de procurar e de determinar os diversos meios de o conseguir, havemos de refletir nos sentimentos que deve inspirar esse dever em si mesmo; com efeito, são os sentimentos apoiados numa forte convicção que determinam os atos e os tornam fáceis.

Sem dúvida o amor de Deus é o princípio eminente de todo o zelo, mas esse mesmo amor anima-se à vista dum grande dever que nos faz desempenhar um grande papel. - Outra vantagem desta busca será podermos entrar na via das soluções que provocam certas obscuridades perturbadoras. - Ó meu Deus, se eu conseguisse compreender que de mim depende em parte o alargamento do Vosso Reino, a minha vida continuaria a arrastar-se na tibieza ou no cuidado exclusivo do meu adiantamento pessoal?... Ser útil a Deus! dar-Lhe o que Ele não obteria sem mim, que estranho e nobre poder! Que ocasião inesperada de Lhe demonstrar a seriedade do meu amor! 

Meditação- Com o auxílio dos princípios que desenvolvemos noutra parte e que aqui nos limitamos a recordar, vamos examinar em que se funda o dever de trabalhar pela extensão do Reino de Deus na terra. 

§        Primeiro Princípio- Deus, que confiou a cada um o cuidado de conseguir o seu destino próprio, tanto na ordem espiritual como na ordem material, dilatou esse plano à humanidade tomada em seu conjunto. É neste sentido que lhe incumbem a manutenção e acréscimo do Seu Reino no mundo. Eu sou responsável pelo meu procedimento pessoal; a humanidade é responsável pela marcha geral das coisas. Não deve, pois, admirar-nos, se vemos surgir correntes, que ora derivam para o bem, ora empuxam para o mal; - se assistirmos à formação de idéias coletivas, nesta ou naquela nação, separando-as das outras; - se vemos grassar certos erros em certas épocas; - se vemos alastrar em certo tempo abusos que logo se desvanecem ao embate e virtude de um sopro reparador. O Reino de Deus passa por todas estas vicissitudes, porque está entregue à movediça liberdade do homem - verdade que Deus poderia por Si mesmo e sem auxílio realizar essa grande obra; tudo caminharia então numa ordem perfeita, para uma perfeição ideal; mas Ele preferiu confiá-la à própria humanidade; nisso encontrará a Sua glória e a humanidade a sua honra.

§        Segundo Princípio- Encontramo-nos, pois, diante deste fato: a conservação e ampliação do Reino de Deus na humanidade são confiados, entregues à própria humanidade. Mas a humanidade não é um ser à parte, um ser distinto, é feito da multidão dos homens. Cada homem tem, pois, a sua parte de ação a exercer, a sua parte de responsabilidade a tomar, e essa parte é mais ou menos rigorosa, segundo os meios que Deus dá, a cada um - Faltarei, portanto, ao meu dever de cristão, não terei o sentido da minha responsabilidade, se ficar indiferente à prosperidade ou à decadência do Reino de Deus. Quais são os meus sentimentos a este respeito? Não falo dos meus atos, é coisa de que me ocuparei em breve. Os sentimentos revelam o fundo da alma; são os verdadeiros promotores das ações. Por sentimentos, entendo aqui as impressões e os desejos, os receios e as alegrias que devem despertar, num coração cristão, as situações diversas por que passa a Igreja. Não pertencerei ao número dessas almas que sacrificam toda a sua sensibilidade aos interesses pessoais? Embora se tratasse de interesses espirituais, estão inficionados de egoísmo. Devo desconfiar desta piedade estreita, desprender-me dela, subir mais alto

Aplicação Geral- Se agora perguntar a mim mesmo em que e como posso contribuir para a extensão do Reino de Deus, respondo praticamente com esta outra pergunta: que fazem tais ou tais pessoas na minha condição? Quais são os meus recursos morais, materiais, sociais; influência que posso exercer obras que posso dirigir ou secundar, pagando com a minha pessoa ou com a minha bolsa? Se eu proporcionar assistência em escassa medida, o bem geral tem de ressentir-se. Será uma diminuição do Reino de Deus, um abuso dos dois ou dos cinco talentos que me foram confiados. - Estarei bem convencido de todas estas coisas? Quem as não examinar bem seriamente é tentado a pensar: uma ação pessoal a mais ou a menos, que tem isso entre milhares de outras? Estas palavras são tão insensatas como injustas. De que se compõe, nesse caso, a humanidade?

E, se tendes o direito de vos esquivardes ao vosso dever, todos os outros gozam de direito igual. Sendo assim, iria por água abaixo toda a ação privada ou coletiva. Mas nem todos nós somos chamados a levar a fé ao longe, como os Missionários; a nossa posição pode afastar-nos à força das obras propriamente ditas. Estaremos nesse caso despojados de toda a possibilidade de ação ao serviço do Reino de Deus? De nenhum modo, pois que nos restam numerosos recursos. Havemos de examinar alguns na meditação seguinte. 

Exprimirei a Deus a minha alegria e os meus pesares. - Devo acalentar o desejo de enfileirar entre as almas mais corajosas. - Pedi-lO-ei como o mais requintado favor. 

O zelo - Os meios externos

Entre os meios externos de alargar o Reino de Deus, limitar-nos-emos a assinalar os que podem convir, se não a todos, pelo menos ao maior número. 

§        Na Família- Nada vale a formação que se faz neste ninho tão intimo e tão quente. As primeiras impressões decidem muitas vezes duma vida, quer dirigindo-a constantemente para o bem, quer reconduzindo a ele um dia, embora seja o dia longínquo da morte. Ao ler a vida dos Santos, dos cristãos ardentes, dos sacerdotes e dos religiosos, observareis que foram educados num meio profundamente cristão, em que reinava o espírito da fé ou florescia a piedade. Muitos pais não se lembram de que a eles incumbe em primeiro lugar o encargo, ou antes lhes é oferecida a honra de dilatar o Reino de Deus, assegurando-lhe a alma de seus filhos. Se os mandam fielmente ao Catecismo, se os colocam nas escolas religiosas, julgam haver cumprido a sua obrigação. Que erro, ou digamos antes: que culpa! Resta-lhes a obrigação essencial de fazê-los viver em casa, numa atmosfera religiosa: oração em comum, Benedicite e ação de graças às refeições. - Crucifixo no lugar de honra, principalmente freqüente recordação dos MOTIVOS DA FÉ.  Dever-se-ia mesmo ir mais longe. Por que é que um pai cristão não há-de habituar-se a ler ou comentar todos os Domingos algumas passagens do Evangelho ou de qualquer livro escolhido? Por que se não há-de preparar em comum para a próxima Comunhão? Se não se empregarem estes meios coletivos, cada pessoa será cristã, mas a família não o será; constituirá um meio estranho a Deus. Não é uma coisa bem triste? 

Espalhemos estas idéias, se não for preciso aplicá-las cada um a si mesmo. 

§        Nas Relações Sociais- Outro poderoso meio de cada um dilatar o Reino de Deus é mostrar-se cristão em toda a parte e sempre, sem afetação e sem atitude estudada. Longe de se cair neste excesso, na nossa época há a tendência para se resvalar no excesso contrário. A reserva que cada um se impõe a este respeito é tão excessiva, que certas famílias, principalmente nas grandes cidades, chegam a freqüentar-se longo tempo sem que uma chegue a conhecer os sentimentos da outra. É possível que os sentimentos, se forem verdadeiros e vivos, nunca cheguem a revelar-se pelos juízos que se formulam, pelas práticas que os cristãos observam: o sinal da cruz ou pelo menos uma saudação diante duma igreja, a bênção da mesa às refeições? Será covardia? Às vezes é antes o efeito não sei de que prudência, aliás, bem mal entendida, que julga mais acertado cobrir com um véu a sua vida religiosa. É uma aplicação desastrada desse princípio, aliás, falso, de que a religião é essencialmente um assunto privadoO contrário é que é verdadeiro: cada qual deve aplicar-se ao bem comum, e nada exerce tamanha influência sobre os espíritos como uma convicção, manifestada com simplicidade, mas com clareza. Comunica-se por esse meio mais fortemente do que empregando os mais sólidos argumentos. Não levantando objeções, não molestando o amor-próprio, vai abrindo tranqüilamente. caminho numa alma bem disposta. E nem por isso deixa de apresentar a questão religiosa e de provocar a reflexão: são, pelo menos, preparações longínquas. Mais ainda, a alma humana é feita para os altos pensamentos, e aprecia-os tanto mais quanto mais familiares eles se tornam. Essas manifestações mudas, que são um dever para todo o cristão, não podem ser insuficientes em pessoas que fazem profissão de piedade, quer pelo estado, quer pela direção da sua vida. Esperam-se delas palavras que manifestem o seu amor a Deus, ao próximo e à própria Igreja. Causaria surpresa só ouvi-las sair raras vezes da sua boca. E deveremos dizê-lo? A causa mais vulgar, a verdadeira causa desta reserva excessiva está numa insuficiência de vida íntima com Deus... Não insistamos! ... Todos podem compreender. Não será este o meu caso? Se quero atrair almas para o Reino de Deus, devo começar por viver nele com intensidade. Pensa nisto, ó minha alma. Não será para ti um dever de estado ou uma obrigação criada pelas graças recebidas? A quem disse nesse caso o Mestre: «Vós sois o sal da terra?» 

O que afasta do Reino de Deus - Assunto de bem amargas reflexões! 

Se os bons exemplos atraem à religião, os maus exemplos afastam dela e de maneira ainda mais poderosa. Os ímpios e os indiferentes esperam de nós uma retidão de vida e uma perfeição que se não impõem a si mesmos, e escandalizam-se de ver em nós o que se permitem fazer. 

É injusto, mas é assim mesmo, e devemos levar isso em linha de conta. Que todo o cristão pense bem nesta responsabilidade. Ela é terrível. Praticar a religião e desonrá-la com o seu procedimento é mais que uma culpa, é uma traição para com o Reino de Deus. - Além das culpas graves que são um escândalo, indiquemos aqui alguns defeitos que impressionam particularmente em cristãos conhecidos como muito praticantes; mostrarem-se interessados até à avareza e à rispidez; menos delicados do que convém nos negócios; exigentes e pouco razoáveis; irascíveis e desprezando os outros; sensuais na comida e em todas as suas comodidades...

Que quadro! Será fantasia? Infelizmente, não. É certo que nem todos estes defeitos se acumulam na mesma cabeça, mas basta um só bem acentuado para afastar duma religião que tornam disso responsável. Não é sob forma desagradável que se deve apresentar o Reino de Deus. Uma alma indecisa entre a dúvida e a fé, entre a indiferença e o regresso aos deveres religiosos, talvez pudesse entrar no redil, se não tivesse a infelicidade de encontrar um cristão muito praticante, mas cheio de defeitos... 

Reflita e examine-se cada um a si mesmo... Desconfie da cegueira provocada pelo hábito. 

O zelo - Os meios internos 

Entre os meios de dilatar o Reino de Deus, o mais poderoso e mais fácil, o que está mais ao alcance de todos, é a oração. Esta verdade, admitida sem contradita, será conhecida com a devida profundidade? É o que a meditação nos vai mostrar. 

§        Os Direitos da Oração- Deve notar-se antes de mais nada que a oração, principalmente a que se faz em favor do Reino de Deus, não se apresenta apenas como uma súplica, é também o exercício dum direito. Sim, essa oração tem direito a ser ouvida em virtude da ORDEM estabelecida por Deus e sancionada pelas Suas PROMESSAS - Jesus promulgou-a com estas palavras: «Tudo que pedirdes em meu nome vos será concedido». Requerem-se, contudo, certas condições; mas elas encontram-se cabalmente realizadas na petição de que tratamos. Deus, confiando-nos a sorte do Seu reino, não podia, por isso, desinteressar-Se de nós. Não o podia fazer, porque o Seu socorro é absolutamente necessário em toda a ordem de coisas. E menos o podia fazer ainda no caso presente, porque a extensão do Seu reino interessa diretamente a Sua glória. - A oração concilia admiravelmente estas duas ações: a que Deus deve a Si mesmo e a que exige do homem. Devendo ser-lhes comum a obra, cada qual contribuirá para ela segundo a sua natureza. Pela Sua natureza, Deus é a onipotência. Pela sua natureza, o homem é a indigência absoluta. Deus diz ao homem: tenho em Minhas mãos todas as graças necessárias para aumentar infinitamente o Meu Reino. Derramarei nas tuas todas as que me pedires. De ti depende que elas sejam mais ou menos abundantes... Confiando-te a sorte desta obra, entreguei-te um papel decisivo: se orares pouco, ou sem ardor e persistência, terei de reter as Minhas graças. Certamente, não poderei despojar-Me em absoluto do direito de intervir sem ti; mas, dum modo regular, só contigo intervirei. 

§        Responsabilidade- Tal é a ordem estabelecida. - Calculemos a sua grandeza; reconheçamos principalmente a sua esmagadora responsabilidade. Ela manifesta-se a nossos olhos de maneira terrível: por que é que tantos homens e tantos povos estão fora do Reino? Por que é que as mãos de Deus, cheias de graças, se não abrem mais generosamente sobre eles? Muitas vezes tenho exclamado com espanto: por que há todos estes deserdados? Que faz Deus? Onde está o Seu amor? Para que serve o sangue do Calvário? Como é que Jesus, orando no Tabernáculo, não atrai para Ele todos os homens? ... A resposta é bem simples e, infelizmente, bem cruel. - Numa responsabilidade coletiva, parece que cada responsabilidade se perde. Cada um não distingue bem a sua, não a sente. Se é isso uma desculpa, a desculpa será suficiente? Poderá ao menos sê-lo para mim? Se eu amasse mais, se fosse mais desinteressado de mim mesmo, não teria esta cegueira nem esta indiferença. 

§        Consolação- Admiremos o grande e belo papel que nos foi imposto: Se comporta responsabilidades temíveis, oferece também as mais elevadas satisfações; desatar as mãos de Deus, fazer descer sobre os homens ondas de graça: eis o que podem fazer as minhas preces. Uma oração a mais, um grau maior de fervor; insistências indo até à importunidade santa que recomenda o Evangelho, e o Reino de Deus dilatar-se-á, e almas cada vez em maior número virão para ele das plagas longínquas, e o Pai celeste estará contente e me abençoará, a mim, por causa dessa alegria. Jesus conhece muito bem essa alegria do Pai celeste e era nela principalmente que pensava ao sugerir-nos esta prece: «Adveniat regnum tuum»  Ó Jesus, Vós amáveis muito os homens, mas amáveis acima de tudo Vosso Pai... Ah! se eu soubesse amar à Vossa maneira, entreis em meu coração para orar comigo! Ao menos, se eu for infiel, suscitai um levantamento em massa de almas enamoradas desse ideal, exército onipotente que realizará maravilhas; dessa forma terei a minha parte, embora humilde, nas conquistas desses valentes

§        Afetos- Agradeçamos a Deus estas luzes, estes alentos, este belo papel que nos confia. Humilhemo-nos por nos sentirmos indiferentes e fracos. Peçamos uma larga infusão de espírito sobrenatural. - Se todos os cristãos vivessem deste espírito, o mundo seria bem diverso! O meu Deus, comunicai-o ao menos às almas de boa vontade, que são cada vez mais numerosas. E não o recuseis à minha pobre alma que o merece pouco, mas que vo-lO pede em nome do Vosso Filho e para Vossa glória. Renovemos as nossas resoluções precedentes e façamo-lo mais fortemente, mais praticamente.

(Meditações Afetivas e Práticas sobre o Evangelho por Cônego Beaudenom, Tomo III, 1936)

PS.: Grifos meus
PS.2: Ver a Primeira Parte AQUI