São Luís Gonzaga |
(...) Crucifixo - dádiva preciosa do Seu amor, já agora para sempre fixado no vértice das igrejas ou na sala nobre das famílias que não se pejam das suas ignomínias. Resta-nos o crucifixo pompeando, glorificado, no cimo dos tabernáculos, ou banhado de lágrimas ardentes na penumbra misteriosa de um confessionário. Resta-nos o crucifixo à cabeceira do enfermo que sofre porque já não vive, ou no cinto da religiosa que sofre porque não morre. Resta-nos o crucifixo nas mãos do missionário, rasgando-lhe caminho para a pátria celestial, e no peito do soldado, guiando-o intimorato para os triunfos da pátria desafrontada de estranhos atrevimentos.
Na grande avançada para o céu, sem ele, sem o sinal da cruz, não sabe a Igreja dar um passo, iniciar uma única cerimônia, esboçar uma bênção sequer.
Oh! meu crucifixo! Pobre e humilde, banhado das minhas lágrimas, na amorável penumbra de uma cela, como brilhas vós iluminando-nos a vida e a morte, o sofrimento e o prazer, a terra e o céu, o tempo e a eternidade!
Catecismo de ignorantes, Suma Teológica para sábios, vós sois um livro luminoso, todo invadido da presença de Deus. Vossa voz me instrui com o calor de uma chama e com a doçura de uma unção - repreende e consola, fortalece e santifica.
Melhor que os livros santos, vós me dizes a que extremos inatingíveis levaste o vosso amor por mim, por mim pessoalmente, como se eu só - e mais ninguém - Fora o objeto do vosso amor, - amor imolado, amor sacrificado, amor crucificado.
Levei-vos aos lábios, cheguei-vos ao coração. E ouvi, uma por uma, impressas em vossas chagas, todas as palavras dos livros sagrados. E cada palavra que vos caiu dos lábios me foi direita ao coração como um dardo de fogo, desse fogo do Espírito Santo que, desde o meu batismo, permanece latente em minha alma pecadora. E eu disse: também eu vos amo, também eu quero amar-vos de todas as minhas forças.
Vós me ensinas como e até quando ser-me-á preciso amar o meu próximo. "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei" - me dizes vós. Mandamento difícil, difícil e humilhante. Se se tratasse de fazer bem aos que me fizeram bem - fácil e deleitoso me seria o cumprir a vossa vontade, pois ela encontraria eixo dentro em meu próprio coração. Mas vós queres que eu perdoe aos que me fizeram mal, não somente que lhes perdoe, mas que os ame ainda como vós mesmo nos amaste. E eu vi as vossas chagas, contemplei-vos as mãos e os pés traspassados de duros cravos, a cabeça coroada de espinhos, os braços abertos em atitude de perdão. E eu disse e repito, inteiramente rendido aos argumentos do vosso amor: Sim, ó meu Jesus, perdôo-lhes por amor de Vós, perdôo-lhes porque mais gravemente Vos tenho eu ofendido do que eles a mim.
Vós me dizes ainda que o amor de Deus e do próximo nos faz viver, e que o amor de nós mesmos nos faz morrer. Oh! meu Jesus, faze que eu Vos ame bastante, e que não me ame tanto! Ensina-me a dominar as rebeldias da minha natureza, a crucificar as minhas paixões por amor de Jesus crucificado. Ensina-me a prática da humildade, da vigilância e da oração, para que, em Vós e por Vós, me fortaleça na obediência à Vossa santa Lei.
Como sois belo e consolador, ó meu crucifixo. Se me mostrasses tão somente a grandeza dos meus pecados, eu seria esmagado ao peso da minha dor; mas vós me abres o céu como premio e recompensa da Paixão de Jesus. Agora que vos conheço - que vos conheço e vos amo já não temo os castigos da vossa justiça, mas os castigos do vosso amor, e porque as temo e porque vos quero, deixa que me banhe no sangue do vosso coração.
Mas eis que o dia já declina sempre mais, lentamente... lentamente... As sombras da montanha obscurecem-me o caminho, e já não vejo para onde me conduzem os passos incertos e vacilantes. É a tarde, é a noite, é a velhice, é a morte que se aproxima. Ai! eu tenho medo. Mas fica comigo, ó meu amado crucifixo.
Companheiro inseparável de todos os dias, faze-me companhia até o termo da longa e perigosa caminhada. Vós me falarás de Deus, vós me falarás da vida que se finda e da eternidade que se avizinha. Vós me falarás dos meus pecados e da misericórdia de Jesus.
Cansados, já os meus olhos vos não podem fitar; enregelados, na agonia derradeira, já os meus braços não conseguem chegar-vos à altura dos meus lábios. Mas os meus dedos crispados pela morte vos sentem ainda, e o meu coração, se não a boca, pode ao menos balbuciar: Meu Jesus, meu Redentor, eu Vos amo, eu creio em Vós. Nas Vossas mãos entrego o meu coração, a minha alma, a minha vida, a minha eternidade. In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum.
(No Calvário por Dom Duarte Leopoldo E Silva, 1937)
PS.: Grifos meus.