segunda-feira, 5 de março de 2012

Da dor


Vasa figuli probat fornax et homines justos tentatio tribulationis
A fornalha prova os vasos de barro e a tribulação prova os justos (Sr 27, 6)

Fim providencial da dor

A criação foi obra de amor. O bem tende a comunicar-se. Deus, o ser infinitamente bom, quis espalhar em torno de si algo de Sua bondade; infinitamente rico, quis distribuir Suas riquezas; infinitamente feliz, quis tornar felizes a outros. As criaturas, que Lhe saíram das mãos divinas, criaturas angélicas e criaturas humanas, foram logo cumuladas por Ele de benefícios; uma doce felicidade, isenta de dor, foi o quinhão dos anjos e dos homens durante o período de provação. Em troca, o Senhor pede às criaturas que O amem; Ele as amou, em primeiro lugar, com amor gratuito, ipse prior dilexit nos; a justiça, a honra divina, exigem que elas Lhe paguem amor com amor.

Ai de nós! em vez de amor e reconhecimento, Deus só recebe, de grande parte das criaturas, ingratidão e pecado. O amor divino é um fogo devorador que não pode permanecer sem efeito; se não provocar no coração da altura um incêndio de amor, que lhe seja alegria e felicidade, tornar-se-á um fogo vingador ao serviço de Sua justiça. Essa justiça, portanto, sucede ao amor desprezado, enquanto os castigos sucedem aos benefícios.

Os anjos rebeldes foram os primeiros a fazer tão triste experiência; em seguida, os homens, após o pecado, viram dissipar-se a alegria e surgir a dor. Tanto nos anjos rebeldes, como nos condenados, a justiça divina defronta o ódio e a obstinação; longe de aceitar a expiação exigida pela honra divina, erguem-se contra Deus, no orgulho e na revolta; então a pena que atraem sobre si, torna-se numa tortura que lhes excita o rancor e aumenta o ódio. Na terra, ao contrário, o homem pode reconhecer sua falta, detestá-la, e submeter-se ao castigo; a pena assume então um caráter inteiramente diverso: é a dor resignada e amorosa, amorosa, porque o amor que os benefícios de Deus não puderam produzir, a dor o fará brotar do coração.

Tal é, pois, o escopo da dor, reparar a honra de Deus, punir o pecado, destruir todas as conseqüentes corrupções. O fogo terrestre purifica, devorando tudo quanto é corruptível e separando as escórias dos elementos incorruptíveis. Edificamos, diz o apóstolo, firmados em Cristo, um edifício em que se mesclam ouro e prata, pedras preciosas e lenha, feno e palha; o fogo porá esse vício à prova, revelando tudo quanto continha de puro e sólido. É o fogo da justiça, o fogo da dor, que produz semelhante efeito; no inferno, no purgatório, o fogo vingador atinge tudo quanto está maculado; não atua, porém, sobre o que se conservou puro.

A dor é, pois, filha do pecado. O Deus de toda bondade que poderia não a ter excluído a princípio do plano divino, só a introduziu, de fato, no mundo, em seguida ao pecado. Antes da queda original o homem não sofria a tirania das paixões e só devia esperar alegrias do convívio com sua companheira e as criaturas só lhe proporcionavam prazeres, enquanto elevavam o seu coração a Deus pelo reconhecimento.

Mas o pecado desmoronou toda a ordem da natureza. Para colher, o homem deve primeiro semear no labor e na fadiga; deve ganhar o pão com o suor de seu rosto. As rosas que o encantam estão cercadas de espinhos, aptos a ferir quem as quiser colher. Cada criatura parece dizer em sua linguagem muda: Que uso pretendes fazer de mim? Fui encarregada, pelo nosso comum Criador, de te pôr à prova. Ou então: Sou de tal natureza que o só fato de me encontrares em teu caminho, será penoso para ti. Ou ainda: se te sou útil, obrigo-te a esforços árduos, e; não raras vezes, sou rebelde a esses esforços e te imponho cruéis privações.

Mais acerbos ainda que os sofrimentos exteriores são os sofrimentos íntimos; angústias do coração dilacerado pelas separações, pelos lutos, pela visão dos males de nossos irmãos; dores da alma causadas pelos nossos insucessos, pelas nossas próprias misérias, pelos nossos defeitos e pecados.

Esses sofrimentos visam todos corrigir e reparar as conseqüências do pecado; são uma força destruidora e é isto que os torna tão pungentes. Há na alma humana, maculada pelo pecado original, tendências egoístas, apegos maus que se desenvolveram e se fortaleceram com as faltas individuais; são outros tantos obstáculos que impedem e tolhem as santas inclinações depositadas em nós pela graça. O fogo da dor visa devorar essas impurezas; Deus que consumir em nós o que lhe ofende a pureza do olhar, e, sobre as cinzas de nossos defeitos, fazer germinar belas virtudes.

Quão viva e penetrante é por vezes a dor da alma cheia de imperfeições, mas que procura purificar-se!

Dir-se-ia uma fogueira que consome muitas achas, e em cujo montão de cinzas esperamos encontrar ocultas algumas moedas de ouro. Levará muito tempo para consumir todo esse lenho que, verde ainda, gemerá ao torcer-se e ao lançar ondas de fumaça; e só se deixará destruir depois de opor viva resistência às chamas. Assim também as almas imperfeitas têm tanto afeto às coisas deste mundo e tanto apego à sua opinião e à sua vontade, têm um amor próprio tão desenvolvido que, tudo quanto tende a consumir esses defeitos, isto é, as privações, as contradições, as humilhações mais insignificantes, tudo lhes parece extremamente penoso. E tal sofrimento, que perdurará enquanto não fizerem reais progressos na renúncia, é necessário às almas imperfeitas.

A sensualidade será destruída pela dor física; a avareza, pela perda ou diminuição dos bens; o orgulho, dos desprezos, pelas críticas, ou pelas calúnias; o egoísmo, pelo abandono, pela indiferença do próximo. Quando ao contrário, a alma está livre de tais apegos, cheia amor de Deus e disposta a tudo aceitar de suas mãos, aquilo que outrora lhe fazia sofrer, agora a deixa indiferente; suas dores são menos acerbas; o fogo devorador tem nela pouco alimento; encontrando apenas um lenho seco ou já meio queimado, acaba de consumi-lo em silêncio. Isso não significa que essa alma purificada esteja isenta toda dor, mas essa dor é geralmente suscitada por causas mais nobres e assim sofrerá pelas ofensas feitas a Deus. Demais, a essas penas une-se uma paz cheia de doçura, uma resignação total que alivia, que torna amáveis próprias dores.

(O Caminho que leva a Deus - Cônego Augusto Saudreau) 

P.S: Continuará...