Que
é preciso evitar toda a curiosidade,
e aquiescer humildemente à sapientíssima
providência de Deus.
(São Francisco de Sales, tratado do amor de Deus, Livro Quarto, Capítulo VII)
O espírito humano é tão fraco, que,
quando quer investigar curiosamente demais as causas e razões da vontade
divina, embaraça-se e enrodilha-se em redes de mil dificuldades, das quais
depois não se pode desprender. Assemelha-se à fumaça; porque, subindo, sutiliza-se,
e, sutilizando-se, dissipa-se. A força de querermos elevar nossos discursos nas
coisas divinas por curiosidade, nós nos dissipamos nos nossos pensamentos e, ao
invés de chegarmos à ciência da verdade, caímos na loucura da nossa vaidade
(Rom 1, 21; 2 Tim 3, 7; Rom 1, 22).
Mas somos sobretudo extravagantes no que
concerne à Providência divina, no tocante à diversidade dos meios que ela nos
distribui para nos atrair ao seu santo amor, e, pelo seu santo amor, à glória.
Porquanto a nossa temeridade nos força sempre a perquirir por que é que Deus dá
mais meios a uns do que a outros; por que foi que Ele não fez entre os Tírios e
os Sidônios as maravilhas que fez em Corozaim e Betsaida, já que eles teriam
tão bem aproveitado delas; e, em suma, por que é que Ele atrai ao Seu amor um
de preferência a outro (Mt 11, 21).
Ó Teótimo! meu amigo, nunca, nunca
devemos deixar levar nosso espírito por esse turbilhão de vento louco, nem
pensar achar melhor razão da vontade de Deus do que a Sua própria vontade, a
qual é sumamente razoável, antes a razão de todas as razões, a regra de toda
bondade, a lei de toda equidade. E, se bem que o santíssimo Espírito, falando
na Escritura sagrada, em vários lugares dê razão de quase tudo o que poderíamos
desejar no tocante ao que a Sua providência opera na guia dos homens ao santo
amor e à salvação eterna, todavia em várias ocasiões Ele declara que absolutamente
não nos devemos apartar do respeito que é devido à Sua vontade, da qual devemos
adorar o propósito, o decreto, o beneplácito e o aresto ao cabo do qual, como
juiz soberano e soberanamente equitativo, não é razoável que ela manifeste seus
motivos; mas basta que fale simplesmente (e "pour cause"). Que, se
devemos caridosamente prestar tanta honra aos decretos das cortes supremas,
compostas de juízes corruptíveis da terra e de terra, a ponto de crermos que
esses decretos não foram feitos sem motivos, posto que os não saibamos; oh,
Senhor Deus! com que reverência amorosa devemos, adorar a equidade da Vossa
providência suprema, a qual é infinita em justiça e bondade!
Assim, em mil lugares da sagrada palavra
nós achamos a razão pela qual Deus reprovou o povo judeu. São Paulo e São
Barnabé dizem: Porque repelis a palavra de Deus, e vos julgais a vós mesmos
indignos da vida eterna; eis que nós nos volvemos para os Gentios (Mt 13, 24).
E quem considerar em tranquilidade de espírito o IXº, Xº e XIº capítulo da
epístola aos Romanos, verá claramente que a vontade de Deus não rejeitou o povo
judeu sem razão; mas, não obstante, não deve essa razão ser investigada pelo
espírito humano, que, ao contrário, é obrigado a deter-se pura e simplesmente
em respeitar o decreto divino, admirando-o com amor como infinitamente justo e
equitativo, e amando-o com admiração como impenetrável e incompreensível. É por
isso que o divino apóstolo concluí destarte o longo discurso que sobre isso
tinha feito: Ó profundeza das riquezas da sabedoria e ciência de Deus! Como são
incompreensíveis os seus juízos, imperceptíveis os seus caminhos! Quem conhece
os pensamentos do Senhor? ou quem foi seu conselheiro? (Rom 11, 33-34).
Exclamação pela qual testemunha que Deus faz tudo com grande sabedoria, ciência
e razão; mas de tal sorte, todavia, que, não havendo o homem entrado no divino
conselho, cujos juízos e projetos são elevados infinitamente acima da nossa
capacidade, nós devemos devotadamente adorar-lhe os decretos, como muito
equitativos, sem lhes investigar os motivos, os quais Ele retém em segredo para
consigo, a fim de manter o nosso entendimento em respeito e humildade para
conosco.
Santo Agostinho em cem lugares ensina
esta mesma prática. Diz ele: "Ninguém vem ao Salvador senão sendo atraído.
Quem é que Ele atrai, e quem é que Ele não atrai, por que é que Ele atrai este
e não aquele, não queiras ajuizar disto, se não queres errar. Escuta uma vez e
ouve. Não és atraído? reza a fim de seres atraído. De certo, ao cristão que
ainda vive da fé e que não vê o que é perfeito, mas sabe apenas em parte, basta
saber e crer que Deus não livra ninguém da condenação senão por misericórdia
gratuita, por Jesus Cristo Nosso Senhor, e que Ele não condena ninguém senão
pela Sua equidosíssima verdade, pelo mesmo Jesus Cristo Nosso Senhor. Mas saber
por que é que Ele livra este de preferência àquele, sonde quem puder tamanha profundeza
dos Seus juízos, mas resguarde-se do precipício, pois os Seus decretos não são
por isso injustos, ainda que sejam secretos(1). Mas por que
então livra Ele estes de preferência àqueles (Ep. 105)? Dizemos outra vez: Ó
homem! quem és tu para responderes a Deus?(2)
Incompreensíveis são os Seus juízos (Rom 11, 20). E acrescentemos isto: Não
inquiras das coisas que estão acima de ti (Rom 11, 33), e não investigues o que
está além de tuas forças (Ecli 3, 22). Ora, Ele não faz misericórdia àqueles a
quem, por uma verdade mui secreta e muito afastada dos pensamentos humanos,
julga não dever conceder seu favor ou misericórdia(3).
Vemos às vezes crianças gêmeas das quais
uma nasce cheia de vida, e recebe o batismo; a outra, nascendo, perde a vida
temporal antes de renascer para a eterna; uma, por conseguinte, é herdeira do
céu, a outra é privada da herança. Ora, por que será que a divina Providência
dá desfechos tão diversos a tão semelhante nascimento? De certo, pode-se dizer
que a providência de Deus ordinariamente não viola as leis da natureza; de tal
sorte que, sendo um desses gêmeos vigoroso e o outro demasiado fraco para
suportar o esforço da saída do seio materno, este morreu antes de poder ser
batizado, e o outro viveu; não havendo assim a Providência querido impedir o
curso das causas naturais, que, nessa ocorrência, terão sido a razão da
privação do batismo naquele que o não teve. E certamente esta resposta é bem
sólida. Mas, consoante o parecer do divino São Paulo e de Santo Agostinho, não
nos devemos divertir nesta consideração, que, embora boa, todavia não é
comparável a várias outras que Deus reservou para Si, e que nos fará conhecer
no paraíso. "Então, diz Santo Agostinho, já não será coisa secreta a razão
por que um é elevado de preferência ao outro, sendo igual a causa de ambos; nem
porque milagres não foram feitos no meio daqueles que, se milagres tivessem
sido feitos entre eles, teriam feito penitência, e foram feitos no meio daqueles
que não estavam dispostos a crer". (4) E noutro lugar
esse mesmo santo, falando dos pecadores dos quais Deus deixa um na sua
iniquidade e levanta o outro, diz: "Ora, porque é que Ele retém um e não
retém o outro, não é possível compreendê-lO, nem lícito inquiri-lO, visto como
basta saber que depende d’Ele ficarmos de pé, e d’Ele não vem que caiamos; e
repito, isso é oculto e muito afastado do espírito humano, ao menos do
meu"(5).
Eis aí, Teótimo, a mais santa maneira de
filosofar neste assunto. Por isto é que sempre achei admirável e amável a sábia
modéstia e prudentíssima humildade do doutor seráfico São Boaventura, no
discurso que ele faz da razão pela qual a Providência Divina destina os eleitos
à vida eterna. Diz ele: "Talvez seja pela previsão dos bens que se farão
por meio daquele que é atraído, enquanto esses bens provêm, de algum modo, da
vontade divina; mas saber dizer que bens são esses cuja previsão serve de
motivo à divina vontade, nem eu o sei distintivamente, nem quero indagar deles;
e não há aí razão a não ser de alguma sorte de conveniência; de maneira que nós
poderíamos dizer alguma, e seria outra. É por isso que não poderíamos com
certeza assinalar a razão verdadeira nem o verdadeiro motivo da vontade de Deus
a esse respeito; porque, como diz Santo Agostinho, se bem que a verdade disso
seja certíssima, é todavia muito distanciada dos nossos pensamentos; de modo
que sobre isso nada poderíamos dizer de seguro senão pela revelação d’Aquele a
quem todas as coisas são conhecidas. E uma vez que não era conveniente para a
nossa salvação que tivéssemos conhecimento desses segredos, antes nos era mais
útil ignorá-los, para nos mantermos em humildade; por isso Deus não os quis
revelar, e mesmo o santo Apóstolo não ousou inquirir deles, mas testemunhou a
insuficiência do nosso entendimento a esse respeito, quando exclamou: "Ó profundeza
das riquezas da sabedoria e ciência de Deus!" (Rom 11, 33). Teótimo,
poder-se-ia falar mais santamente de tão santo mistério? Também, são as palavras
de um santíssimo e judiciosíssimo doutor da Igreja.
Notas:
1-
Tract.
XXVI in Joan.
2-
De bono persever., c. XII.
3-
Quaest. II, ad Simplic.
4-
In
Enchir. ad Laur., c. XCIV, XCV.
5-
Resp.
ad art. sibi falso impositos; Resp. ad art. 14, lib. X, de Genes. ad litt.