São Francisco de Sales
Tratado do amor de Deus - Livro II, Capítulo XXII
Aí
eis, pois, finalmente, meu caro Teótimo, como, por um progresso cheio de suavidade
inefável, Deus conduz a alma que Ele faz sair do Egito do pecado, de amor em amor,
como que de alojamento em alojamento, até que a tenha feito entrar na terra de
promissão quero dizer, na santíssima caridade, a qual, para dizê-lo numa palavra,
é uma amizade e não um amor interesseiro. Porquanto, pela caridade, nós amamos
a Deus por amor d’Ele mesmo, em consideração da Sua bondade sumamente amável: mas
essa amizade é uma amizade verdadeira, pois é recíproca, havendo Deus amado
eternamente quem quer que O amou, O ama ou O amará temporalmente. É declarada e
reconhecida mutuamente, visto que Deus não pode ignorar o amor que nós Lhe temos,
já que Ele mesmo no-lo dá: nem nós, tão pouco, podemos ignorar o amor que Ele tem
a nós já que Ele tanto o publicou, e que tudo o que temos de bom nós recebemos
como verdadeiros efeitos da Sua benevolência; e, enfim, estamos em perpétua comunicação
com Ele, que não cessa de falar aos nossos corações por inspirações, atrativos
e movimentos sagrados. Ele não cessa de nos fazer bem e de nos dar toda sorte de
testemunhos do Seu santíssimo afeto, havendo-nos abertamente revelado todos os Seus
segredos como a Seus amigos confidentes. E, para cúmulo do Seu santo comércio conosco,
tornou-Se nossa própria comida no santíssimo sacramento da Eucaristia. E, quanto
a nós, nós tratamos com Ele a todas as horas quando nos apraz, pela santíssima oração,
tendo toda a nossa vida, nosso movimento e nosso ser, não somente com Ele, mas
n’Ele e por Ele.
Ora,
essa amizade não é uma simples amizade, porém amizade de dileção, pela qual nós
fazemos eleição de Deus para amá-lO com amor particular. Ele é escolhido, diz a
esposa sagrada, entre mil. Ela diz entre mil (Cânt 5, 10); mas quer dizer entre
todos. É por isso que essa dileção não é dileção de simples excelência, mas uma
dileção incomparável; pois a caridade ama a Deus por uma estima e preferência da
sua bondade tão alta e elevada acima de qualquer outra estima, que os outros amores
ou não são verdadeiros amores em comparação deste, ou, se são verdadeiros amores,
este é infinitamente mais do que amor. E portanto, Teótimo, não é um amor que
as forças da natureza, nem humana, nem angélica, possam produzir, mas é o Espírito
Santo quem o dá e o infunde em nossos corações (Rom 8, 5): e, assim como nossas
almas, que dão a vida aos nossos corpos, não têm sua origem nos nossos corpos, mas
são postas nos nossos corpos pela providência natural de Deus, assim também a
caridade que dá a vida aos nossos corações não é atraída dos nossos corações,
mas é nele vertida, como um celeste licor, pela providência sobrenatural da sua
divina majestade.
Por
isto a chamamos, pois, amizade sobrenatural e ademais ainda, por concernir ela
a Deus e a Ele tender, não segundo a ciência natural que nós temos da Sua bondade,
mas segundo o conhecimento sobrenatural da fé. É por isso que, com a fé e a
esperança, ela faz sua residência na ponta e cimo do espírito, e como uma rainha
de majestade está sentada na vontade como no seu trono, de onde derrama sobre
toda a alma as suas suavidades e doçuras, tornando-a por esse meio toda bela, agradável
e amável à divina bondade: de sorte que, se a alma é um reino de que o Espírito
Santo seja o rei, a caridade é a rainha sentada à sua destra em veste de ouro
recamada de belas variedades (Sl., 44, 10).
Se
a alma é uma rainha, esposa do grande rei celeste, a caridade é a sua coroa que
lhe embeleza regiamente a cabeça. Mas, se a alma, com seu corpo é um pequeno mundo,
a caridade é o sol que orna tudo, tudo aquece e tudo vivifica.
A
caridade, pois, é um amor de amizade, uma amizade de dileção, uma dileção de
preferência, mas de preferência incomparável, soberana e sobrenatural, a qual é
como um sol em toda a alma para embelezá-la com seus raios, em todas as
faculdades espirituais para aperfeiçoá-las, em todas as potências para moderá-las,
mas na vontade, como na sua sede, para nela residir e fazer-lhe querer e amar
ao seu Deus sobre todas as coisas. Oh! que bem-aventurado é o espírito em que
essa santa dileção é infundida, já que todos os bens lhe chegam igualmente com
ela (Sab 7, 11)!