domingo, 15 de maio de 2016

Poesia de Cassiano Ricardo

Deixo os meus olhos ao cego
que mora nesta rua.
Deixo a minha esperança
ao primeiro suicida.
Deixo à polícia o meu rasto,
a Deus o meu último eco.
Deixo o meu fogo-fátuo
ao mais triste viandante
que se perder sem lanterna
numa noite de chuva.
Deixo o meu suor ao fisco
que me cobriu de impostos;
e a tíbia da perna esquerda
a um tocador de flauta
para, com o seu chilreio,
encantar a mulher e a cobra.
Às coisas belas do mundo
deixo o olhar cerúleo e brando
com que, nas fotografias,
as estarei, sempre, olhando...
Aos noturnos assistentes
de última hora – aos que ficam,
o sorriso interior e sábio
que nunca me veio ao lábio.

Cassiano Ricardo, poeta, ensaísta e jornalista nasceu em
São José dos Campos no ano de 1895. Faleceu com 79 anos
na cidade do Rio de Janeiro.