São Francisco de Sales
Tratado do amor de Deus
Além do que foi dito, achei uma história que, por ser extremamente admirável, nem por isto é senão mais crível aos amantes sagrados, visto que, como diz o santo apóstolo, a caridade crê de muito bom grado todas as coisas (1 Cor 13, 4-7), isto é, não pensa facilmente que se minta; e, se não há sinais aparentes de falsidade naquilo que lhe representam, ela não faz dificuldade em crê-las, mas sobretudo quando são coisas que exaltam e magnificam o amor de Deus para com os homens, ou o amor dos homens para com Deus; uma vez que a caridade, que é rainha soberana das virtudes à feição dos príncipes se compraz nas coisas que servem à glória do seu império e dominação. E, se bem que o relato que quero fazer não esteja nem tão publicado nem tão bem testemunhado como o requereria a grandeza da maravilha que ele contém, nem por isso perde a sua verdade; pois, como diz excelentemente Santo Agostinho, a custo se sabem os milagres, por mais magníficos que sejam, no próprio lugar onde eles se fazem; e, ainda que os contem aqueles que os viram, custa-se a crê-los; mas nem por isso deixam eles de ser verdadeiros; e, em matéria de religião, as almas bem formadas têm mais suavidade em crer as coisas em que há mais dificuldade e admiração.
Um cavaleiro muito ilustre e virtuoso foi, pois, um dia além-mar à Palestina, para visitar os santos lugares onde Nosso Senhor fizera as obras da nossa redenção; e, para começar dignamente esse santo exercício, antes de tudo ele se confessou e comungou devotamente; depois foi em primeiro lugar à cidade de Nazaré onde o anjo anunciou à Virgem santíssima a sacratíssima encarnação, e onde se operou a adorabilíssima Conceição do Verbo eterno; e lá esse digno peregrino pôs-se a contemplar o abismo da bondade celeste que se dignara de tomar carne humana para retirar o homem da perdição. Dali passou a Belém, ao lugar da natividade, onde não se poderia dizer quantas lágrimas ele derramou; contemplando as lágrimas com que o Filho de Deus, filhinho da Virgem, regara aquele santo estábulo, beijando e tornando a beijar cem vezes aquela terra sagrada, e lambendo o pó sobre o qual a primeira infância do divino menino fôra recebida. De Belém foi a Betabara1 “e passou até o lugarejo de Betânia, onde, lembrando-se de que Nosso Senhor Se despira para ser batizado, despiu-se também, e, entrando no Jordão, lavando-se e bebendo das suas águas, lhe parecera ver ali seu Salvador recebendo o batismo pela mão do Seu precursor, e o Espírito Santo descendo visivelmente sobre Ele sob a forma de pomba, com os céus ainda abertos, de onde lhe parecia que descia a voz de Padre eterno dizendo: Este é meu Filho bem-amado, no qual pus as minhas complacências (Mt 17, 5). De Betânia vai ele ao deserto, e aí vê, com os olhos do espírito, o Salvador jejuando, combatendo e vencendo o inimigo, e depois os anjos que Lhe servem comidas admiráveis. Dali vai à montanha do Tabor, onde vê o Salvador transfigurado; depois à montanha de Sião, onde, parece-lhe ainda, vê Nosso Senhor ajoelhado no cenáculo, lavando os pés aos discípulos, e distribuindo-lhes o Seu divino corpo na sagrada Eucaristia. Passa a torrente do Cedron, e vai ao horto de Getsêmani, onde seu coração se liquefaz nas lágrimas de uma amabilíssima dor quando ele ali se representa seu caro Salvador suando sangue naquela extrema agonia que ali sofria, e depois, logo depois, atado, garroteado e levado a Jerusalém, para onde ele se encaminha também, seguindo por toda parte os vestígios do seu bem-amado; e vê-O em imaginação arrastado para cá e para lá, à casa de Anãs, à casa de Caifás, à casa de Pilatos, à casa de Herodes, açoitado, escarnecido, cuspido, coroado de espinhos, apresentado ao povo, condenado à morte, sobrecarregado com a Sua cruz, que Ele carrega, e, carregando-a, faz o lastimoso encontro de Sua Mãe toda imersa em dor, e das mulheres de Jerusalém que choravam sobre Ele. Sobe enfim esse devoto peregrino ao monte Calvário, onde vê em espírito a cruz estendida no chão, e Nosso Senhor a quem derrubam, a quem pregam de pés e mãos sobre ela crudelissimamente. Contempla em seguida como levantam no ar a cruz e o crucificado, e o sangue que escorre de todos os pontos do Seu divino corpo. Olha a pobre Virgem sagrada traspassada pela espada de dor (Lc 2, 35); depois volve os olhos para o Salvador crucificado, cujas sete palavras escuta com amor sem par; e enfim O vê moribundo, depois morto, depois recebendo a lançada e mostrando pela abertura da chaga o Seu coração divino; depois tirado da cruz e levado ao sepulcro, onde ele O vai seguindo, deitando um mar de lágrimas sobre os lugares embebidos do sangue do seu Redentor: de tal sorte que ele entra no sepulcro, e sepulta seu coração junto ao corpo de seu Mestre; depois, ressuscitando com Ele, vai a Emaús, e vê tudo o que se passa entre o Senhor e os dois discípulos; e finalmente, voltando ao monte Olivete, onde se operou o mistério da Ascensão, e vendo ali as últimas marcas e vestígios dos pés do divino Salvador, prostrado sobre elas e beijando-as mil e mil vezes com suspiros de amor infinito, começa a retrair a si todas as forças dos seus afetos, como um arqueiro retrai a corda de seu arco quando quer desferir a seta; depois, levantando-se, com os olhos e as mãos tendidos para o céu, disse: Ó Jesus, meu doce Jesus, não sei mais aonde vos buscar e seguir na terra. Oh! Jesus, Jesus, meu amor, concedei pois a este coração seguir-Vos e ir para junto de Vós lá em cima; e, com estas ardentes palavras, lançou ao mesmo tempo a sua alma ao céu, qual sagrada seta que como divino arqueiro ele atirou no alvo do seu felicíssimo objeto.
Mas os seus companheiros e servos que viram assim subitamente cair como morto aquele pobre amante, admirados com esse acidente, correram por força ao médico, que, vindo, achou que ele efetivamente falecera; e, para fazer juízo seguro das causas de uma morte tão inopinada, indagou de que compleição, de que costumes e de que temperamento era o defunto, e soube que ele era de natural mui doce, amável, maravilhosamente devoto, e grandemente ardente no amor de Deus. Ao que, disse o médico que sem dúvida o coração se lhe rebentara de excesso e de fervor de amor. E, a fim de consolidar melhor o seu juízo, quis abri-lo, e achou aquele bravo coração aberto com esta sagrada palavra gravada dentro: Jesus, meu amor! O amor, pois, fez nesse coração o ofício da morte, separando a alma do corpo sem concorrência de nenhuma outra causa. E é São Bernardino de Sena, autor mui douto e mui santo, quem faz esta narração no primeiro dos seus sermões da Ascensão.
Certamente, outro autor quase da mesma época, que ocultou o nome por humildade, mas que sem embargo seria digno de ser nomeado, num livro que intitulou Espelho dos espirituais conta outra história ainda mais admirável; pois diz que na região de Provença havia um senhor grandemente dado ao amor de Deus e à devoção do santíssimo Sacramento do altar. Ora, um dia, estando ele extremamente afligido por uma doença que lhe causava vômitos contínuos, trouxeram-lhe a divina comunhão, e, não ousando recebê-la por causa do perigo que havia de vomitá-la, ele suplicou ao seu cura colocar-lha sobre o peito, e persigná-lo com ela pelo sinal da cruz, o que foi feito, e num momento aquele peito inflamado do santo amor fendeu-se, e puxou para dentro de si o celeste alimento no qual estava o bem-amado, e ao mesmo tempo expirou. Bem vejo, em verdade, que esta história é grandemente extraordinária, e que mereceria um testemunho do maior peso; mas, depois da veracíssima história do coração fendido de Santa Clara de Montefalcone, que toda gente pode ver ainda agora, e da dos estigmas de São Francisco, que é seguríssíma, minha alma não acha coisa alguma difícil de crer entre os efeitos do divino amor.
1) Betabara, cidade da tribo de Benjamim para onde veio Josué.