quarta-feira, 31 de agosto de 2011

V. Como a Santa Virgem se alegrava mesmo em meio às Suas dores

Nota do blogue: Segue a quinta parte do livro Ao pé da Cruz ou As Dores de Maria escrito pelo piedoso Padre Frederick William Faber, acompanhe o ESPECIAL AQUI.


      V     
Como a Santa Virgem se alegrava 
mesmo em meio às Suas dores



            Após haver considerado os caracteres distintivos das dores da Santa Virgem, devemos nos ocupar duma particularidade que é necessário ter sempre em mente, a saber: a união dessas dores com a mais grande alegria. A própria Santa Virgem revelou à Santa Brígida que Suas dores eram constantemente acompanhadas duma torrente de celeste alegria. Em verdade, não podia ser diferente. Seria possível, com efeito, que uma criatura racional, isenta de pecado, não estivesse mergulhada em alegria? A beatitude é a vida de Deus, e é desta vida que saem todas as torrentes de delícias que inundam toda a criação. [La béatitude est la vie de Dieu, et c’est de cette vie que sortent les torrents de délices qui inondent toute la création.] É só o pecado que traz a dor, e se os pecados dos outros podem afligir o inocente, não podem, todavia, atingir a alegria permanente e profunda que a união com Deus deve necessariamente produzir. Por outro lado, não pode haver mérito onde não há amor. Se as dores da Santa Virgem não tivessem se originado em Seu amor e por este sido animadas, não teriam sido meritórias. Mas o amor era a causa real dessas dores. Do excesso de amor vinha o excesso de sofrimento. Ora, é incontestável que o amor não pode existir sem deleitação. O amor é por si mesmo, essencialmente, uma alegria, e a grandeza da celestial alegria de Maria devia estar proporcionada à grandeza do Seu amor. Afligir-se e regozijar-se a uma só vez é algo possível, mesmo para nós, dos quais o pecado dificulta a vida interior e a torna irregular e desunida; temos todos já experimentado que nossa sensibilidade natural é um campo de batalha onde os combates acabam rapidamente, com uma ou outra paixão assenhorando-se do terreno. Mas em Jesus e em Maria havia uma união perfeita da mais extrema alegria com a mais viva dor, e essa união foi algo permanente na vida terrestre dEles. Trata-se de um dos fenômenos mais notáveis da Encarnação, fenômeno que se parecia, na natureza inferior de Nosso Senhor, como que uma espécie de reflexo ou imagem da união das duas naturezas em uma só Pessoa. Foi este também um dos caracteres particulares de que mais Ele fez Sua Mãe tomar parte. Na Paixão, Ele reteve Sua divindade, impedindo que a luz e a glória desta penetrassem sensivelmente em Sua natureza humana. Ele tapa com a mão, por assim dizer, a visão beatífica devida à Sua sagrada humanidade e que permanecera diante de Sua alma desde o primeiro momento de Sua Encarnação; não queria permitir que Sua natureza sensível fosse envolta por essa esfera de felicidade que poderia suavizar Seus sofrimentos e extinguir o fogo de Sua agonia. Da mesma forma, e segundo a medida que Lhe foi concedida, a Santa Virgem, nas profundezas de Sua alma, foi repleta de alegria por Sua união íntima com Deus, ainda que esta alegria fosse duma esfera própria e não lhe fosse permitido se descobrir com seu vasto mundo de luz, de maneira a banir a dor do Coração de Maria. A alegria da Santa Virgem, longe de aliviar Seus sofrimentos, fazia-A provavelmente sofrer mais ainda. É preciso lembrar de novo que estamos em presença de um caso diferente do dos Mártires. Estes cantavam em meio ao fogo e se regozijavam à vista dos leões e dos tigres, porque suas almas estava intactas e cheias de alegria, ao passo que sua carne era rasgada e destroçada.

Mas, em Maria, era a alma que sofria mais, e a alegria e a dor a dividiam contra si mesma. Era qualquer coisa das mais semelhantes aos mistérios divinos, uma verdadeira participação nos caracteres particulares de Jesus, uma divisão da alma em duas partes – sem alterar-lhe a simplicidade [substancial] –, uma divisão sem rebelião, uma chaga que era uma nova vida, um combate onde tudo era paz e harmonia. Ó Mãe! Não podemos dizer como isso ocorria, mas apenas que o ocorrido foi esse. Vós estais cheia de alegria: tão perto de Deus, como poderia ser diferente? Vós estais repleta de dor: e poderia se dar outra coisa nestes abismos tenebrosos da Paixão? Vossa dor não tinha poder algum sobre Vossa alegria; mas Vossa alegria, sim, tinha poder sobre Vossa dor, o poder de aumentá-la e torná-la mais amarga. Bem-aventurada criatura! A dor Vos esmaga, e de repente uma alegria semelhante àquela do Céu se aproxima de Vosso fardo e o torna dez vezes mais pesado de se levar! [Heurese créature! La douleur vous écrasait, et soudain une joie semblable à celle du ciel s’appuyait sur votre fardeau et le rendait dix fois plus lourd à porter.]

            Entretanto, fazemos justiça às dores de Maria quando dizemos que elas não tinham influência sobre as Suas alegrias. Na verdade, elas aumentavam as alegrias de Maria, constituindo para Ela fontes de novas e desconhecidas delícias, ou novos graus de alegrias antigas e já habituais. Sua dor e Sua alegria estavam longe de ser como dois oceanos sem comunicação e sem mistura, sem fluxo e refluxo. Pelo contrário, podemos dizer que, em certo sentido, a dor e a alegria de Maria eram idênticas, pois Suas alegrias geravam dores, e Suas dores geravam alegrias. Elas podiam ser uma ou outra coisa, segundo a dupla via que lhes era própria. Em Suas dores, Maria encontrava muitos motivos de alegria, e duma alegria tal que deixava os próprios arcanjos do Céu para trás. Se contemplarmos atentamente as trevas do Calvário, veremos sair uma brilhante luz de seu centro mais sombrio. Que encontraremos aí, em suma, senão uma magnífica reparação da honra divina? Quando Miguel, resplandecente de santidade e das alegrias do triunfo, expulsa do Céu o audacioso Lúcifer, ele ainda se delicia menos com a honra divina que Maria. Ela, a quem havia sido dado sondar tão profundamente os abismos do pecado, e que, no espírito do Getsêmani, havia sentido qualquer coisa da cólera do Pai, Ela podia se regozijar da satisfação da justiça divina mais que todos os anjos e santos. Aquela que havia vivido trinta e três anos com Jesus e dEle recebido um desejo ardente pela honra do Pai, Ela podia encontrar abismos de felicidade na reparação desta honra, abismos tais que todas as criaturas juntas não bastariam para descobrir. Podemos experimentar algumas vezes em nossos corações uma fraca parcela dessa alegria, e sabemos como ela é preciosa, mas não podemos dizer que de fato a conhecemos. Oh! Quando estaremos na pátria onde esta alegria será nossa natureza inalterável?!

            Uma fonte de alegria era também a imensa sabedoria de que Deus havia dotado a Santa Virgem, manifestando a Ela o plano inteiro de nossa Redenção. Cada abismo de ignomínia era, assim, iluminado por várias perfeições divinas, recebendo a mais esplêndida claridade. Os horrores da Paixão, dos quais uma fé sem amor se afastaria com desgosto, eram assim revestidos, para Maria, duma estranha felicidade por ver os desígnios de Deus se cumprindo. A ciência da Encarnação nunca se mostrou a Maria com uma tão estonteante e sedutora clareza quanto no momento de Sua Compaixão, com todos os Seus motivos, Suas possibilidades, Suas propriedades e Suas conveniências. O espetáculo de que Ela foi testemunha seria suficiente para entreter pela eternidade as adorações dos nove coros dos anjos.

            Havia também a alegria de prever a exaltação de Jesus. A Santa Virgem O via já à direita do Pai, via Sua humanidade sagrada colocada sobre um trono como o objeto mais digno de adoração eterna. A Seus olhos, as nuvens brilhantes do dia da Ascensão como que mesclavam-se já, estranhamente, com as trevas do sombrio eclipse do Calvário. Ela via já esses pés ensangüentados elevando-se aos ares, cada um com seus estigmas gloriosos parecendo raios rosados do sol. Ela entrevia os anjos, com sua brancura impressionante, se movendo em meio aos cavalos desses bárbaros centuriões estrangeiros. As trevas do abismo punham em destaque a claridade da Exaltação, assim como num quadro um fundo de tempestade faz aparecer com uma luz mais viva os objetos postos em primeiro plano.

            A alegria de Maria era uma participação na alegria de Jesus. O Coração dEle estava mergulhado num oceano de alegria, uma alegria que ninguém mais poderia dividir sobre a terra, a não ser Sua Mãe, porque nenhum outro a podia compreender. Se a parte de Maria fosse distribuída entre a multidão inumerável de seres, todos receberíamos ainda mais do que podemos suportar. Era-Lhe também uma alegria de espécie particular a de ver Jesus pagando então, duma maneira maravilhosa, as gloriosas prerrogativas a Ela concedidas. Quando o Preciosíssimo Sangue vem regar e tingir as linhas de Sua mão virginal, Ela o reconhece e o adora como o preço de Sua Imaculada Conceição. Poderia Ela contemplar esse mistério e não amar a Jesus mil vezes mais do que até então? Ora, o élan do amor devia ser seguido de um élan de alegria. [Or, l’élan de l’amour doit être suivi d’un élan d’allégresse.]

            É impossível não se rejubilar com as operações da graça nas almas. Cada aumento da graça é um presente duma Pessoa divina, um contato com Deus, uma união mais íntima e mais perfeita com Ele. Se fossemos mais calmos, mais graves, menos ocupados e menos precipitados em nossa vida espiritual, sentiríamos melhor essa operação. Quanto, pois, a Santa Virgem não devia se alegrar dos atos magníficos e sobrenaturais que Suas dores não cessavam de produzir! Tanta fé e esperança, tanta coragem e submissão, um tão grande amor ao sofrimento, um tão grande espírito de sacrifício, uma adoração tão inteligente, uma união tão incomparável com Deus! Cada uma dessas magnificências bastaria para produzir um santo e ainda deixar uma reserva prodigiosa de mérito. No pensamento de que Sua Compaixão seria um dom tão rico para nós, de que ela nos granjearia tantas graças, de que ela nos daria tão grandes exemplos, de que ela produziria em nós tanta devoção, de que ela nos aproximaria tanto de Jesus, de que ela nos infundiria um espírito mais sábio e nos inspiraria uma adoração mais profunda: qual não seria aí a alegria pelo nosso bem? Tais são as sete alegrias emanadas das dores mesmas de Maria. Poderiam, na verdade, ser multiplicadas ao infinito, mas são já suficientes para o nosso amor; são mais do que suficientes para lhes compreendermos a plenitude.

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(Próximo subtítulo a ser traduzido: “Como a Igreja põe diante de nossos olhos as dores da Santa Virgem”)

PS: Grifos meus.