RECOLHIMENTOS IMPOSTOS
O recolhimento está mais espalhado do que se imagina. Está mais unido à vida humana do que se pensa.
Senão olhemos para três espécies de recolhimento, aos quais, não diremos todos, mas grande parte, a maior parte dos homens, quer queiram quer não, se devem submeter. São os recolhimentos a que nós chamaremos de forçados ou impostos.
E se estes recolhimentos não encontrarem as almas preparadas - ai! que martírio cruel! que sofrimento profundo!
Mas, se, pelo contrário, houver harmonia entre eles e o interior dos indivíduos, então podem-se transformar em estados de verdadeira paz e quietação, quando não de verdadeira e íntima felicidade - o que está, sem dúvida, dentro dos planos sapientíssimos de Deus.
Consideremos, portanto, o recolhimento da pobreza, o recolhimento da doença, o recolhimento da velhice.
Na pobreza
Bem-aventurado quem compreende a lição, talvez dolorosa, deste tríplice recolhimento e para ele se prepara e por ele se santifica, quando soar a hora da Providência.
Uma das grandes chagas do mundo, talvez em todos os tempos, mas parece que, de modo especial, em os nossos dias, é a pobreza ambiciosa, a pobreza dissipada, a pobreza a sonhar - não com uma melhoria razoável na existência - mas com a ostentação e o luxo.
E quando estas tendências não ficam só em desejos, mas se transformam em realizações impossíveis ou ridículas, vemos, então, desgraças e desordens não poucas.
Temos insistido que o recolhimento é salutar ou necessário para todos, ricos e pobres, grandes e pequenos, nas cidades e nos campos, mas estamos considerando, agora, o recolhimento que as circunstâncias nos impõem e que seremos sábios, se soubermos receber de boamente e dele nos aproveitar.
Não falamos da miséria, que esta é um estado anormal, que, a não ser muito de passagem, nos parece que nunca está nos planos sapientíssimos de Deus.
Mas a pobreza, a vida modesta, em geral, é uma situação, de per si, recolhida. A ostentação não lhe fica bem. Ela, então, se fecha em sua casa, em seu quintal, em sua oficina ou escritório, e, fugindo de toda exibição, leva uma vida modesta, que, muita vez, é sinônimo de paz, de muita paz.
Se é explicável e desculpável, às vezes, a inveja neste mundo, um destes casos nos parece ser a inveja que desperta a casa pobre, asseada, onde, não havendo aspirações descabidas, existe um contentamento sadio, uma união edificante, uma força contagiosa.
E quando esta pobreza vive na pureza dos campos, é ouro sobre azul. Não podemos conceber estado natural mais feliz. Feliz a pobreza que não somente conhece o seu lugar, mas que o ama e o zela com carinho, quer no lar, quer no trabalho.
Pode, então, o luxo enfatuar-se a seu lado e a ostentação do rico pavonear-se numa ostentação ruidosa, a alma do pobre conserva a paz do seu escondimento e goza os encantos do seu recolhimento forçado talvez ou imposto, mas aceito com espírito de fé e com a razão esclarecida.
O recolhimento da pobreza limpa, da pobreza que trabalha, da pobreza alegre, é uma das situações mais encantadoras da vida. Infelizmente, tão pouco compreendida.
Existem, entretanto, almas assim.
São os gozadores da paz e os distribuidores da paz.
Passam pelo mundo assim como os santos. E sem deixarem de ter o seu ideal, pelo contrário, pelo fato mesmo de terem o seu ideal bem firmado, é que, por nada do mundo, abandonariam a clausura de sua pobreza feliz. Lembremo-nos da pobreza beatifica da casa de Nazaré. Lembremo-nos do lar humilde, sofredor, mas feliz, de uma bem-aventurada Ana Maria Taigi. Não conhecemos a pobreza edificante e, ainda por cima, dadivosa do operário irlandês Matt Talbot? A pobreza destes, como de tantos outros, era a cela misteriosa de sua felicidade, em intima união com seu Deus, que sempre se manifestou entre os pobres, de um modo humilde e nos lugares mais simples.
São José, amante da pobreza e modelo do recolhimento, rogai por nós.
Na doença
O homem se agita.
Anda por toda parte, em uma eterna dissipação.
Quer saber tudo, tudo ver, ouvir tudo. Preocupa-se com bagatelas e ninharias. Fala a todo propósito. Só se aquieta quando dorme. Mas, até ao último momento do dia ou já nos primeiros instantes da manhã, está em atividade a sua língua, sem um instante de repouso, ou de concentração. Enquanto espera o sono, já deitado, ou sem a coragem para se levantar, quanta fantasia, que é um modo de falar também!
De repente, é uma febre, um desastre, uma doença qualquer (há tantas) e eis o homem dissipado preso a um quarto, a uma cama, ao sofrimento, em um recolhimento, exterior ao menos, forçado.
Infeliz, muito infeliz, o pobre acidentado ou doente (não, pelo sofrimento físico) se este recolhimento representar uma novidade cruel em sua vida, se for um estado, do qual, o pobre homem sempre fugiu, consciente ou inconscientemente.
"Padre - dizia-me uma senhora enferma, proibida de ler e de receber visitas. - que horror esta solidão! Ao menos, povoe-me a cabeça de bons pensamentos!" Entretanto, era uma senhora distintíssima, de vida exemplar.
Mas, é que, nestas circunstâncias, todas as reservas são poucas.
Só mesmo uma vida de preparação, pela oração e reflexão, pelo recolhimento voluntário, pode tornar suportável o isolamento doloroso da doença.
Doente, em um sanatório, uma jovem religiosa holandesa, de vida contemplativa, sozinha ali, sem parentes ou conhecidos, era vista, enquanto podia, caminhar ou arrastar-se de seu quarto à capelinha, sem olhar e sem falar com ninguém no trajeto. Diante do sacrário tornava-se ela a imagem do recolhimento e da devoção. Poucos dias antes de sua morte, passando nos pelo seu corredor, em visita aos doentes, tivemos a tentação de penetrar naquele ambiente singular. Batemos à porta, com receio. Uma voz sumida deu-nos licença de entrar. Quase nos arrependemos: era tudo tão branco, ali dentro, e tão silencioso. Solidão completa. A freira sozinha, deitada, talvez já. sem movimentos, olhava para um grande crucifixo, aos pés de sua cama. De mansinho, lhe perguntamos: "Irmã, deseja alguma coisa?"
- "Nada, Padre. Só a bênção de Deus". Demos-lhe a bênção e sai mos com receio de ter violado um santuário. Sempre nos ficou a lembrança daquele recolhimento doloroso, heróico. Mas que nos pareceu um recolhimento cheio de paz. Aprendamos a necessidade de praticar o recolhimento voluntário na saúde, para que, quando a doença nos amarrar em um ambiente fechado, não seja brusca demais a mudança.
Deveríamos entrar, então, em uma atmosfera com a qual já estivéssemos familiarizados de há muito.
Foi no recolhimento forçado de longa convalescença que Inácio de Loiola, o cavaleiro mundano de Pamplona, sentiu o desejo da leitura, e, pela leitura, naquela atmosfera silenciosa do castelo, entrou em si mesmo e converteu-se.
Mas foi um caso raro, pois não ama nem procura o livro na doença quem não aprendeu a procurá-lo na saúde. O livro é um ótimo companheiro desses recolhimentos forçados enche o vazio, povoa a solidão, e constrói dentro do doente essas celas misteriosas, onde é possível uma elevação verdadeira.
Mas pobre do doente que, para passar o tempo, se vê obrigado a contar as taboas do forro ou a seguir o tic-tac do relógio ou a desfiar a franja da coberta.
Pior ainda a sorte daquele que se distrai pensando em tolices, construindo castelos no ar, sonhando coisas impossíveis. Pobre doente!
Como o recolhimento o castiga com severidade! Não vale a pena prepararmo-nos para essa situação tão comum na vida de cada cristão? Pensemos.
Entrando em um hospital, o problema é tão claro a quem quer ver, que a resolução deve ser imediata.
Santa Clara, doente, sofrendo muito, não queria perder seu tempo precioso, e, enquanto o seu corpo penitente, preso em sua cela franciscana, se entregava à santa e forçada ociosidade, trabalhavam suas mãos, com diligência, costurando e bordando toalhas e corporais para o culto do seu Jesus Sacramentado.
Que de beleza se encontra em um recolhimento, assim, tão rico de atividade!
Afinal, é preciso convencermo-nos: temos que tomar uma atitude, em face do possível, melhor, do provável, ou do quase certo recolhimento doloroso que, mais cedo ou mais tarde, por menos ou mais tempo, nos envolverá.
Queremos, então, vivê-lo, estupidamente, como um gato velho debaixo do fogão, sem proveito, sem um pensamento superior, quem sabe, até, com pavores e revoltas íntimas? Ou queremos aproveitá-lo para nosso aperfeiçoamento e elevação? Depende de nós.
Pode ser um tempo de paz interior muito grande, apesar dos sofrimentos, até de certo gozo em Deus e, sem dúvida, de merecimentos para nós e para o mundo. Depende de nós. Exemplos lindos e fortes não nos faltam. Saibamos preparar a nossa obra prima.
Lidvina de Schiedam foi mestra neste recolhimento imposto, durante mais de 30 anos, por uma doença que estragou a beleza de seu semblante, mas que aformoseou a sua alma, que, cheia de luz, de força e de sabedoria, transformou a humildade de seu quarto, em uma sala de audiência, onde toda classe de pessoas vinha pedir as suas luzes e conselhos, o seu consolo, o seu amor e alegrias de Deus. O recolhimento doloroso, dolorosíssimo e, às vezes até, heróico, da enfermidade, tem, como melhores companheiros, a limpeza, as flores, os livros, as santas conversações, os bons pensamentos, as jaculatórias, o querido rosário. E, sobretudo, Jesus na santíssima eucaristia, que, justamente, nessas ocasiões, mostra toda a força de sua presença, de sua graça, toda a misericórdia e doçura de seu coração.
Mas, com Jesus, vem Maria, vem S. José, vêm os Santos Anjos... Compreende-se, então, o que é a comunhão dos santos. Se nós soubéssemos viver a nossa fé!. ...
Na velhice
Há uma terceira espécie de recolhimento forçado, que, infelizmente, vai-se tornando cada vez mais raro, é o recolhimento da idade, ou a velhice. Pronunciamos com respeito esta palavra, que a própria Sagrada Escritura glorifica e promete aos homens, como uma recompensa. A velhice é sempre um dom de Deus, pois que é um dom de Deus a vida. Ora, quanto mais larga for esta, maior é o presente do céu, é verdade que, muitas vezes, mal aproveitado.
Não importam os achaques, os trabalhos, os aborrecimentos, àquele que se preparou para a velhice; pela vitória de suas paixões, e más inclinações, goza a suavidade e a paz dos últimos anos.
E tanto mais insistimos sobre isso, quanto mais sabemos como se despreza a velhice e como se relega ao abandono de um quarto ou de horas e horas de solidão, um ente que deveria ser cercado de todo carinho.
Infeliz de quem, então, só souber queixar- se e lamentar-se: é o estribilho monótono da velhice desaproveitada e irritada.
Mas aquele que, iluminado pela fé, sabe o que significa esta idade - que de merecimentos e de santas alegrias não recolhe?
As pernas já se negam a grandes passeios e longas caminhadas, para que o pequeno quintal ou jardim, a varanda florida e a casa sejam o seu pequeno mundo de paz e de meditação.
A vista torna-se sempre mais fraca, para que o olhar da alma, mais forte, alcance distâncias eternas. Os ouvidos vão perdendo a sua argúcia, para que melhor ouça a alma as vozes de Deus e da consciência. A língua perde, pouco a pouco, a sua agilidade, para que o silêncio envolva aquela vida que se transforma. A alimentação se torna cada vez mais parca e mais leve, para que o corpo, por assim dizer, se vá espiritualizando, e mais se deseje outra comida: a vontade de Deus, a graça, a santa comunhão.
E desse recolhimento sublime, ele sai, de vez em quando, para nos falar da fugacidade de tudo o que nos rodeia e nos aponta para a eternidade.
São esses quadros lindos que, de vez em quando, se encontram: velhices resignadas e pacificas, velhices alegres e ocupadas. Velhices, nas quais a alma boa se vai, pouco a pouco, desprendendo dos laços da carne, para que, em chegando a hora, desfira, livremente, o vôo para as alturas.
Visitamos, certa vez, 3 ou 4 sacerdotes jesuítas de 70 a 80 anos, na Vila Gonzaga de S. Leopoldo: cada um em seu quarto, bem arranjado e limpo, entregue ao seu estudo, leitura ou oração. Com que prazer nos receberam!
E nós, com que receio de perturbarmos o seu recolhimento.
Velhice abençoada! Como ela sabe aproveitar-se do seu recolhimento forçado, mas bem compreendido!
E essas matronas e chefes de família, que souberam envelhecer com fé e dignidade, que lição! Vede-as em sua cadeira de braços ou recostadas em sua cama, ou repousando sob uma árvore do quintal, com seu tricô ou seu jornal ou sua leitura espiritual ou seu terço, ou rodeados pelos netinhos ou filhos: são as despedidas tranqüilas desta terra; são os preparativos e acenos para a eternidade.
E' verdade que muita velhice não se aproveita, não só por culpa da própria pessoa, cuja vida desorganizada ou desregrada não foi uma preparação para esta idade importante, mas, muitas vezes, também, porque o ambiente, as coisas, as pessoas que a rodeiam, são mais de molde a irritar e aborrecer ou a dispersar, do que consolar, animar e recolher.
Pobres velhos, nas famílias ricas e pobres, que vivem, tanta vez, relegados ao esquecimento ou expostos ao ridículo ou tratados como pesos mortos, que já podiam desaparecer.
Mas também para isso, nos devemos preparar, contando mais com nossos esforços e energias, do que com o auxílio dos outros.
Construamos, desde já, o ambiente interior em que queremos passar a velhice, se Deus Nosso Senhor no-la der; ambiente interior forte e pacificador, capaz de transformar ou substituir os ambientes exteriores menos favoráveis.
Conheci um sacerdote jesuíta de 92 anos que ainda visitava os pobres doentes e os consolava, e que ainda, por escrito, preparava, cuidadosamente, a homília do domingo. Ó velhices lindas, velhices moças, que podem exclamar, todos os dias, com a liturgia, ainda que lhes tremam as mãos: "Subirei ao altar de meu Senhor, do Senhor que alegra a minha juventude".
Ai! os pecados contra a velhice! contra a velhice dos outros e contra a nossa própria possível velhice! não os cometamos.
Cerquemos de amor, de veneração, a idade, que quase toca, com a mão fidalga (pois a velhice não parece privilégio da verdadeira nobreza?!) os portais da eternidade.
Preparemos o nosso futuro feliz. E vós, queridos velhinhos, não vivais humilhados, de cabeça baixa. Erguei a vossa fronte. Não sois pesos mortos; sois reservatórios de vida, de energias, de valores morais. Que em vós, fontes de Nosso Senhor, se bebam as águas da prudência, da fé, da experiência, mas também de santas alegrias, de quem soube por que viveu e como viveu. Que o vosso recolhimento feliz, voluntário, espalhe notas de seriedade, de reflexão, no meio de leviandade e dissipação de um mundo louco, que mente a idade, que pinta os cabelos e os bigodes, que caminha com desenvoltura forçada, que não quer ter filhos e muito menos netos - mas que padece da velhice mais precoce, porque lhe falta a juventude perene de uma alma pura, humilde, boa...
Povoai-vos, recolhimentos da velhice! Cantai, com melodia cristã, os formosos versos das "Velhas Arvores" de Bilac.
(Recolhimento por D.Frei Henrique Golland Trindade O.F.M. Bispo de Bonfim, Editora Vozes, 1945)