sexta-feira, 26 de agosto de 2011

IV. Caracteres distintivos das dores da Santa Virgem

Nota do blogue: Segue a quarta parte do livro Ao pé da Cruz ou As Dores de Maria escrito pelo piedoso Padre Frederick William Faber, acompanhe o ESPECIAL AQUI.

IV.
Caracteres distintivos das dores da Santa Virgem


Como se pode compreender, os caracteres distintivos das dores da Santa Virgem têm uma ligação direta com as fontes donde se originam estas; esses caracteres devem agora ser o objeto de nossa atenção. Embora eles devam, mais tarde, aparecer duma maneira mais viva e clara, ao estudarmos as dores uma por uma, é necessário já agora lançarmos uma vista geral sobre eles, a fim de formarmos uma justa idéia do martírio de Maria, em sua completa unidade. Após observarmos esse martírio em seu todo, estaremos melhor preparados para compreender os detalhes maravilhosos que um exame mais próximo nos fará descobrir. O primeiro dos caracteres particulares das dores de Maria foi que elas duraram toda a Sua vida, ou quase isso. É preciso recordar que a Santa Virgem ignorava, até o momento da Encarnação, que Ela seria a Mãe de Deus. Até esse momento, portanto, pode-se dizer que Ela previa, por uma luz do alto, mas como que confusamente, que Sua vida deveria ser de grandes sofrimentos e duma paciência heróica; todavia, Suas dores particulares não podiam então se representar a Ela duma maneira distinta. Mas, quando o Verbo eterno se fez carne em Seu seio, uma grande mudança se deu nEla. Ela estava, então, unida a Deus duma maneira tão inexprimível, e tinha uma inteligência tão profunda e tão acertada do mistério da Encarnação, uma tal luz brilhava para Ela sobre as profundezas das profecias hebraicas, que é-nos impossível duvidar de que a Paixão de Jesus não se apresentasse aos Seus olhos, acompanhada de trinta e três anos de pobreza, penas e humilhações, e de que Ela não visse já, ao menos em seus traços principais, Sua própria Compaixão. Isso é o mínimo que podemos pensar a esse respeito, mas o que pensamos se estende, em realidade, muito mais longe. Não podemos seguir aqui os escritores que fazem começar as dores de Maria no momento da profecia de Simeão. [Nous ne pouvons suivre ici les écrivains qui font commencer les douleurs de Marie au moment de la prophétie de Siméon.] Seguramente, é provável que nesse momento Deus tenha querido mostrar-Lhe duma maneira mais distinta o quadro inteiro de Suas aflições futuras, e que tenha feito mesmo com que essa visão brilhasse ante Seus olhos com as mais vivas cores. Que as palavras de Simeão tenham sido o instrumento divino para atingir a alma de Maria, isso é algo mais que provável. Mas parece pouco respeitoso para com Ela pensar que, durante os nove meses de Sua união mais íntima com o Verbo encarnado, Maria não compreendesse Sua missão de sofrimentos e sangue, nem as leis da expiação e da redenção, ou que Ela não estivesse certa de beber do mesmo cálice que Seu Filho. Em todo caso, ao menos a partir da profecia de Simeão, senão já desde o momento da Encarnação, os sofrimentos de Maria não terminariam mais até o fim de Sua vida. Como as de Jesus, Suas dores também estariam sem cessar presentes aos Seus olhos. Ela não conhecia aqueles momentos de calma que experimentamos quando os males que nos afligem nos dão alguma trégua. Uma sombra inevitável e uniforme se estendia sobre o Seu caminho. [Une ombre inévitable et uniforme s’étendait sur son chemin.] Mesmo as maiores sombras destinadas aos homens são variadas em sua escuridão. Mesmo a dor que mais nos custa pode, às vezes, fazer sentir ainda mais fortemente o seu aguilhão. E, por outro lado, as nuvens cedem de tempos em tempos à força do sol, nem que seja por um curto intervalo. Mesmo o mal que persegue um homem por toda a sua vida parece, em certas ocasiões, se cansar e tomar então outra direção, como se renunciasse a seu intento, ou quisesse conceder à sua presa ao menos um tempo para respirar. Mas a sujeição de Maria à dor estava cravada sobre Ela como com ferro. Ela não descansava jamais, não se acalmava jamais, nem tinha a menor trégua. [Elle ne se relâchait jamais, ne se calmait jamais, ne lui accordait aucune trève.] A dor fazia parte de Sua vida, e só o fim desta pode interromper essa união. A Paixão não foi o fim dos sofrimentos de Maria, nem uma tragédia isolada em sessenta e três anos marcados pelas vicissitudes ordinárias da vida humana. Foi uma parte de um todo conseqüente com seus antecedentes, um espessamento das trevas, sem dúvida, mas só uma parte das trevas de toda uma vida que, para dizer o mínimo, não conheceu a luz. [Ce fut une partie d’un tout conséquent avec ses antécédents, un épaississement des ténèbres, il est vrai, mais une partie des ténèbres de toute une vie qui, à cet égard du moins, n’avait pas connu de lumière.] Devemos ter isso em mente sempre, se queremos formar uma idéia justa das dores de Maria. As dores não foram acontecimentos isolados, mas sim a continuação duma vida submetida a uma espécie de fado, duma vida que o Céu havia cercado duma lei de sofrimentos, lançando sobre alguns de seus abismos uma luz mais viva que sobre os outros.

As dores da Santa Virgem não somente duraram toda a Sua vida, como também aumentaram continuamente; mais a vista dos sofrimentos se Lhe tornava familiar, mais Ela experimentava as dores, e mais terríveis também estas Lhe pareciam. Esse crescimento das dores não era incompatível com a imensidão de Sua ciência, nem diminuía-Lhe a clareza. Suas dores davam traços novos, afetos novos, profundezas novas e facilidades novas às Suas contínuas meditações, exatamente como nossas dores fazem conosco num grau muito inferior. E também quanto mais ocupamos nosso espírito dos mistérios da Encarnação, mais adquirimos luzes sobre o que lhes concerne. Mais nos elevamos, mais o horizonte se estende. Mais nossos olhos se acostumam à doce obscuridade, mais nos apercebemos que é impossível sondar a profundidade do abismo. [Plus nos yeux s’accoutument à la douce obscurité, plus nous apercevons qu’il est impossible de sonder la profondeur de l’abîme.] Que haveria de ser tudo isso para Maria, da qual o olhar penetrante e fixo era tão diferente de nossas meditações precipitadas e distraídas? Da qual a meditação durava sem interrupção durante anos? Da qual o Coração estava tão vivamente interessado no objeto de Seus pensamentos? Por outro lado, mais o cumprimento dos mistérios [da Paixão] se aproximava, mais eles pareciam terríveis à Maria; mais a sombra que eles projetavam tornava-se espessa, mais eles Lhe inspiravam pavor. Quando os primeiros ventos da tempestade [daquela grande Sexta-Feira] começarem a soprar sobre o Seu Coração, Ela sairá em busca de Seu Jesus. E Ele Lhe parecerá mais belo do que nunca, mas já não haverá nada a esperar. Um mar imenso e sem porto estará em torno dEla. E Ela não terá outro refúgio senão esse mesmo oceano: tal é a Vontade de Deus. Enquanto esse dia não chega, Jesus tornar-se-á mais belo a cada dia. Os doze primeiros anos transcorrerão produzindo frutos de amor e de beleza celestial, dos quais o número desafia todo cálculo humano. Depois vêm dezoito anos, durante os quais cada palavra, cada olhar, cada ato de submissão dEle estarão cheios de mistérios divinos. A vida de Maria era então passada inteiramente com Jesus, em Jesus, que era a Sua luz, o Seu amor, o Seu tudo. Em seguida vêm os três anos do ministério público do Salvador, do qual as palavras, as obras, os milagres, poderiam encher o mundo de mais beleza sobrenatural até do que ele poderia suportar, de sorte que os homens se precipitarão em furor para apagar essa luz que lhes feria os olhos com seu brilho muito forte. À medida que crescia a beleza de Jesus, crescia igualmente o amor de Maria e, com o amor, Sua agonia; eram três coisas que cresciam contínua, majestosa e rapidamente. A beleza infinita dos três anos do ministério de Jesus era de molde a fazer parecer à Maria que os sofrimentos da Paixão não seriam possíveis. Pela beleza singular da pregação do Salvador, por Suas lágrimas humanas, por Suas vigílias sobre as montanhas, por Suas penosas viagens, por Sua fome e Sua sede, por Sua doce paciência, pela persuasão de Seus milagres e a sabedoria maravilhosa e sedutora de Suas parábolas, não parecia que o mundo podia ser resgatado sem os cruéis sofrimentos do Calvário? O fato é que Jesus se tornara para Maria como que um hábito que não poderia ser arrancado dEla sem que Ela deixasse de viver. Dessa forma, uma causa de dor se somava à outra, um pensamento excitava outro, uma afeição produzia outra ainda mais viva, e assim Suas dores iam crescendo com mais rapidez do que as plantas no verão, e tanto mais quanto mais o tempo da Paixão se aproximava.

Outro caráter particular das dores de Maria foi que elas atingiam antes a Sua alma, que o Seu corpo. Não que este fosse impassível, mas suas dores, comparadas às da alma, eram nada. Umas estavam de todo fora de proporção com as outras. O sofrimento físico é, sem dúvida, penoso de se suportar, tão penoso que, após certo ponto, torna-se intolerável. Ele estende suas mãos sobre nossa vida que, ao seu contato, parece querer se retirar. Ninguém pode olhar o sofrimento físico como algo insignificante. Mas como ele é ligeiro, se comparado ao sofrimento do espírito! Mesmo para nós, a agonia da alma é bem mais terrível que as torturas do corpo. Entretanto, comparados à Santa Virgem, somos tão grosseiros, tão materiais, que somos quase criaturas duma espécie diferente. [Et cependant, comparés à la sainte Vierge, nous sommes si grossiers, si matériels, que nous sommes presque des créatures d’une espèce differénte.] Mais a alma é pura e delicada, mais sua agonia é cruel. Que seria então para uma alma como a de Maria, que era um vaso imaculado de graça? Absolutamente, nós não temos como calcular a extensão em que Ela foi provada. Sua capacidade para a dor ultrapassa nossa inteligência. Tudo o que sabemos é que Ela foi muito mais além do limite de tudo o que um homem jamais sofreu; os dois Corações de Jesus e Maria elevaram-se num mundo de sofrimento só dEles, onde nenhum outro coração de carne os pôde seguir. Os sofrimentos de Maria foram um martírio ao inverso, pois Suas angústias estiveram principalmente em Sua alma, e daí atingiam também Seu corpo, afligindo-o; ao passo que, nos Mártires, a alma derramava um bálsamo refrescante sobre as feridas da carne, e o Céu brilhava então para eles mais do que nunca, mais do que as chamas da fogueira ou os olhos das feras. Nesse ponto Maria se distingue, em certo sentido, até de Jesus. Com efeito, a alma de Jesus foi crucificada no Getsêmani, e o Seu corpo sobre o Calvário. Nenhuma ferida foi feita, porém, no corpo de Maria; nenhuma gota de sangue foi tirada de Suas veias. O corpo e o sangue de Jesus tinham vindo de Maria, e assim bastavam para sofrerem por Ele e por Ela. O caráter perfeitamente interior das dores de Maria, apesar das circunstâncias exteriores, e do qual a justa apreciação exige um discernimento espiritual, deve estar sempre presente ao nosso espírito, como um dos aspectos mais marcantes de Suas dores.

Se ousamos pensar por um momento nisto que a teologia denomina circuncessão* das Três Pessoas divinas, em virtude da qual cada uma dElas existe nas outras, seriamos levados muito longe das prerrogativas de Maria, haja visto a distância infinita entre o Criador e a criatura. Mas, pelo menos, essa iminente unidade das Pessoas divinas nos daria uma idéia da união existente entre Jesus e Maria. O Coração de um parecia estar no Coração do outro. A beleza de Jesus tirava Maria fora de si mesma. Os interesses de Seu Filho eram os Seus próprios. As disposições de Jesus eram as mesmas de Maria. Ela pensava com Ele, sentia com Ele, e, tanto quanto era possível, se identificava com Ele. Ela não vivia senão por Ele. A vida de Maria era para Jesus um instrumento do qual Ele podia dispor segundo Sua Vontade. Nessa união, Maria era algumas vezes Mãe [isto é, só às vezes usava de Sua autoridade materna]. Ela doava Seu Coração todo inteiro a Seu Filho, se rejubilando de tudo por tudo o que já fizera, por tudo o que fazia e por tudo o que poderia fazer e sofrer, tudo simplesmente porque tratava-se dum sacrifício por Ele. Algumas vezes, era como se Maria fosse a criança, e Ele o pai, tanto Ela se deixava guiar por Ele, tanto Ela O obedecia perfeitamente, tanto Ela estava longe de ter um pensamento sequer diferente dEle. Ele estava ali para pensar e dispor; Ela para segui-lO, servi-lO, se conformar a Ele, e adorá-lO com todo o amor.

Lemos coisas maravilhosas sobre os Santos e sua união com Deus; mas esta jamais foi sequer comparável à união de Jesus e Maria. Trata-se aqui duma união única em grau e em natureza, não se assemelhando a nenhuma outra união, a não ser àquela, infinitamente superior, das Três Pessoas divinas, como dissemos. Ora, Maria vivia mais essa união do que a Sua própria vida, ou, melhor dizendo, essa vida fora dEla mesma, essa vida em Jesus, era para Ela mais interior, mais realmente Sua vida própria do que a outra; e foi esse também um caráter particular de Suas dores, que estas tinham origem menos nEla mesma do que nAquele a quem Ela amava mais do que a si mesma. Há entre as dores humanas uma que se assemelha fracamente àquelas de Maria: aquela sombra que transpassa o coração das pobres viúvas quando vêem seu primeiro filho, atingida apenas a idade adulta, ser atacado e vencido pela morte. Mas nenhuma mãe há sentido tanto como Maria, pois que nenhuma delas há enfrentado uma união tão estreita com o objeto de seu amor, assim como também nenhuma delas há tido um objeto semelhante para amar, simultaneamente divino e humano, como Ela o teve, podendo amá-lO com um amor que não tinha necessidade de se distinguir da adoração mesma.
(* Nota do tradutor francês: Os teólogos dão o nome de circuncessão [circumincession] à existência íntima das Três Pessoas divinas uma na outra, apesar de Sua distinção individual.)  

Outro caráter particular das dores de Maria, é que elas foram de uma grande variedade, ao mesmo tempo que, sendo interiores, concentravam-se todas num só ponto, a saber, em Seu Coração. Quando os instrumentos de tortura passavam de um membro do mártir a outro, pode-se dizer que ele quase experimentava um alívio nessa mudança. Sabe-se como é atroz a violência duma dor quando ela se concentra toda sobre um só nervo, principalmente se isso dura por horas, dias ou mesmo semanas. É uma agonia diferente da produzida pelos sofrimentos que variam, mesmo daqueles cujos ataques agudos são tão difíceis de suportar. Mas, se dum membro ou dum nervo nós transportarmos ao coração a pressão uniforme da dor, o resultado deve ser intolerável. A variedade das dores de Maria era quase infinita. As duas naturezas de Jesus, a divina e a humana, davam lugar a uma variedade inumerável de sofrimentos para Ela. As penas corporais da Paixão, os sofrimentos mentais, a profunda humilhação, os gritos, os empurrões e os pensamentos visíveis mesmo da multidão que cercava Jesus, eram outros tantos gêneros diferentes de sofrimentos para Maria. Além do que a unidade completa de Suas afeições aumentava-Lhe imensamente as dores. Ela não amava senão um Ser, sobre o qual se concentravam todas as causas de Seu martírio. Não havia em Seu Coração nada que pudesse mitigar-Lhe a dor ou distraí-lA. Como os gritos do filhinho são doces àquelas que acabam de se tornar viúvas! Que eloqüente distração essa, mais deliciosa do que a voz de um anjo! Oh! Esse grito parece então uma grande graça vinda do céu, e quão poderosa para aliviar em parte o peso do fardo! Mas Maria não tinha uma distração para Seus males. Embora inumeráveis, eles se reuniam como em um só ponto sobrenatural, único e múltiplo a uma só vez, cravando-se com toda a sua força no centro mesmo daquela vida, o magnífico santuário de Seu Coração amantíssimo.

Mas ainda não é tudo. Não somente Maria não tinha outros objetos, outros deveres, outro amor, que pudessem distraí-lA de Seu mal, como também, na realidade, tudo o que naturalmente devia servir-Lhe de alívio às penas, não servia mais que para as aumentar e amargar. O que deveria ser luz, era para Ela pior do que as trevas do Egito. O que devia dar-Lhe vida, tornara-se capaz de levá-lA à morte. A própria bondade de Nosso Senhor aguçava duma maneira particular cada um dos espinhos que penetravam o Coração de Sua Mãe. A santidade de Jesus tornava a Sua morte ainda mais terrível. O amor do Salvador por Maria, amor que, por natureza, devia ser para Ela a mais doce consolação, era justamente o que tornava tudo mais cruel ainda. Se Maria pudesse amar menos a Jesus, ou se Jesus pudesse amar menos a Maria, não teriam sofrido tão além de toda a comparação humana. O que conferia à cada tortura uma dor extrema era precisamente o amor que Maria experimentava. Mas a divindade de Jesus, o esplendor secreto de sua natureza gloriosa e impassível não poderia sustentar a fronte fatigada de Maria? Ó mais caro de todos os dogmas da fé! Quantos corações sofredores, espíritos abatidos, almas provadas por tempestades, em meio ao naufrágio geral que as atinge, repousarão sobre ti, como por sobre um leito macio e agradável!

Para quantos milhares de almas essa doutrina não será como a visita de um anjo que ordenasse à tempestade se acalmar, livrando-as nada menos que da morte! Seria essa doutrina como nada para Aquela a quem ela mais tocava dentre as criaturas de Deus? Nada? Oh! Longe disso; essa doutrina será para Ela um novo abismo de dor humana, desconhecido até então, e no qual Ela descerá a profundezas incomensuráveis, sem encontrar o fundo. Essa doutrina A envolverá no sofrimento e A deixará jacente e desamparada sobre um vasto oceano de dores. No martírio de Maria, cada coisa parecia seguir a lei dos contrários. [Dans le martyre de Marie, chaque chose semblait suivre la loi des contraires.] As que deviam por si mesmas trazer alívio a Seu fardo, tornavam-se como mãos homicidas a retê-lA com uma força cruel sob as águas tenebrosas. Ao invés de ser sufocada, Ela sofre então com mais violência. Qual, dentre as dores humanas, se aproximará das de Maria?

Onde Maria encontraria consolo humano para Seu sofrimento? Não se acharia um ser no mundo capaz de compreendê-lA. Antes Ela consolará que será consolada. É preciso que Ela sofra em segredo. Mesmo São José, que A conheceu tão bem, todavia não A conheceu perfeitamente. [Saint Joseph la connaissait bien, mais il ne la connut jamais parfaitement.] Seu Coração era um mistério, mesmo para São João, embora ele fosse o iniciado nos segredos do Sagrado Coração de Jesus. Esse Apóstolo mesmo teve necessidade da ajuda de Maria para se manter ao pé da Cruz de Seu Mestre. E também não é provável que Jesus e Maria tenham falado muitas vezes a respeito das dores que os aguardavam, ou que buscassem qualquer alívio para elas em Seu mútuo amor. Na verdade, parece-nos mais provável que nunca tenham falado sobre isso. A simpatia de Maria por Jesus era realmente um culto. Um amor verdadeiro, um amor maternal pleno de ternura, uma verdadeira adoração, diferente de toda mera simpatia natural. Quando Ela voltar do Santo Sepulcro, no anoitecer da Sexta-Feira, Ela entrará num mundo onde não encontrará nenhuma alma para compreendê-lA. Nem mesmo a santa e terna Madalena. Serão trevas sem um raio de luz, uma solidão cheia de terrores, uma vida já sem nenhum atrativo, sem um só lugar de repouso para o Seu Coração magoado. Ela se encerrará em Suas dores, agüentando-as em silêncio, enquanto Sua alma é torturada. E não haverá pessoa alguma que possa fazer mais do que imaginar a vida dolorosa que batia como um pulso desordenado nesse Coração maternal.

Tais foram os caracteres distintivos das dores de Maria, e para que serviriam aqui as palavras, senão para lançar uma sombra ainda mais escura sobre esse quadro já suficientemente sombrio? Que pensaremos, portanto, do último caráter das dores de Maria, que impressionava tanto São Bernardo, isto é, a paciência tranqüila com que Ela as suportou? Quem será capaz de esquecer, após haver meditado sobre nossa santa Mãe, a tranqüilidade celeste de Suas palavras na Anunciação: “Eis aqui a Escrava do Senhor”? A mesma calma contínua de quando Seu Coração foi rasgado ao pé da Cruz. Exceto num estado de grande santidade, e mesmo aí pode haver alguma exceção, a paciência nas penas implica uma idéia de frieza e de insensibilidade. Não amaríamos muito uma pessoa cuja tranqüila serenidade não pudesse ser perturbada por aflição alguma. O amor de Deus tem por efeito nos Santos quebrar-lhes o charme da dor. O amor constitui-se uma distração e uma compensação a uma só vez, tornando assim mais fácil a paciência. Mas para Maria era precisamente em Seu amor por Deus que consistia a excessiva amargura de Sua agonia. Se, portanto, nos representássemos o hediondo turbilhão de misérias, o fardo enorme de dor e o acúmulo de penas sobrenaturais que Maria devia suportar, e como tudo isso pesava com uma força irresistível sobre Seu Coração solitário, é com espanto que veremos tudo se voltando contra a Sua tranqüilidade, como as ondas vêm se chocar contra uma enorme rocha, que as faz retroceder sem se abalar. Assim também em Maria. Mas Ela não era insensível como uma pedra fria. Pelo contrário, a tempestade A penetrava, se insinuando em cada recanto de Sua rica natureza, enchendo até o transbordamento toda a capacidade que Ela tinha para o sofrimento, e embebendo de amargor todas as Suas faculdades e afeições. Entretanto, nada podia abalar a tranqüilidade de Maria. Sua paz interior assemelhava-se à calma das profundezas do oceano, mesmo quando a tempestade revolve-lhe a superfície. Mas essa tranqüilidade não era para Maria um refúgio contra a dor. Apenas tornava-A capaz de sofrer ainda mais. A calma permitia à dor penetrar melhor em cada parte de Seu ser. Daí não encontrar-se em Maria nenhum escândalo, nem suspiros sonoros, nem soluços entrecortados, nem palavras inúteis para exprimir Seu pranto. Uma imagem concebida por um devoto inteligente da Mãe de Jesus não poderia ser como essas que quadros inexatos e pouco teológicos nos apresentam aos olhos, não poderia ter essas atitudes forçadas de dor, nem essas contorções que deformam a beleza da cena, nem essas mãos que se torcem duma maneira efeminada, nem esses cabelos espatifados. Também não A poderia representar estendida por terra, como uma pessoa desfalecida, nem necessitando de um braço para ser apoiada, mesmo o de João ou o da Madalena; não se pode imaginar nEla suspensão alguma de Sua gloriosa razão, cujo uso jamais foi interrompido desde o primeiro momento da Imaculada Conceição. Entreguemos às chamas, com nosso amor indignado, essas ignorantes e irresponsáveis representações, e lancemos longe de nós as odiosas imagens que o mérito e a beleza dessas pinturas possam ter deixado em nosso espírito. [Livrons aux flammes, dans notre amour indigné, ces ignorantes et irrespectueuses représentations, et chassons loin de nous les odieuses images que le mérite et la beauté de ces peintures peuvent avoir laissés dans nos esprits.] Maria estava de pé [grifo do original] junto à Cruz; eis aí o quadro, tão grande em sua simplicidade, que encontramos na Escritura; eis aí a exata verdade, e o pintor é o próprio Esposo de Maria, o Espírito Santo. É esta imagem de uma mulher calma e de pé que um de Seus filhos mais ternos, São Bernardo, contemplava com uma amorosa admiração. É isso o que há de atraente nas aparições mostradas nas revelações de Maria de Ágreda, bem como no retrato traçado pelas visões da irmã Emerich. As descrições da religiosa espanhola parecem mesmo mais verídicas que as da alma artística da extática alemã. [C’est là ce qu’il y a d’attrayant dans les apparitions que nous font connaître les révélations de Marie d’Agréda et dans le portrait que nous ont trace les visions de la soeur Emmerich. Les instincts de la religieuse espanole étaient même plus vrais que ceux de l’âme artistique de l’extatique allemande.] Jamais devemos perder de vista essa tranqüilidade de Maria em meio às Suas dores. Não havia nEla nada de extravagante, nada de desordenado, nada de dramático, nada de apaixonado, nada de demonstrativo, nada de excessivo; Ela conservava-se na dignidade mais calma, mais real, mais tranqüila, não como uma doce paisagem ao cair da noite, ou como o cimo de uma montanha iluminada pela lua, nem como imagem alguma apreciada pelos poetas da natureza; Ela permanecia tranqüila, sim, segundo a ordem e o grau de Sua perfeição, tal como a natureza divina de Nosso Senhor enquanto os tormentos da Paixão calcavam aos pés a Sua natureza humana e a faziam morrer. A tranqüilidade de Maria foi como um reflexo dessa tranqüilidade de Jesus. Foi uma das numerosas participações pessoais que Jesus concedeu à Maria na hora das trevas.

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(Próximo subtítulo a ser traduzido: “Como a Santa Virgem podia se alegrar em meios às Suas dores”)

PS: Grifos meus.